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O riso como instrumento crítico

10 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Honoré Daumier, “Le passé´. Le présent. L’avenir”

Concetta D’Angeli e Guido Paduano, professores da Faculdade de Línguas e Literatura Estrangeiras da Universidade de Pisa, no livro O cômico articulam conceitos estéticos, literários e psicanalíticos para pensar algumas dimensões críticas da risada. Os autores partem do cômico como aspecto fundador da história da literatura, seja através de textos de autores como Shakespeare e Cervantes, seja enquanto subversão popular carnavalesca. Sua análise passa por aspectos do riso levantados por Freud, que o compreendia como um importante mecanismo de defesa, de constituição de autonomia e individualidade. Ao decorrer do livro, perspectiva-se um panorama do cômico na literatura, mostrando como ele satirizou manias, vícios e incoerências políticas e sociais, como ridicularizou a estupidez, possibilitou transgressões, tangenciou a loucura, serviu como via de questionamento sobre a moral, a razão, a morte. Um guia para a classificação e análise dos aspectos retóricos e linguísticos relacionados ao cômico nos textos literários.

Se, por um lado, a tragédia cria no espectador um estado de tensão, cujo ápice é o processo catártico da ação, a comédia, por outro lado, libera as mesmas tensões através do riso. Na comédia, a provocação do riso, lembra e estabelece os valores morais de uma dada sociedade, mas também pode relativizá-los. É pelo não cumprimento das regras estabelecidas que os homens “riem-se uns dos outros todos”, e, ao fazê-lo, riem de si mesmos, pois reconhecem-se parte de uma mesma sociedade.

Os autores, portanto, abordam o riso sob o ponto de vista da inadequação. Alargam a noção do que é o cômico, partindo da definição psicanalítica freudiana, que estabelece o cômico como inapropriado socialmente, como uma criança em relação ao mundo adulto. Segundo os autores: “O cômico exerce uma outra função repressiva tradicional: obrigar a inadequação, por estupidez ou loucura,  a compartilhar dos pressupostos e das coordenadas mentais do grupo; e mesmo neste juízo social há implícita uma natureza de compromissos que de certa forma o coloca, de certa forma, no lugar dos manicômios”.

Segue-se, assim, no livro, a trilha aberta por Bergson, em O riso, que busca o origem social do riso. Mas, se para Bergson existe uma possibilidade de separação entre a comicidade e a vida, para D’Angeli e Paduano o riso tem necessariamente uma função social e moral, pois é possibilidade de correção da inadequação na sociedade, uma vez que o objeto ridículo é moralmente inferiorizado em relação àquele que dele ri, como uma criança em relação a um adulto. “O conjunto social exprime pelo riso”, dizem os autores, o “confronto de suas partes marginais, que se veem acusadas de não ter atingido o equilíbrio moral e racional que a própria sociedade acredita existir em suas leis escritas e, sobretudo, não escritas”.

Um comediante, pelo aspecto burlesco porque caricatural, faz seus expectadores, portanto, imediatamente conscientizarem-se do desvio da norma, e posicionarem em consonância a ela.

Os autores abordam algumas manifestações cômicas, como a crítica dos vícios, das manias, o riso político-social, o transgressor. O riso, nessas situações, é restaurador dos valores e costumes, possibilidade de modificação da sociedade. O cômico ridiculariza as relações corruptas, desde um casamento por interesses até a corrupção pública, judiciária e política. O escritor que faz rir cria uma relação reformista com a sociedade.

O vício coletivo que se transforma em norma, bem como a “imoralidade estruturada sob a forma do poder político constituem um obstáculo difícil de se superar pela ação opositiva concreta do indivíduo”, por outro lado, também há “circunstâncias exteriores que tornam ineficaz ou mesmo impossível o ataque verbal explícito”. O cômico, portanto, tem o poder de criar uma consciência crítica pelo desvio, capaz de alimentar a reação contra a estrutura social escarnecida. A agressão cômica, segundo os autores, equivale a uma batalha política

Traduzido por Caetano Waldrigues Galindo, O cômico foi publicado no Brasil pela editora da UFPR.

 

O CÔMICO

Autores: Concetta D’Angeli e Guido Paduano
Editora: UFPR
Preço: R$ 35,15 (310 págs.)

 

 

 

 

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