“Saí para me divertir, acabei num enterro. Um parente distante. No entanto, conselheiro de colégio. Viúva, cinco filhas, todas donzelas. Só em sapato, o quanto não vai isso!” – Dostoiévski, trecho de “Bóbok”.
Os Contos reunidos, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), foram há pouco publicados pela Editora 34, com traduções, diretas do russo para o português, de Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra, Fátima Bianchi, Priscila Marques e outros, sob organização de Fátima Bianchi. A coletânea abrange 28 contos de Dostoiévski, escritos do primeiro ao último ano de sua vida literária. Buscando a fidelidade quanto ao espírito da obra dostoievskiana, a edição compreende uma concepção ampla de “conto”, de modo que inclui também breves novelas, narrativas autônomas dentro de romances e peças jornalísticas com viés ficcional.
Além dos contos mais conhecidos do início de carreira do autor, como “O senhor Prokhártchin”, “Romance em nove cartas” e “Uma árvore de Natal e um casamento”, destaca-se na coletânea a primeira narrativa breve publicada por Dostoiévski, “Como é perigoso entregar-se a sonhos de vaidade” (1846), o conjunto de textos de ficção publicados em Diário de um escritor (periódico editado pelo próprio Dostoiévski entre 1873 e 1881), além das duas versões de “A mulher de outro e o marido debaixo da cama” e “O ladrão honrado” (1848 e 1860).
Na apresentação ao volume, Fátima Bianchi comenta que é encontrada, na obra de Dostoiévski, “uma realidade social e humana extremamente complexa, marcada pela instabilidade, pela ruptura de tradições, pela destruição de antigos valores morais e espirituais e a inexistência de valores alternativos”. A professora cita o estudioso russo G. K. Schénnikov, segundo quem Dostoiévski “percebeu que ‘não eram apenas as relações entre as pessoas, as formas de prática social, os interesses que mudavam, mas também a noção do homem sobre si mesmo e o seu lugar no mundo’.
Daí sobressair-se em sua obra uma caracterização da realidade tão aparentada do ‘caos’”. Para Bianchi, “há uma sensação de dor presente em toda a sua obra, desde a primeira até a última, até nas circunstâncias mais inusitadas, como um sentimento dominante, que surge de um mal generalizado existente na sociedade, na natureza humana e em todo o universo”.
De acordo com o crítico Kelvin Falcão Klein, em resenha publicada no jornal O Globo: “Para aqueles que têm familiaridade com a obra de Dostoiévski, Contos reunidos pode funcionar como uma espécie de seleção dos melhores momentos, uma antologia organizada cronologicamente que permite observar a recorrência de temas ao longo do tema e as transformações no estilo do escritor e na psicologia dos personagens. Para aqueles que pouco ou nada leram do autor, Contos reunidos pode funcionar como um laboratório de teste, com a vantagem oferecida pela própria forma conto, que permite ao leitor o relacionamento com o conjunto da obra de um escritor sem ter de arcar com o investimento de uma leitura mais detida (como as 700 páginas do romance Os demônios, por exemplo). Essa visada panorâmica ganha ainda mais sentido se observarmos que, além de reunir textos independentes, publicados em revistas e pensados como contos, Contos reunidos também incorpora três fragmentos de romances: ‘O sonho de Raskólnikov’, extraído de Crime e castigo (1866), ‘A história de Maksim Ivánovitch’, extraído de O adolescente (1875) e ‘O grande inquisidor’ extraído de Os irmãos Karamázov (1880). Além disso, Contos reunidos também reapresenta textos de Dostoiévski previamente publicados em volumes independentes, como é o caso do conto ‘Bobók’ e da novela ‘O crocodilo’”. É interessante como Klein nota e exemplifica o quão notável, ao longo dos contos de Dostoiévski, é a mistura entre o trágico e o cômico, bem como, por outro lado, “abundam também os momentos — às vezes frases isoladas dentro do fluxo da narrativa — que operam o contraste ou confronto entre o cômico e o trágico, como em ‘A dócil (uma narrativa fantástica)’, de 1876: ‘Rezei de joelhos durante cinco minutos, quando o que pretendia era rezar por uma hora, mas só faço pensar, pensar o tempo todo, e só pensamentos doentios, pois minha cabeça está doente — de que adianta rezar assim? É até pecado!’. Dentro daquilo que Mikhail Bakhtin chamou de ‘polifonia’ em Dostoiévski, reconhecemos a mescla entre a crendice estéril e a devoção metafísica, numa reza que parece a princípio interrompida pelo cansaço ou pela falta de paciência, mas que se justifica a partir da turbulência mental. A minúcia artística desses deslocamentos é o que há de melhor na poética de Dostoiévski como um todo e em Contos reunidos em particular”.
Sobre a noção de polifonia dostoievskiana, Sérgio Schaefer, Professor da UNISC, de Santa Cruz do Sul, no artigo “Dialogismo, polifonia e carnavalização em Dostoiévski”, comenta que o regime czarista russo, “anterior à revolução bolchevique, também se estruturava fundamentalmente de forma centralizadora, mesmo que em outras circunstâncias históricas, sociais e econômicas. É no coração dessa forma política que Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881) produz a sua obra. Bakhtin percebe que ela vem perpassada de uma novidade surpreendente. Partirá dessa novidade para fundamentar e corroborar seus estudos linguísticos e literários”. De acordo com Schaefer, “a maneira como Dostoiévski apresenta a palavra, em seus romances, novelas e contos, é aberta, sempre pronta a ser dissolvida, confrontada e ressignificada entre os personagens”. É a própria palavra que, na obra de Dostoiévski, “é entranhadamente dialógica e, por isso, precisa manter a possibilidade de diferenciação. Enquanto vai de um jeito e volta de outro, enquanto sobe devagar e desce correndo, enquanto se enreda num enunciado e se desenreda em dois, a palavra vai formando um corpo de ideias e desideias de contorno diverso, mas unificado. É a polifonia, segundo a terminologia bakhtiniana. […] Assim como acontece com os sons na polifonia musical, na polifonia literária os diversos personagens falam uns com os outros e, por vezes, com o leitor – que, nesse caso, também se torna um personagem – diferenciando suas palavras no interior de uma rica unidade. Na obra musical polifônica, as notas e as linhas melódicas se apresentam de modo individualizado, mantendo sua independência em meio à democracia do conjunto. Na obra literária polifônica, as palavras enunciadas pertencem a cada personagem, mas só ganham sentido quando se perdem na rede jogada por outra palavra de outro personagem. A diversidade das palavras se polifoniza, isto é, forma um conjunto por meio da singularidade e da valência de cada uma”.
À forma polifônica Dostoiévski dá um significado dramaticamente humano, através do qual as ambivalências, irresolutas, pulsam. Todos os semi-tons da alma são chamados a dialogar. Segundo o crítico Ubiratan Brasil, em artigo escrito por ocasião do lançamento dos Contos reunidos, publicado no jornal O Estado de São Paulo, “desde sua estreia na literatura com Gente Pobre, em 1846, Dostoiévski trabalhou com os aspectos inaceitáveis do homem: os maléficos. Na primeira fase da carreira, havia, como um constante pano de fundo, o socialismo utópico, de inspiração cristã, que se expressa na paixão lírica pelos mais pobres. ‘Sem maiores cerimônias, Dostoiévski passa do humor e da farsa ao grotesco e ao sublime’, afirma o também pesquisador Samuel Titan Jr., no texto da orelha do livro. ‘Volta e meia, o resultado é desnorteante, tanto pelo engenho verbal como pelo empenho encarniçado em chegar ao cerne humano e histórico das situações e personagens em cena’. Decisivo como laboratório literário, o conjunto de contos revela a compaixão profunda para com o sofrimento e a humilhação que tornou Dostoiévski um dos maiores escritores humanistas da literatura mundial”.
A Editora 34 disponibiliza o sumário de Contos reunidos para visualização.
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. Trecho .
– Quer dizer então, Astáfi Ivánovitch, que você, um homem tão corajoso, viu um domovoi? Que história é essa, irmão?
– Bom, ver mesmo eu não vi, senhor – observou Astáfi Ivánovitch, colocando seu copo na mesa e enxugando o suor do rosto com um lenço. – O olho humano não é capaz de enxergá-lo, diferente do que dizem as velhas e os cocheiros vigaristas; mas que ouvi, ouvi. Andou pregando peças em mim, senhor.
– Não faça graça com isso, Astáfi Ivánovitch; depois dessa, vou acabar acreditando em domovois.
– Não estou fazendo graça, senhor – respondeu sorrindo Astáfi Ivánovitch –, aliás, o caso não teve nada de engraçado. Faz uns dez anos, talvez mais, senhor. Eu ainda era jovem. Me aconteceu de ficar doente, senhor. Na época, eu morava na fábrica, trabalhava como auxiliar do zelador. Fui levado para o hospital. Fiquei uns três meses lá, até que não aguentei mais. Quando comecei a melhorar um pouquinho, fingi que estava totalmente curado, enganei o médico e consegui sair. Enfiei-me na fábrica; mas ela tinha pegado fogo na minha ausência; encontrei apenas paredes pretas; o dono fora para Moscou passar um ano. Bom, não tinha onde ficar. Recebi uns trocados; vi que era o suficiente para três meses. Pensei: tenho meus braços para trabalhar. Tentarei costurar roupas para funcionários. Não foi uma boa ideia. Era o começo da primavera, fazia frio. O vento era tão forte… bom, sabe como é Petersburgo! Além do mais, não estava totalmente curado, mal conseguia me manter sobre as pernas. Pensei: vai que eu pego um resfriado, aí não vai ter jeito! Ainda bem que tinha pelo menos uma roupa quente e digna. Era uma ótima pele de cordeiro; ganhei de Emil Vilmovitch, irmão dos senhorios, quando estes haviam chegado de Sarátov. Enfim achei um apartamentinho em Kolomna. O zelador apontou para uma cabana de madeira, um quartinho, e disse que lá em cima havia um canto para alugar. Digo: eh, isso sim é um abrigo para os nossos, como se tivessem feito um buraco no bolso. Entrei: o apartamento tinha apenas um cômodo onde moravam os senhorios, marido e mulher, e suponho que uns cinco filhos, ou seja, era pequenino, pequenino. Me colocaram atrás de um tabique. Comecei a falar com o senhorio e percebi que ele, coisa estranha, não me compreendia. Fui falar com a esposa: a mulher também era muito simples e ingênua; parecia ter uns 35 anos. Alugou-me um canto, ou seja, todo o espaço atrás do tabique e de uma tarimba; tudo isso por dois rublos e meio. “Está ótimo”, pensei, e me mudei.
Passei todo o dia seguinte deitado na tarimba, completamente quebrado, cheguei até a delirar e ainda meio dormindo ouvi que estava acontecendo alguma coisa no quarto dos senhorios. Até aquele momento eu não tinha sido capaz de olhar direito para eles. Somente naquele dia fiquei sabendo, ainda não inteiramente acordado, que as crianças estavam doentes, que o zelador tinha vindo pedir o dinheiro do aluguel e que existia um tal de Klim Fiódorovitch, um benfeitor. Na manhã seguinte, saí sozinho para resolver umas coisas. Anton Fiódorovitch, o príncipe Kamardin, prometera me arrumar um trabalho. Então, senhor, estava caminhando pela Sennáia quando de repente vi um homem correndo, tentando me alcançar. Era um homem bem estranho: comprido, seco, esquisito e, apesar da chuva e do tempo frio, vestia apenas um fraque; falou comigo de forma tão desajeitada que eu não consegui compreender. Perguntei-lhe: “O que há, meu bom homem?”. Olhei seu rosto e, ora!, vi algo familiar e recente. Tinha os olhos marejados, vermelhos, inchados, seu lábio inferior era grosso, pendurado, tinha uma aparência tão tola!… “Ah”, lembrei, “é o dono da casa, não tinha reconhecido”. Comecei a interrogá-lo, mas não conseguia compreender nada; entendi apenas que ele tinha ido à escola de medicina, que seus olhos estavam ardendo, que perdera o capote em plena luz do dia e que tinha sido enviado para entregar um papel para Klim Fiódorovitch. Enfim, vi que estava cambaleando, o pobre homem não conseguia caminhar; resolveu vir atrás de mim, pois havia me reconhecido. Eu o acompanhei; sua esposa respirou aliviada. Ele estava muito doente, abatido e não falava coisa com coisa, estava totalmente atrapalhado. Nós o deitamos debaixo do ícone. Ele continuou resmungando e gritando por Klim Fiódorovitch.
Depois, senhor, fiquei sabendo de toda a história deles pela senhoria. Naquela época, eles moravam na província de Oblómov. Parece que ele era algo como um copista, ela não soube me explicar direito. Soube apenas que trabalhou até 1814 e depois foi seguir sua vida. Era um homem capaz e honrado, embora tolo; e ela também, quando se olhava para ele, parecia tola; tinham um monte de filhos, mas ele não tinha sorte, por mais que se esforçasse. Então, senhor, ele começou a trabalhar num escritório. De lá desapareceram dois mil rublos. Alguém estava surrupiando, começaram a procurar o ladrão; ele foi dispensado. Disseram que não iriam admitir bandidagem naquele escritoriozinho. Então, senhor, ele perambulou, perambulou, até começar em outro escritório; depois, em menos de três semanas o dono do negócio foi levado ao juiz. Então fecharam o escritório. Foi para outro: expulsaram-no. “O senhor certamente trapaceou junto com o dono.” Mas tinham raiva mesmo era do dono: ele encurralou a todos, afinal era muito rico. Andou de lá para cá, e acabou arrumando trabalho no campo, como administrador de um jovem herdeiro. Em um ano torraram metade do patrimônio. Disseram que não precisavam mais dele, já que ele deixou uma coisa daquelas acontecer. Então, o que o homem podia fazer? Arrumou outro trabalho, mas resolveram trocar a chefia, o inspetor antigo fora denunciado, mudaram todo o pessoal. Disseram: não, você é um homem suspeito, além do mais não tem lugar para você aqui. Vamos precisar fazer uns cortes, só…
Nota da tradutora, Priscila Marques: Na cultura eslava, domovoi é um espírito doméstico, que vela pela casa e pela família, garante a fertilidade e a saúde das pessoas e dos animais.
[Conto inacabado, encontrado entre os papéis do escritor russo após sua morte, nunca antes publicado no Brasil; divulgado pelo jornal Folha de São Paulo, em seu caderno Ilustríssima, em abril de 2017]
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Autor: Fiódor Dostoiévski
Editora: 34
Preço: R$ 62,30 (552 págs.)