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Um estudo da tradução é um estudo da linguagem

1 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Deveria uma boa tradução amoldar sua língua em direção daquela do original, criando assim uma aura deliberada de estranhamento, de opacidade periférica? Ou deveria naturalizar o caráter da importação linguística de modo a torná-la familiar na língua do tradutor e de seus leitores?”

“A torre de Babel”, Pieter Brueghel, 1563.

Publicado pela primeira vez em 1975, Depois de Babel mantém sua relevância intacta. Uma das mais importantes obras de George Steiner, marcada pelo manejo preciso da erudição que marca sua produção, discute, a partir dos problemas levantados por questões da tradução, a linguagem humana e o fenômeno literário de maneira geral. Um livro cuja contribuição atinge não apenas estudiosos da tradução, mas todos os que se interessam por literatura, linguística e filosofia, do qual pode-se dizer que é uma das grandes obras de nosso tempo.

Depois de Babel é um só tempo uma obra de crítica literária e um tratado de filosofia da linguagem que discute teorias linguísticas do século XX. George Steiner parte da premissa que “alcançar a significação é traduzir” e apresenta uma teoria hermenêutica, através da abordagem de questões fundamentais da tradução, como a reconstrução dos processos de significação textual que passa pela inevitável e contínua tomada de decisões por parte dos tradutores. Para Steiner, a hermenêutica é a narrativa de um processo, exercitada pela prática concreta da tradução.

George Steiner retoma ao longo do livro uma discussão que no século XVIII o filósofo alemão Schleiermacher apontou como crucial para a teorização da tradução literária, a respeito dos processos através dos quais se domestica ou se estrangeiriza um texto – seus limites, dificuldades e méritos. Seu ensaio, “Sobre os diferentes métodos de traduzir” (disponível para visualização), serve como base a Steiner para estudar traduções e tradutores exemplares, como John Dryden e Friedrich Hölderlin, casos modelares de tradução poética. Como analisa Augusto Nemitz Quenard, em artigo, os exemplos de Dryden e Hölderlin, “são, para ele, alguns dos momentos da história moderna em que a língua universal almejada pelos poetas se evidencia por meio da tradução. Não são somente estes os autores que ganham atenção na obra; no entanto, parece-nos que são as traduções destes que guardam mais à flor da pele o segredo que Steiner procura desvelar. De Dryden, Steiner afirma que “buscou traçar uma via media entre a abordagem palavra-a-palavra exigida pelos puristas quer entre os teólogos, quer entre os gramáticos; e as fogosas idiossincrasias exibidas na tradução que Cowley fez em 1656 das Odes de Píndaro”. Segundo o autor, Dryden acreditava que, como um poeta clássico, o tradutor devia fazer escolhas moderadas. Nem pela “metáfrase” – palavra a palavra –, nem pela “imitatio” – maior liberdade criativa do tradutor – seria possível encontrar uma solução para a tradução dos clássicos; ela se encontraria na “paráfrase”, forma que deixa o autor à vista, mas sem ser seguido estritamente, podendo, quando a língua de chegada o precisar, afastar-se na forma e até mesmo no sentido. Assim, mantendo-se próximo do original, mas sem transgredir os limites de sua língua, Dryden consegue manter-se entre duas posturas extremas”.

Assim como Schleiermacher, Steiner defende a busca por uma cadência da língua original não apenas na leitura silenciosa do texto, mas tradução da própria materialidade da língua. A sonoridade deve ser como um molde a ser preenchido com o material encontrado no “fundo retórico”. Um aspecto musical, rítmico. Segundo Schleiermacher, a música é o elemento mais penetrante da obra de arte e o responsável pelo encantamento que esta produz no leitor sensível, de modo que tudo o que o leitor reconhece como “característico, intencionado e eficaz quanto ao tom e a disposição de ânimo, e como decisivo para o acompanhamento rítmico ou musical do discurso” também deve ser transmitido pelo tradutor.

Composto por dois substanciosos prefácios, à segunda e à terceira edições, e de seis extensos capítulos, Depois de Babel analisa a linguagem sob diversos pontos de vista: filosófico, linguístico, literário, histórico, sem deixar de abordar o misticismo relacionado com a linguagem, sugerido pela alusão bíblica no título.

Segundo Eduardo Sterzi, no interessante artigo sobre Steiner, “Dialética do desastre”: “A Morte da Tragédia e Depois de Babel, separados por pouco mais de uma década em suas primeiras edições, são, ainda hoje, possivelmente os mais altos cumes na vasta e multifária bibliografia de George Steiner. Ambos oferecem demonstrações irrefragáveis daquela húbris intelectual tão característica de sua obra, daquela desmesura de rematado polímata que não se intimida mesmo diante dos maiores desafios, e antes os persegue com gosto, com paixão”. Conforme analisa Sterzi, todos os escritos de Steiner “são, no fundo, lamentos pela perda de alguns padrões exemplares de civilização; padrões que, no entanto, talvez nunca tenham existido integralmente senão como ideais (sendo a relutância em admitir essa provável inexistência o limite maior de sua crítica cultural, mas também a razão de sua singularidade frente à apatia disseminada das rotinas de leitura)”. Segundo o crítico brasileiro, Depois de Babel, que, nas suas palavras, “se apresenta, à primeira vista, como um estudo sobre a tradução, mas é também um magistral exercício de literatura comparada e de filosofia da linguagem”, pode ser lido e compreendido como “uma ampliação e retificação do modelo declinante de interpretação da cultura proposto em A Morte da Tragédia. Ampliação porque, agora, o foco não está restrito a uma determinada forma poética (embora, por meio da análise daquela forma, a história universal se desse a reler), mas se abre sobre o corpus total da linguagem e da cultura. Retificação porque Steiner, aqui, deixa explícita a dialética inerente ao declínio: a “ruína de Babel” pode ser um “fardo”, mas é também “esplendor”. Não por acaso, o estudo é dedicado aos poetas, aqueles que, de acordo com Steiner, dão “vida à linguagem” e sabem que “o ocorrido em Babel foi tanto um desastre quanto (e essa é a etimologia da palavra desastre) uma chuva de estrelas sobre o ser humano”, uma chuva fecundante”. De acordo com Sterzi, a “idéia central do livro […] é a de uma coincidência integral entre compreender e traduzir e, portanto (o que pode soar mais controverso), entre tradução e linguagem – e, dada a primordialidade da linguagem na configuração da cultura, entre tradução e cultura. […] Mas é a radiante metáfora epistemológica em torno da qual se organiza o último capítulo que concentra a retificação do modelo declinante: a metáfora da topologia, extraída do léxico da matemática, onde designa o tratamento das propriedades geométricas de uma figura que permanecem inalteradas quando esta sofre uma deformação contínua. “Definida topologicamente’”, propõe Steiner, “a cultura é uma seqüência de traduções e transformações de constantes.” (E, conforme acrescenta, quando admitirmos que é disso que se trata e nos dispusermos a estudar essas transformações, “chegaremos a uma compreensão mais clara do motor lingüístico-semântico da cultura e do que mantém diferentes línguas e suas ‘áreas topológicas’ distintas entre si”.)”.

A edição brasileira, publicada pela editora da UFPR, foi traduzida pelo linguista Carlos Alberto Faraco – tarefa neste caso metalingüística, as dificuldades na tradução para o português fazem pensar sobre as questões levantadas ao longo da obra. Consumiu de Faraco um ano de trabalho intenso graças a seu caráter enciclopédico e por vir repleto de citações em outras línguas: o que foi contornado pelo tradutor utilizando a chamada tradução instrumental de algumas passagens, ou seja, traduzindo-as literalmente, ou mantendo-as no idioma original. Outra dificuldade enfrentada por Faraco foi encontrar equivalências para algumas referências culturais próximas a George Steiner, mas distantes dos leitores brasileiros.

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[…] tradutor é também um antitheos que viola a divisão natural, divinamente sancionada entre as línguas (que direito temos nós de traduzir?), mas que afirma, por meio da negação rebelde, a unidade última, não menos divina, do logos. No choque implosivo e na chama da tradução concreta, ambas as línguas são destruídas e o significado entra, momentaneamente, na “escuridão vívida” (a imagem do enterro de Antígona). Mas uma nova síntese emerge, uma harmonização do grego ático do século V com o alemão do início do século XIX. É uma expressão estranha, porque não pertence integralmente a nenhuma das línguas. Ainda assim, está, mais que o grego ou o alemão, carregada com correntes de significado mais universais, mais próximas das fontes de toda a linguagem verbal.

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DEPOIS DE BABEL

Autor: George Steiner
Editora: UFPR
Preço: R$ 85,00 (144 págs.)

 

 

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