A Companhia das Letras acaba de lançar a tradução feita por Rubens Figueiredo da novela A estepe – História de uma viagem, de Tchekhov.
Trata-se da primeira narrativa mais extensa do russo, então com 28 anos de idade e já reconhecido colaborador de jornais e revistas literárias, com suas prosas curtas.
O texto acompanha a viagem de um menino que parte para estudar em outra cidade e, para tanto, percorre por alguns dias a vasta estepe russa. Múltiplo, traça, através da experiência do protagonista, e aliada à rica descrição da paisagem natural, uma precisa interpretação sobre tipos humanos, sobre atividades econômicas e as relações sociais delas decorrentes. Percorre, assim, um panorama que atravessa mudanças de comportamento, individuais e coletivas.
Em uma de suas cartas, Tchekhov descreveu um de seus grandes impulsos literários: “Meu objetivo é matar dois pássaros com um tiro: descrever a vida de modo veraz e mostrar o quanto essa vida se desvia da norma. Norma desconhecida por mim, como é desconhecida por todos nós”. Sua exposição da alma humana é objetiva, defende que a principal responsabilidade pela condição humana é fruto da própria natureza humana, não da injustiça social do mundo.
A professora e pesquisadora Elena Vássina, em artigo publicado na revista Cult, contextualiza: “Entre o estrelado áureo dos escritores russos do século 19, Anton Tchekhov (1860-1904) ficou consagrado como o mais ousado transgressor da tradição literária clássica e um importante precursor das formas e da linguagem artística contemporânea”. O escritor, tido como indubitável mestre das narrativas curtas, conseguiu, em cada conto, como analisa Vássina, “recriar o microcosmo literário que abrange o infinito e a imensidão do ser humano e do mundo”. A professora cita a bela definição do contista feita pelo colega Alfredo Bosi: “um pescador de momentos singulares cheios de significação”. Sobre a primeira fase da obra literária de Tchekhov, da qual faz parte a novela A estepe, Elena Vássina pontua que seu tema dominante “poderia ser definido como a ridicularização do que se considera ‘normal’, ou seja, daquele ‘bom senso’ vulgar e mercantil que rege e reina na vida corriqueira. Desde o início do trabalho literário, forma-se um traço muito peculiar da poética tchekhoviana: uma total economia de meios artísticos, ou seja, a específica ‘avareza’ verbal que obriga o autor a cortar cada palavra supérflua, cada frase escassa para atingir um alto grau de condensação formal. O escritor mergulha na vida cotidiana cheia de fatos miúdos para captar através deles o essencial e o eterno da existência humana”. Em A estepe, “uma das suas obras primas”, a professora analisa que “se reflete uma imagem da infinita planície russa e seus tipos humanos, tudo recriado pelo prisma da percepção infantil do seu personagem principal, um garoto Iegóruchka, que faz uma longa viagem para ir estudar, acompanhado de seu tio e de um padre”.
Em cartas para o então célebre escritor Grigoróvitch, o autor afirmou que a novela tinha “algo de estranho e excessivamente original”. Disse o escritor: “Estou retratando a planície, a vastidão lilás, os criadores de ovelhas, os judeus, os popes, as tempestades noturnas, as estalagens, os comboios, os pássaros da estepe etc. Cada capítulo constitui um conto à parte, e todos os capítulos estão ligados em íntima relação, como as cinco figuras da quadrilha. Estou me esforçando para que eles tenham o mesmo aroma e o mesmo tom, o que poderei conseguir mais facilmente por haver uma personagem que atravessa todos os capítulos”. Segundo Tchekhov, a obra poderia ser qualificada como “uma enciclopédia da estepe” e, ainda que analisasse “insignificante” o argumento da novela, disse: “Pode ser que ela abra os olhos de meus contemporâneos e lhes mostre quanta riqueza, quantas jazidas de beleza permanecem ainda intactas e como ainda são estranhas ao artista russo”.
Sob sua pena, até mesmo os cheiros do verão e da estepe russa tornam-se sensíveis. A própria paisagem da estepe – com seus poucos habitantes, povoada por histórias fantásticas e lendas – acaba por ser a personagem central da narrativa do percurso dessa viagem.
A Companhia das Letras disponibiliza trecho para visualização.
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Trecho:
Enquanto isso, diante dos olhos dos viajantes, se alastrava a planície vasta, infinita, cortada por uma cadeia de colinas. Comprimindo-se e espreitando umas por trás das outras, essas colinas se fundiam numa ondulação que se estendia à direita, da estrada até o horizonte, e desaparecia na vastidão lilás; a gente anda, anda e não consegue distinguir onde ela começa e onde acaba… O sol já espiava atrás da cidade e, calmo, sem alarde, dava início a seus trabalhos. Primeiro, uma faixa larga amarelo-clara rastejou bem distante, onde o céu ia ao encontro da terra, perto de pequenos kurgan e de um moinho de vento, que visto de longe parecia um homenzinho abanando os braços. Um minuto depois, uma faixa igual brilhou um pouco mais perto, se arrastou para a direita e ganhou as colinas. Alguma coisa quente roçou as costas de Iegóruchka, uma faixa de luz, que se aproximou sorrateira por trás, esgueirou-se entre a charrete e os cavalos, disparou ao encontro de outras faixas e, de repente, toda a vasta estepe se desfez da penumbra, sorriu e brilhou com o orvalho.
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A ESTEPE – (HISTÓRIA DE UMA VIAGEM)
Autor: Anton Tchekhov
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 17,43 (144 págs.)