“Long-Lost Trove of Music Connects Brazil to Its Roots” (clique aqui para o artigo original, em inglês)
Por Larry Rohter
A partir da metade dos anos 1930, o etnomusicólogo norte americano Alan Lomax liderou expedições para a região sudeste dos EUA (Carolina do Sul, Georgia, Alabama, Mississippi e Louisiana), procurando por autênticos cantores de blues e música folk. Graças a essa diligência, Muddy Water e Woody Guthrie fizeram suas primeiras gravações e estabeleceram um modelo para a musica popular norte americana.
No início de 1938, Mario de Andrade, secretário municipal de cultura de São Paulo na época, enviou para o nordeste brasileiro quatro membros da Missão de Pesquisa Folclórica numa expedição semelhante. Seu intuito era gravar o mais rápido possível a maior quantidade de música que conseguisse antes que as influências prejudiciais do rádio e do cinema começassem a transformar a cultura da região.
Viajando ora de caminhão, ora a cavalo e com burros, eles gravaram o que quer e quem quer que fosse interessante: carregadores de piano, vaqueiros, mendigos, macumbeiros, trabalhadores das minas, pescadores, dançarinos e até crianças brincando.
Entretanto, o material coletado pela expedição brasileira foi logo esquecido. Somente agora, após aproximadamente 70 anos, os registros aos quais Mario de Andrade se referia como “tesouro extraordinário condenado ao desaparecimento” estão disponíveis, incorporados numa caixa de seis CDs que documentam as raízes de praticamente todos os estilos de música popular brasileira importantes, do samba ao mangue beat.
“Este é um acontecimento importante pois todas as principais tendências, seja de origem européia, afriacana ou indígena, estão representadas e são reconheciveis”, disse Marcos Branda Lacerda, o diretor do projeto da caixa de CDs, organizado pelo governo da mais importante e próspera cidade brasileira. “Tudo foi incluido, e quando ouvi-lo, você poderá perceber as influências que iriam propagar-se dali em diante” e fazer da música brasileira a potência global que representa hoje.
A coletânea de CDs, chamada “Música Tradicional do Norte e Nordeste 1938“, é formada por mais de sete horas de música, extraidas de 1299 faixas de 80 artistas, totalizando aproximadamente 34 horas, que a comissão gravou em cinco estados do norte e nordeste brasileiros durante a primeira metade de 1938.
Muitos dos estilos documentados nas gravações evidemciaram-se como influências do movimento do Tropicalismo, que emergiu no Brasil nos anos 1960 e hoje em dia possui entusiastas internacionais como David Byrne, Beck e Devendra Benhart. Os fundadores do Tropicalismo, principalmente Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil – atual ministro da cultura – vieram do nordeste, do interior do estado da Bahia e reconhecem abertamente esta influência.
“Esta é a música que eu ouvia quando criança na loja de meu pai, e é de onde toda a riqueza e força da música popular brasileira vem”, declarou Tom Zé numa entrevista. “Filhos de portugueses, Caetano e Gil e todo o resto dos tropicalistas absorveram essa influência popular, transmutaram-na e mostraram-na ao mundo”.
Tom Zé também notou que a música do nordeste brasileiro que veio de Portugal era já um resultado de miscigenação cultural, especialmente da dominação árabe do território portugues durante a Idade Média. As letras de algumas canções da compilação datam de antes das histórias de trovadores daquela época, mas a presença árabe manifestou-se principalmente no estilo de voz caracterizado pela predileção por modulações vocais (bend notes).
“Esta influência ainda permanece na musica popular brasileira de hoje em dia”, ele disse. “Eu a ouço de maneira clara e bonita quando Caetano canto. Ele desenvolveu um jeito sofisticado e inventivo de usar estas modulações que era comuns nos cantores que costumávamos ouvir nos sertões nordestinos.”
Apesar de o foco principal da expedição ser o ritmo, violeiros ficarão interessados principalmente no terceiro e no quarto disco, que incluem gravações de campo de duos de conhecidos repentistas. Como no blues, este estilo baseado no violão enfatiza as “perguntas e respostas” e frequentemente utilizava uma mistura de bravatas e insultos que os norte americanos conhecem como “the dozens”.
Trinta anos atrás, após visitar o Brasil, um repórter tocou algumas gravações de repentistas para o violonista primitivista John Fahey. Interessado em música popular mundial, Fahey demonstrou curiosidade em relação aos tons e escalas utilizadas e apontou que algumas das vocalizações ásperas, brutas e até mesmo nasais lembravam-no de Son House e Bukka White.
“Arrepia-me de pensar nas similaridades” entre o blues norte americano e a música nordestina, disse Tom Zé. “É como se a Mãe África tivesse netos no Alabama e em Pernambuco”, o estado onde a expedição começou a missão.
Das três principais vertentes culturais que se misturaram para fazer do Brasil o que ele é, o Ameríndio é o elemento menos representado nos discos em relação aos elementos europeus e africanos, afirmou Lacerda. Entretanto, a coleção contém músicas executadas por bandas de pífanos, os grupos de pífanos e de tambores que são de origem indígena, e também gravações de praiás, um grande ritual musical indígena que praticamente desapareceu do Brasil.
O projeto original foi idéia de Mario de Andrade, um dos mais proeminentes intelectuais do modernismo brasileiro e do século 20. Poeta, romancista, crítico, historiador da arte, musicólogo e funcionário público, Mário de Andrade estudou para ser pianista mas em 1923 tornou-se um dos fundadores do movimento modernista, que dominou a cena cultural brasileira nas décadas seguintes.
“Nos anos 1930, Mario de Andrade e outros sentiram a úrgencia de registrar as manifestações de cultura popular antes que fosse tarde de mais”, disse Flavia Camargo Toni, uma musicóloga que escreveu parte das notas para a coletânea. “A maioria dos nordestinos não haviam recebido energia elétrica ainda, portanto a vida lá estava completamente isolada, poucos haviam viajado. Ele então achou que devia tomar vantagem daquele momento”.
Durante a segunda guerra mundial, cópias das gravações foram enviadas para a Biblioteca do Congresso em Washington. Uma década atrás, Rykodisc lançou um single, co-produzido por Mickey Hart, baterista da banda Grateful Dead, chamado “The Discoteca Collection”, como parte do Projeto de Músicas em Extinção da Biblioteca do Congresso de Washington, mas foi somente a partir de 2000 que os esforços para restauração começaram no Brasil.
“Quando eu vi o material pela primeira vez nos anos 1980, o telhado estava ruindo, havia água entrando no local, e eu achei que nós iriamos perder tudo aquilo”, disse Lacerda. “Mas eu fiquei extremamente surpreso quando descobri que quase todos os discos de 78 rotações estavam em boas condições, e quando não estavam, nós tinhamos a sorte de achar cópias que pudessemos copiar diretamente para CD e eliminar os ruidos”.
Durante suas viagens, a expedição de Mario de Andrade também coletou intrumentos musicais e outros objetos além de terem filmado e fotografado danças e festivais. O resultado destas experimentações tem sido mostrado no Centro Cultural de São Paulo (CCSP), incluindo as anotações de campo da expedição, os equipamentos originais utilizados e transcrições de entrevistas com os artistas.
Na época das gravações, o Brasil era comandado por um regime ditatorial que havia banido as práticas religiosas Afro-Brasileiras. Consequentemente, a expedição precisou de uma carta de autorização para a polícia para poderem realizar o trabalho, e “uma quantidade razoável de objetos coletados, especialmente os tambores, vieram da seção de materiais confiscados das estações policiais”, disse Vera Lucia Cardim de Cerqueira, a curadora do centro.
Apesar de toda sofisticação da música brasileira e sua exposição à estilos de música internacionais nos últimos anos, essa herança continua relevante. Tom Zé referiu-se especificamente ao “What’s Happening in Pernambuco: New Sounds of the Brazilian Northeast” (O que está acontecento em Pernambuco: Novos sons do nordeste brasileiro), que foi lançado pelo selo de Byrnes Luaka Bop em fevereiro de 2006 e que está saturado de ritmos derivados das documentações daquela expedição segundo ele.
No passado, no Brasil “não havia uma cultura de preservação”, disse Camargo Toni, dificultando a tarefa de contextualizar corretamente a evolução musical do país. Mas ao menos com a disponibilização das gravações da expedição, os brasileiros agora “têm a possibilidade de ouvir o passado pensando no futuro”.
“Agora podemos mostrar quem nós eramos, o que somos e como isso aconteceu”, ela disse.