Artes Plásticas

Passageiro de seu tempo

9 janeiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Alberto Martins, Sem título, 1990, xilogravura

Alberto Martins espelhou, sob o título Em trânsito, o entroncamento da poesia e das artes plásticas na composição de sua poética artística. A primeira manifestação do título foi a exposição de gravuras e esculturas, cujo catálogo, Em trânsito foi publicado pela Pinacoteca em 2007. A segunda materialização foi o trabalho de poesias no livro também intitulado Em trânsito, publicado como livro pela Companhia das Letras em 2010. Ambos os livros, assim como ambos os trabalhos, traçam um trânsito artístico, cuja poética, longe de melancólica, mostra o “frescor de certos crepúsculos”, como define Francisco Alvim na orelha do livro de poesias.

Alberto Martins formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo em 1981 e, no mesmo ano, começou a fazer gravuras, sob a orientação de Evandro Carlos Jardim, na mesma universidade. Em 2007 a Estação Pinacoteca apresentou “Em trânsito”, exposição retrospectiva que reuniu gravuras e esculturas produzidas desde 1987. Como escritor, Alberto publicou, entre outros, os livros Goeldi: história de horizonte, vencedor do prêmio Jabuti; A floresta e o estrangeiroCais, com xilogravuras do autor; A história dos ossos, segundo lugar no Prêmio Telecom de Literatura; A história de BirutaLívia e o Cemitério Africano e a peça de teatro Uma noite em cinco atos.

O livro de poemas Em trânsito consegue deter uma percepção contundente da passagem do tempo, da experiência humana inscrita na consciência constante de um compartilhamento alheio, sentimento de estar no mundo na companhia de uma multidão de desconhecidos.

O livro é dividido em três núcleos: o primeiro, que abarca os poemas iniciais, intitulado “A caminho do trabalho”, nas palavras do autor, “tem a ver com essa condição de usar transporte coletivo, de estar na cidade, cruzar com pessoas na rua, no balcão de um café, de uma padaria, passear com o cachorro na rua. Tem a ver com essa existência pedestre”; o segundo, “Inscrições”, busca o arcaísmo, ao passo que, como diz Alberto, “tem a ver também com a escrita, com a inscrição de coisas que perduram, nos ossos, nas pedras, em caracteres tipográficos; tem a ver com a arte e com o lugar ou não lugar que ela ocupa no mundo”; o terceiro bloco, “Em trânsito”, retoma algumas questões, “junta várias coisas: alguns poemas surgiram a partir do espaço da casa e da noite (mas tomando a casa como parte da cidade, como estando “em trânsito” também); retoma questões que dizem respeito ao trabalho […]; tem a ver com dívidas, com estar endividado (no poema “Noite de insônia do alfaiate” e em outros), e com um certo sentimento de urgência que isso lança sobre tudo (como resolver? como sair desse estado?), sobre a cidade e as relações de troca em geral”.

Marcelo Flores, em resenha publicada na revista Sibila, analisa que a proposta “de explorar uma experiência poética da cidade, da vida urbana e das relações de trânsito e transitoriedade entre os objetos que a habitam” recria a “figura do passante, inspirada em Baudelaire de As flores do mal (1875), o Baudelaire que usa a lírica, pela primeira vez, para investigar a sociedade industrial e seus meios de produção, entre outras questões. A partir dele, o sujeito lírico, como explica Walter Benjamin, perde sua função clássica de aoidos – responsável por cantar a épica e, com ela, a mitologia – e se vê à frente do problema da formulação da subjetividade, por meio do gênero, num mundo massificado pela indústria, no qual os sujeitos se descaracterizam em meio às turbas de passantes e hordas de trabalhadores”. Para Flores, Baudelaire, “ironiza o tempo inteiro, usa os clichês como marca do tédio e da pobreza cultural de seu tempo”; por sua vez, Alberto Martins “propõe ao leitor uma experiência poética quase inviável nos tempos de hoje: “comum, usuário/ que neste mundo engarrafado/ usa o poema/ como meio de transporte”. O autor aparenta desejar apenas fazer do poema um plano de escape para a imaginação, um meio de distração, do leitor “José”, desconsiderando talvez sua possibilidade de se tornar um ato e, assim, operar sobre a realidade por meio da forma, da linguagem, do que há de pragmático nas palavras. O inverso do que faz Baudelaire, que o tem (o poema) como um fim (como o próprio ato)”. Flores segue a crítica:“Martins aparenta pretender uma poesia de patamar existencial de grande adensamento subjetivo; entretanto, não o realiza formalmente, já que, em seu poema, os clichês e elementos banais não se combinam a ponto de fazer dessa contradição uma síntese que surpreenda. […] Usa o clichê modernista, mas não o atualiza, não o torno contemporâneo”.

Fabio Weintraub, em artigo publicado no suplemento cultural Sopro, da editora Cultura e Barbárie, por outro lado, procura examinar algumas figuras da complexa lógica circulatória da metrópole, através da poesia de Alberto Martins, que, em suas palavras, “explora de modo sistemático as relações entre mobilidade urbana e trabalho, mobilidade e memória, circulação e propriedade”. Segundo Weintraub, Martins propõe uma aproximação entre transporte, escrita e inscrição. “Assim, nesse artista, a mobilidade tipográfica da escrita e da gravura não se deteria na fetichização do próprio fazer, não derivaria para a autonomia dos jogos metalinguísticos autônomos, pois nela o lastro (mesmo aquele fornecido pelas fantasmagorias do comércio) torna o trânsito transitivo”.

A jornalista Noemi Jaffé, em artigo publicado em 2007 na Folha de São Paulo, a respeito da exposição realizada na Pinacoteca, observou algo que traduz uma coerência existente nos trabalhos “Em trânsito” de Martins, a busca pelos primórdios da escrita: “Os primeiros escritos eram gravuras. Gravavam-se as palavras com um cravo numa pedra. Daí, certamente, a semelhança sonora entre as palavras, todas derivadas da mesma origem: gravar, grafar, cravar. […] a gravura, além da própria escrita, também guarda reminiscências com a poesia: palavras opacas, como se tivessem perspectiva e tridimensionalidade. As gravuras de Alberto Martins […] são escritos pictóricos de um gravurista que é também um escritor. […] É o sentido do tempo, da memória, da passagem e, principalmente, como diz Guilherme Wisnik no belíssimo texto do catálogo da exposição, a sensação de iminência. […] Os restos, pedaços, cascas de coisas que Martins expõe em suas gravuras, são como os restos de sentidos que nos sobram, metonímias de um mundo em trânsito. Mas deve ser a partir da colagem desses restos que nós poderemos cunhar, quem sabe, uma nova linguagem”.

Segundo Wisnik, “a mobilidade não é apenas um tema abordado formalmente na sua obra, mas o próprio motor criativo que a põe em funcionamento. Princípio que reflete uma compreensão estrutural da natureza mercurial das duas artes, já que a gravura – assim como o texto impresso – é o suporte multiplicável, e portanto circulante, de uma matriz única”.

 

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho de Em trânsito em pdf.

 

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Este livro é para o leitor

atônito, normal
desses que jamais terão
o nome impresso nos jornais
exceto caixa baixa
anúncio final

anônimo, pedestre
modesto passageiro de seu tempo
que por uma questão de espaço
chega sempre atrasado
aos últimos lançamentos

comum, usuário
que neste mundo engarrafado
usa o poema
como meio de transporte

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EM TRÂNSITO

Autor: Alberto Martins
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 21,00 (112 págs.)

 

EM TRÂNSITO: GRAVURAS E ESCULTURAS DE ALBERTO MARTINS

Autor: Alberto Martins
Editora: Pinacoteca do Estado
Preço: R$ 10,00 (119 págs.)

 

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