Literatura

Há uma pessoa que faz uma coleção de areia

10 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A Companhia das Letras está fazendo uma baita promoção, somente até dia 15 de junho: são 300 títulos com 50% de desconto. A lista completa dos livros pode ser conferida no site da editora.

Italo Calvino

Entre eles, Coleção de areia, de Italo Calvino. Trata-se de uma coletânea de textos esparsos, sobre os mais variados assuntos. Aqui, o escritor desiste deliberadamente de buscar uma síntese qualquer ou traçar um esboço de trajetória. Lançado originalmente em 1984, é considerado uma deriva contínua por temas e formas que sempre obcecaram o autor. Em textos breves, o livro apreende a periferia do olhar: a exposição aparentemente anódina, o fato bizarro, a galeria de monstruosidades, o efêmero. Segundo o autor, o livro é um inventário de “coisas vistas”, sobre o visível, sobre o próprio ato de ver e sobre “o ver da imaginação”. Os textos se acumulam segundo o puro arbítrio, como diário em público e autobiografia tímida, sendo a expressão mais acabada da amplitude de perspectivas, da discrição e da curiosidade onívora do escritor.

“… coleção de areia era a menos chamativa mas também a mais misteriosa, a que parecia ter mais coisas a dizer, mesmo através do vidro opaco das ampolas”.     

Calvino publicou Coleção de areia em 1984, um ano antes de morrer. Traduzido por Maurício Santana Dias, o livro foi lançado no Brasil em 2010.

A edição brasileira acrescentou uma “Apresentação”, escrita por Calvino, incluída sem assinatura na quarta capa da primeira edição. Um parágrafo curto, no qual o escritor discorre sobre sua obra e sobre ele próprio, na terceira pessoa. Ali Calvino sutilmente revela, como analisou Kelvin Falcão Klein, no seu blog, “Um túnel no fim da luz”, “um pouco de sua postura intelectual, uma mistura de leitor e escritor, arquivista e curioso. A primeira frase localiza no espaço seus últimos anos de produção: “De Paris, Italo Calvino envia de vez em quando ao jornal em que colabora um artigo sobre alguma exposição insólita” – o que remete a outra coletânea de esparsos publicada recentemente, Eremita em Paris. Ele envia “de vez em quando”, quando encontra algo “insólito”, quando capta alguma oscilação digna de nota no cenário intelectual. O que ele busca, contudo, é a possibilidade de “contar uma história por meio de um desfile de objetos”, desde mapas e tabuletas até manequins e gravuras populares. Para Calvino (e também para Agamben, Vila-Matas, Duchamp e Walter Benjamin), a miniaturização é a cifra da história, e os objetos negligenciados dão acesso a esse enigma (por isso, teria sido excelente se a edição contasse com fotografias, fazendo das andanças de Calvino um par possível para as andanças de Sebald (e também de Canetti ou Claudio Magris, todos também carentes de iconografia). Falcão Klein aponta ainda que Calvino “traça sua fisionomia: “onívora curiosidade enciclopédica”, “discreto afastamento de qualquer especialismo”, “prazer de confiar as opiniões às entrelinhas”, “meticulosidade obsessiva” e “contemplação desapaixonada da verdade do mundo”. Uma política do pudor, exatamente como aquela que Benjamin via em Robert Walser. O percurso intelectual que, de repente, revela os traços do rosto de seu criador, como em Borges”.

Segundo Marcelo Coelho, porém, em análise escrita para o jornal Folha de São Paulo, os textos reunidos são cansativos e não transcendem o gênero e o livro agrada só aos fãs incondicionais: “Está longe de ser um livro desinteressante, mas o que predomina é um tom relatorial e descritivo, no qual a marca do autor está mais na escolha de cada assunto do que em sua capacidade de transcendê-lo. Reconhece-se o gosto de Calvino pela literatura fantástica, pelo artifício, pelo arbitrário, e a relativa ausência de preocupações políticas, morais ou psicológicas nesses artigos. Mesmo em relatos de viagens ao Irã (1975) e ao México (1976), somente se notam levíssimas menções à situação da época. “Jamais senti atração por vísceras”, diz o autor a propósito dos modelos de cera que foi visitar, “assim como nunca me senti fortemente inclinado a explorar a interioridade psicológica”. Para o crítico, “É sobre Roland Barthes o melhor texto de “Coleção de Areia”. Calvino analisa um livro de Barthes sobre fotografia associando-o à notícia, que acabava de receber, da morte do semiólogo, num ensaio ao mesmo tempo expositivo e emocionado.
A premonição da própria morte, que Calvino percebe nas páginas de Barthes, sem dúvida reverbera no livro.
Certa sensação de aridez, de cansaço e de acúmulo informativo marca o livro inteiro, que se pode recomendar, em todo caso, aos fãs incondicionais do autor”. 

Já para José Antônio Cavalcanti, em artigo publicado no Jornal do Brasil, Coleção de areia “registra a necessidade de transformar o escorrer da própria existência numa série de objetos salvos da dispersão, ou numa série de linhas escritas, cristalizadas fora do fluxo contínuo do pensamento. Ao explorar a diversidade temática numa sucessão de micronarrativas, o autor se expôs ao risco de criar um conjunto cuja força da deriva poderia produzir uma gangorra qualitativa, porém, graças à leveza e à argúcia de um olhar disposto a captar a luz dos acontecimentos a partir de um ângulo extremamente original, o leitor não sente os desníveis, aprisionado a um leve sopro de palavras capaz de limpar seres, objetos e lugares da camada de invisibilidade e indiferença sob a qual permanecem intocados”.

Outro livro de Italo Calvino que integra a relação dos livros da promoção é Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade, livro publicado originalmente em 1980, que reúne uma parte da crítica que o próprio autor considerava a mais representativa de seu percurso intelectual. “Intelectual engajado” no melhor sentido do termo, mas sem ceder a dogmatismos, Calvino, partindo quase sempre da situação italiana – Pavese e Vittorini, Manzoni, Pasolini –, mas com uma visada de amplo espectro, avalia e revê em perspectiva suas tomadas de posição desde a juventude militante até a maturidade, podendo finalmente ver na sequência de seus textos “uma história que tem seu sentido”.

 

A Companhia das Letras disponibiliza trechos, para visualização, tanto de Coleção de areia, como de Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade.

 

_____________

Trecho – Coleção de areia, Parte 1:

EXPOSIÇÕES. EXPLORAÇÕES

Há uma pessoa que faz coleção de areia. Viaja pelo mundo e, quando chega a uma praia de mar, à orla de um rio ou de um lago, a um deserto, a uma charneca, recolhe um punhado de areia e o carrega consigo. Na volta, esperam-na alinhadas em longas prateleiras centenas de frasquinhos de vidro nos quais a fina areia cinzenta do Balaton, a areia alvíssima do golfo do Sião, a vermelha que o curso do Gâmbia deposita pelo Senegal abaixo desdobram sua limitada gama de cores esfumadas, revelam uma uniformidade de superfície lunar, mesmo passando por diferenças de granulosidade e consistência, do cascalhoso preto e branco do Cáspio, que parece ainda encharcado de água salina, aos minúsculos pedriscos de Maratea, igualmente pretos e brancos, à sutil farinha branca pontilhada de caracóis lilases de Turtle Bay, perto de Malindi, no Quênia.

Numa exposição de coleções estranhas que houve recentemente em Paris — coleções de chocalhos de vacas, de jogos de tômbola, de tampas de garrafa, de apitos de terracota, de tíquetes ferroviários, de piões, de invólucros de rolos de papel higiênico, de distintivos colaboracionistas da ocupação, de rãs embalsamadas —, a vitrine da coleção de areia era a menos chamativa, mas também a mais misteriosa, a que parecia ter mais coisas a dizer, mesmo através do opaco silêncio aprisionado no vidro das ampolas. Passando em revista esse florilégio de areias, o olho capta primeiro apenas as amostras que mais se destacam, a cor ferrugem de um leito seco de rio no Marrocos, o branco e preto carbonífero das ilhas de Aran ou uma mistura cambiante de vermelho, branco, preto, cinza que traz na etiqueta um nome ainda mais policromo: ilha dos Papagaios, México.

Depois as diferenças mínimas entre areia e areia obrigam a uma atenção cada vez mais absorta, e assim, pouco a pouco, entra-se numa outra dimensão, num mundo que não tem outros horizontes senão essas dunas em miniatura, onde uma praia de pedrinhas cor-de-rosa nunca é igual a outra praia de pedrinhas cor-de-rosa (misturadas com os brancos da Sardenha e das ilhas Granadinas do Caribe; misturadas com os cinzas de Solenzara, na Córsega), e uma extensão de cascalho miúdo e preto em Port Antonio na Jamaica não é igual a uma da ilha Lanzarote nas Canárias nem a outra que vem da Argélia, talvez do meio do deserto.

Tem-se a impressão de que essa amostragem da Waste Land universal esteja para nos revelar alguma coisa importante: uma descrição do mundo? Um diário secreto do colecionador?

Ou um oráculo sobre mim, que estou a escrutar nestas ampulhetas imóveis minha hora de chegada? Tudo isso junto, talvez.

Do mundo, a colheita de areias selecionadas registra um resíduo de longas erosões que é simultaneamente a substância última e a negação de sua exuberante e multiforme aparência: todos os cenários da vida do colecionador surgem mais vivos que numa série de slides coloridos (uma vida — dir-se-ia — de eterno turismo, como aliás parece ser a vida nos slides, e assim a reconstituiriam os pósteros se restassem somente eles como documentos de nosso tempo — um deleitar-se em praias exóticas alternado a explorações mais arriscadas, numa inquietude geográfica que trai uma incerteza, uma ânsia), evocados e ao mesmo tempo cancelados pelo gesto já compulsivo de inclinar-se para recolher um pouco de areia e encher um saquinho (ou um recipiente de plástico? ou uma garrafa de coca-cola?) e depois dar meia-volta e ir embora.

_____________

 

COLEÇÃO DE AREIA

Autor: Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 21,00 (232 págs.)

 

 

Send to Kindle

Comentários