Jean Galard, Beleza Exorbitante
[Editora Fap-Unifesp, 2012. Tradução de Iraci D. Poleti]
A partir da crítica que a exposição Êxodos, do renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, suscitou na França, o filósofo Jean Galard perpassa a história da arte para encontrar o cerne estético dos desdobramentos morais da obra de arte em geral, do ensaio-documentário fotográfico, em particular.
Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Que se insere na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção discutida no cenário filosófico francês contemporâneo por autores como Gilles Lipovetsky, Jean Serroy[1], Yves Michaud, Baudrillard.
O texto parte de um levantamento empírico – “Diante da realidade brutal” – e então retoma exemplos da história e da teoria da arte para introduzir a questão propriamente estética, e primeira, sobre a própria representação. Ao pensar sobre a estetização da dor, Galard põe em questão o papel da arte e de sua relação com a sociedade e seus valores. A reflexão que seu texto tece extrapola a questão fotográfica e a utiliza como base para abordar de maneira crítica a relação estética entre realidade e representação, mas tomada enquanto princípio de uma dinâmica sociológica da arte. A apreensão “sensacionalista” de uma “estética da fome”[2] caminha junto com a espetacularização da sociedade.
A própria intencionalidade do olhar é analisada de maneira crítica. O estatuto da imagem no mundo contemporâneo, negativo de um questionamento sobre o belo, embate-se necessariamente com uma discussão moral e ética.
“Diante da realidade brutal, sangrenta, que testemunhamos todos os dias através da imprensa e da televisão, o olhar desatina. Como suportar a visão dessas aflições intoleráveis? Não querer olhar seria fugir deste mundo, refugiar-se num conforto egoisticamente cego. Olhar é colocar-se num aposição indigna: a do espectador que assiste passivamente à angústia do outro. Somos culpados – ou de voluntária ignorância, ou de voyeurismo.
Pior ainda: algumas imagens que nos horrorizam, que nos aterrorizam, são muito bem realizadas. São admiráveis, perturbadoras, inesquecíveis. Belas? Esta é a questão”.
Qual a ideia de beleza que faz algumas imagens inesquecíveis? Uma ideia que justifica que a importância dessas imagens não seja apenas documental. Jean Galard deixa por ora a questão em aberto, para dar início à sua argumentação, levantando um problema com o qual a arte há séculos debate-se: a “estranha aliança entre beleza e horror”. A reflexão sobre a arte, diz ele, “tentou levar em consideração a célebre observação de Aristóteles: sentimos prazer em olhar as imagens de coisas cuja visão nos é difícil na realidade”. Porém, um prazer lícito, frente à ficcionalidade da representação – aspecto que justifica a questão ter tornado-se mais polêmica após o advento da fotografia: pois a imagem fotográfica inaugura o questionamento da realidade ou ficcionalidade da obra. Não mais uma representação, a fotografia estampa uma captação da realidade, destarte a subjetividade do quadro por ela formado, ou da oportunidade do momento apreendido. E, ainda mais polêmica, portanto, com a televisão, pela qual os acontecimentos são transmitidos tais e quais e, sobretudo, em tempo real – através das imagens televisivas, somos convidados a testemunhar as tragédias do mundo cotidianamente.
Entre a representação, ou apresentação, e o espectador, surge uma pungente questão, sobre a legitimidade do olhar, sua adequabilidade. À época da exposição de Êxodos em Paris, em 2000, Salgado foi alvo de críticas pela “excessiva beleza” de suas fotos. São imagens que suscitam um mal-estar, pois mostram o horror, mas elas são, outrossim, oferecidas à contemplação. Esta relação, entre beleza e horror, Galard argumenta, perpassa a história da arte. Na fotografia que, como a de Salgado, é exposta em museus e reconhecida como arte, especificamente, a relação gera, porém, um constrangimento maior, dada a apreensão íntima e verossímil da realidade. A fotografia, por sua verossimilhança, é capaz de produzir imagens que inclusive simbolizem a realidade de determinado fato, ocasião; são muitas as fotos emblemáticas, que representam, cada uma, toda uma época e que, em sua diversidade e beleza, perspectivam enquadramentos éticos para a atenção estética.
Relatos de trágicos fait-divers, entretenimento publicitário, noticiário de catástrofes naturais: a plurivocidade de imagens e sua apresentação na mídia de maneira basicamente simultânea e homogênea exigem uma responsabilidade crítica ativa do olhar. “O que ocorre com a atenção estética”, quando não se detém sobre objetos propriamente considerados artísticos, mas “também se dirige aos lugares, às cenas, aos acontecimentos da ‘vida’?”, pergunta Galard. “A estetização é o desvio da atenção estética”e, tendo isso em vista, a partir de uma breve análise do discurso imagético da imprensa, sobretudo televisiva, insistente em exibir uma “imagem da realidade sangrenta, terrificante, bárbara, da qual ‘nós’ somos o ‘público’ cotidiano”, vemos uma sobreposição de cenas que compõem o “afresco de nossa época” que dá título ao primeiro capítulo: uma metáfora irônica que põe em pauta a legitimação do olhar num contexto de ampliação do campo perceptivo – questionamento histórico, sociológico, filosófico. Percebe-se a transformação a que a estetização submete seres, relações, situações, tornando-os “um espetáculo de que se pode usufruir sem se sentir vitalmente implicado”: a estetização “destitui de realidade as pessoas e os acontecimentos”. Nos veículos midiáticos, para atrair a atenção dos espectadores, as imagens são sobrecarregadas de apelo sentimentalista.
“Em alguns lugares”, diz Jean Galard, “diante de certas cenas, a atenção estética, por parecer sem propósito, é tida como um abuso escandaloso”. O abuso, tangente ao questionamento da legitimidade do olhar e de sua apreciação, é justamente a crítica que suscitam as fotografias de Sebastião Salgado, que mostram
“populações atingidas pela desgraça, expulsas pela guerra ou pela pobreza, fugindo para salvar a pele ou arriscando a vida para escapar da miséria – sudaneses, bósnios, afegãos, curdos do Iraque, ruandeses… […] imagens em que a beleza, diz-se, combina demais com a dor. Salgado une a força do testemunho rigoroso àquela, aparentemente, dos melhores sentimentos (de indignação, de denúncia, de engajamento). Acrescenta a isso seu talento de artista hábil em criar efeitos extraordinários”.
A obra do fotógrafo foi, por isso, acusada de se aventurar “perigosamente nos limites da desgraça e da beleza”. As imagens de Êxodos tem, realmente, diz Galard, a particularidade de prender o olhar.
“Ao mesmo tempo, obrigam a encarar os dramas que gostaríamos de eludir e a tomar consciência do estranho fascínio que nos prende (esteticamente?) à imagem daquilo que esquivaríamos. […] Como pensar – e como suportar – que a beleza esteja tão ligada à crueldade?”.
Trata-se de uma beleza difícil: por um lado, uma representação da dor captada ao natural, tão desprovida de pose. Por outro, as imagens criadas tem poder alegórico. Um exemplo da história da fotografia é a “Pietá” de Hocine, imagem que se tornou “o símbolo dos sofrimentos da Argélia”, que “ganhou o status de ‘ícone’”, fato indicado inclusive pelo nome com que ficou conhecida – Pietá, “como se ela fosse um quadro vivo evocando a pintura de algum mestre antigo”. A beleza difícil não é imperativa, mas alusiva. Segundo Ricardo Nascimento Fabbrini[3], uma beleza
“que atrai não pelo que mostra, mas pelo que só indicia que residiria o poder redibitório da imagem: o de devolver ao olho a possibilidade de ver. É assim na “imagem escrupulosa” que pode “suscitar um olhar apreensivo, com um pouco de ansiedade, ou mesmo de temor”, que teríamos uma reação à “beleza exagerada” da estética generalizada, segundo Jean Galard. […] É a “imagem” (seja pintura, vídeo, instalação ou coletivo) que seria “capaz de nos desorganizar” – de produzir páthos em oposição às imagens “comodamente edulcoradas” que apenas reforçam o “imaginário do bom gosto”. Na imagem escrupulosa haveria, nesse sentido, a evidência de uma “ocultação” – a “realidade de uma ausência”. Ela se insurge, naquilo que subtrai à imoderação da “beleza”, ao excesso próprio da generalização do estético. No abuso o que se ostenta é o valor de exibição da imagem “aquilo que é feito na intenção de produzi-la”; já, em sentido inverso, a imagem escrupulosa que reage às “intervenções meramente decorativas” é incompatível com o projeto de sua exibição”.
O processo de generalização do estético, ou de “abuso estético”, como coloca Galard, traduz não somente a fruição da obra de arte, mas seu consumo imediato. Jean Galard deixa latente a questão sobre a intenção do artista, sobretudo a intenção do fotógrafo, cujo desígnio determina até que ponto as pessoas que retrata servem à beleza da imagem, ou se a beleza serve realmente à sensibilização em relação ao sofrimento alheio. Pois, nesse processo generalizante – estetizante –, usando as palavras de Fabbrini, “a efetuação artística é substituída pelo efeitismo”.
A crítica geralmente feita às fotografias de Salgado, justamente acusam-nas de um oportunismo sentimentalista, de uma forte propensão ao pejorativo termo “estetismo”:
“O que é ‘estetismo’? É uma extravagância que leva a abusar da beleza, que faz com que ela seja desejada a qualquer preço; é um desvio em virtude do qual, um fotógrafo, por exemplo, claramente se interessa muito mais por sua fotografia do que por aquilo que supostamente ela mostra. Assim se dirá que o que retém o olhar, nas fotos de Sebastião Salgado, não é o tema, nem o testemunho, mas o ‘estetismo invasivo, que anestesia a realidade, que a torna aceitável, observável e consensual’”.
As fotografias de Salgado, porém, não seriam necessariamente anestesiantes, nem tornariam aceitáveis as situações retratadas. O argumento de Galard para mostrá-lo, irônico e certeiro, é um exemplo da história da arte:
“Será que o quadro de Max Beckmann intitulado A noite, conservado em Düsseldorf (um homem e uma mulher supliciados e seus mórbidos torturadores, num espaço desarticulado), torna a realidade mais aceitável, mais consensual, quando se esquece que foi pintado em 1918-1919 e se ignora, como acontece com frequência, que seu contexto é a repressão contra o movimento espartaquista?”
São fotos, diz Galard, que “justamente por sua precisão e por sua beleza, incomodam. Seu lirismo impõe respeito e recusa a simples comiseração”. Alguns críticos, como Régis Debray e Christian Caujolle, “destacaram o cuidado com que Salgado situa geográfica e socialmente as cenas que mostra, observam que ele consegue ‘revelar o pitoresco’ e ‘decantar o efêmero’.”
A questão está em saber se “a disposição estética (a percepção da beleza em regiões onde não se esperava encontrá-la) é mobilizadora ou estéril, se propicia um acesso ativo á compreensão da realidade ou se ela destitui de realidade todas as coisas até chegar à anestesia”. A exigência crítica que reprova o sentimentalismo “e suas afetações melodramáticas, as comiserações satisfeitas, os exibicionismos contritos” é ética ou estética? “É ética e estética”, Galard responde: “Diante da abjeção, o estremecimento de aversão (estética) não é menos ativo que a reprovação moral”.
Moralmente, pareceria suficiente para separar o que é admissível do que é abusivo a simples divisão entre realidade e representação. No mundo contemporâneo, porém, de maneira geral unimos a arte e a vida, introduzimos cada vez mais realidade bruta no espaço das obras, buscamos “não mais imagens, e sim atos. Não mais representação, e sim o real”. A fotografia inscreve-se no cerne de uma dicotomia criada entre realidade e representação, eis sua complicação interpretativa. Mas não somente a fotografia passa pela objeção ética: “faz-se poesia com essas coisas?”. A relação entre realidade cruel e sua representação e entre o prazer tirado do espetáculo da realidade e sua representação simulada é motivo de questionamento também em obras imitativas, como conjuntos escultóricos antigos:
“Ernst Gombrich declara-se perplexo diante da escultura Laocoonte e seus filhos. Por que se comprazer com os tormentos impostos pelos deuses às três personagens que se veem lutando contra enormes serpentes? ‘Gostaríamos muito de saber com que intenção o artista concebeu seu grupo’. Talvez ele tenha querido mostrar seu talento, sua maestria, exibir sua destreza em representar em mármore a expressão do esforço e do sofrimento. Talvez ele não tenha pensado na iniquidade do castigo decidido pelo Olimpo. Depois vem a suspeita. ‘Às vezes, não posso evitar o pensamento de que esta arte se dirigia a um público que se deleitava também com horrorosos espetáculos do circo. Mas talvez o problema não esteja nisso’”.
O público que se deleita com os espetáculos do circo simplesmente respalda a ideia de espetacularização da vida. e há, todavia, muitas maneiras de se parecer com esse público, “como se a poesia tivesse cabimento em tais circunstâncias”.
A arte clássica orgulhava-se por saber simular a realidade através de ilusões. A arte de hoje, porém, é um meio especializado que não sabe distinguir o verdadeiro do falso. É próprio da arte contemporânea o questionamento das fronteiras daquilo que é admirável enquanto arte. É instigante a definição do filósofo:
“Chama-se ‘arte contemporânea’, há muito tempo – e talvez infelizmente, pois essa definição não é sociológica –, o ato de transgressão da fronteira, que tende sempre a se reinstaurar, como o que é admissível no campo da arte e o que não é, ou não o é ainda. Ultrapassar esse limite a fim de torná-lo perceptível e consciente, eis o que é próprio de uma arte que, com ou sem razão, confiscou a denominação de ‘arte contemporânea’. […] A história da arte contemporânea tornou-se, assim, uma sequência de repetidas transgressões. É portanto a história de um eterno, de um necessário, de um consubstancial abuso, diante do qual é lógico que o público diga ‘não’, e mesmo em relação ao qual é indispensável que todo mundo diga ‘não’”.
Já é inclusive uma convenção, diz, apontar que a arte situa-se nas fronteiras da arte: “Que ela opera nas fronteiras do museu, já não há muita gente que se preocupe com isso. Que ela intervém nos limites da moral (da decência, da dignidade) e do direito: isso é o que pode escandalizar”.
A arte contemporânea, necessariamente transgressora, recusa a própria arte. A arte afirma-se inclusive como antiestética. O ready-made de Marcel Duchamp “deveria não apenas escapar das propriedades da obra de arte, ele permitiria também recusar todos os termos tradicionalmente associados à experiência a que ela se refere”, dissociado por completo de qualquer emoção estética e dando início a, “para empregar a palavra de Harold Rosenberg, um processo de ‘desestetização’”. Deve-se, porém, admitir que “há como que uma ofensa à ousadia essencial do ato de arte quando ele é reduzido ao regime estético”, objeto de interesse superficial. Assumir uma visão estética das coisas seria, segundo Galard, fazer uso “de uma categoria que se situa tão longe do maravilhoso quanto do indiferente: a do ‘interessante’”.
A relação da arte com os museus, questionada a partir de Duchamp, inverte-se, pois sua lógica é contrária à dos ready-mades: o museu retira objetos de seus contextos – sociais, políticos, históricos, críticos – e é o lugar por excelência do advento da arte, estabelece um status artístico que exalta as obras mas que as reduz a um destino igualmente estético e, por isso, um estado letárgico. Lugares “artificiais, incômodos e mortos”, os museus, como analisou Maurice Blanchot,
“tem tudo o que é preciso para degradar a arte, confirmando sua alienação em proveito de certa forma de economia, de cultura e de estética. […] tudo o que está reunido nesse lugar só está ali para ser conservado, para permanecer inativo, inofensivo, nesse mundo particular que é o da própria conservação, mundo do saber, da cultura, da estética”[4].
Banalização, canibalismo, impunidade, utilitarismo: o museu legitima a neutralidade, a curiosidade estética pouco intensa, satisfeita com aquilo que possa ser “interessante”. Na década de 1950, Roland Barthes, em suas Mitologias[5], apontava para um desgaste inclusive do termo “desmistificação”.
“Assim como a faculdade de rir regride em nossas sociedades porque o cômico não tem mais muita coisa a depreciar, os velhos artifícios da hagiografia também caem em desuso porque é bem evidente que ninguém mais está muito distante do universo comum”[6].
Numa época em que tudo, como analisou Jean Baudrillard, “vem se anular na tela da televisão”, a proliferação do neutro não é sequer desencanto, estamos “aquém da nostalgia, do desejo de sentido e do pathos desencantado”. Segundo Galard, não há mais nada que possa “advir que tenha força dramática ou poder trágico, não só porque todo eventual radicalismo seria imediatamente neutralizado, absorvido na inércia da indiferença, mas também porque já nem sequer há palco onde possa sobrevir o que quer que seja”.
Trata-se de um mundo em que impera a inércia da indiferença. Mesmo na obra de Baudrillad, o autor ironicamente aponta, “a descrição da agonia – mas de uma agonia que não tem mas nem sequer a força de lutar, isto é: o enunciado da catástrofe – é admirável”. Em meio à ideia de que “uma ‘estetização geral’ substituiu a realidade”, por um lado um código secreto da arte teria sido rompido e, por outro, a arte teria siso abolida: “Será que os livros de Baudrillard, seus artigos, sempre tão impressionantes, constituem exceção em relação a esse fenômeno vertiginosamente universal? Pelo contrário, representam uma realização extrema. São a obra-prima desse fenômeno”.
No mundo estetizado, o objeto artístico deixa de ser essencial, torna-se elemento de um cenário, de um contexto, contribui para um amplo espetáculo no qual sobressai o caráter decorativo. Os museus “ganharam novos públicos, mas se tornaram simples lugares de distração, entregues ao turismo intensivo e ao lazer de massa”. E, assim como a atitude frente ao museu, bem definida pela expressão de Yves Michaud, “a arte em estado gasoso” – desenvolvida no livro homônimo, L’Art à l’état gazeux. Essai sur le triomphe de l’esthétique –, toda a vida contemporânea é marcada por uma atitude indiferente, “também o mundo está invadido pelo estado de espírito turístico e banhado por uma atmosfera estética”. A “busca displicente pelo belo é onipresente”, pontua Galard:
“A arte vaporizou-se ao mesmo tempo em que a experiência estética se generalizava. ‘É o triunfo da estética’.
Triunfo, na realidade, de uma certa estética: difusa, apaziguante, conciliadora. Redução da atenção estética a uma experiência agradável, a uma intenção flutuante. A beleza que está supostamente ‘em toda parte’, na publicidade divertida, no design atraente, na embalagem dos produtos de consumo, no meio ambiente preservado, no corpo mantido em forma, tem tudo para satisfazer plenamente uma experiência que outros analistas também, décadas atrás, designam como um traço essencial do espírito do tempo: o hedonismo. Os objetos e as situações mais apreciados esteticamente seriam típicos dessa ‘felicidade contemporânea’”.
Trata-se de uma cultura da fantasia, do efêmero e da paródia leve, em que, conforme apontou Lipovetsky no ensaio “Le société humoristique”, quer em “textos jornalísticos como nas histórias em quadrinhos, na publicidade como na moda, um mesmo tom divertido convida a não dramatizar nada e a não se levar a sério”.
Os detalhes, contudo, da dinâmica do mundo, são repugnantes. E o olho fotográfico pode ser muito próximo – perigosamente próximo, até: “A fotografia propiciou tomadas da guerra extraordinariamente próximas. Reduziu as distâncias em vários sentidos”. Em sentido espacial, levando imagens distantes chegarem ao olhar, mas também em sentido temporal, pois da captação do momento. Estes dois sentidos ainda foram estreitados, das fotografias instantâneas até a transmissão ao vivo. Um marco deste processo é a famosa fotografia de Robert Capa, “A morte de um soldado republicano”, tirada em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, no exato momento em que ocorreu a morte de um dos combatentes. O advento da fotografia, por isso, estaria na origem, se não for inclusive a causadora, da transferência de interesse de valores históricos para a realidade prosaica.
“O republicano de Capa, o homem que tomba, nada tem de vítima: ele se engajou voluntariamente, escolheu seu lado sabendo que se expunha às balas, ele tem convicções, portanto, inimigos. Atrás e à frente dele, o céu é imenso. O homem de Capa está em plena luz, no espaço aberto. O horror, ao contrário, começa quando o olho fotográfico estreita seu campo até excluir todo espaço livre, até eliminar o horizonte. O horror fotografado, para nós, data da guerra de 1914-1918, porque ela foi uma grande provedora de cenas e imagens fechadas. Nas trincheiras estreitas, os soldados, bem como o fotógrafos que estavam entre eles, não tinham outra coisa para ver além de lama, cadáveres e o céu toldado”.
Diante da análise das fotografias pode-se então perguntar: “O que é uma foto forte? E o que é uma foto moralmente nítida?”. Sebastião Salgado, entre outros fotógrafos tais como James Nachwey, Stanley Greene, paulatinamente “conseguem ser aceitas pelas populações. Permanecem muito tempo junto delas. Aprendem a partilhar as emoções das pessoas. Mostram a aflição dos seres humanos, sua vulnerabilidade, sua solidão, seu sofrimento, sua dignidade, sua grandeza”. Em suas fotografias, não revelam apenas aquelas imagens, “mas também as razões que tem para mostrá-las. Fala de sua cólera, da raiva que sente diante da imensa aflição humana. Ele quis publicar seu testemunho a fim de mudar o mundo. Fotografar o horror só tem sentido se for para contribuir a acabar com ele”.
Salgado, segundo alguns críticos, comete o erro de não indicar em legendas os nomes das pessoas que fotografa; ao que Galard simplesmente pergunta: “Mas quem faz isso?”:
“Suas fotos, carregadas de poder emblemático e alegórico, são desprovidas de função explicativa. Mas que fotografia poderá algum dia explicar o que mostra? Definitiva por definição, suspendendo o tempo, como poderia ela incluir a duração que é necessária para comentar e fazer compreender? Trata-se de fragmentos isolados de uma realidade mais vasta. Mas onde se viu alguma coisa exceder a exiguidade do fragmento?”.
Fazer uma fotografia com todo o cuidado exigido, nas situações em que o fazem Salgado ou Nachtwey, “é decidir fixar um instante que se sente que deve ser retido a qualquer preço. […] É preciso captar esse momento que vai desaparecer, opor-se a seu deslizamento no passado e talvez no esquecimento”. Galard cita um bom documentário a respeito do trabalho fotográfico de James Nachtwey, realizado por Christian Frei em 2001, que prima por mostrar os bastidores de seus ensaios de fotos, mas que, justamente por isso, chocou muita gente:
“diante do rosto de uma mulher que grita sua dor à chegada de um caixão, o repórter fotográfico calcula tranquilamente a luz antes de começar uma interminável série de fotos. Porém, como explica com calma gravidade o próprio Nachtwey nesse filme, as pessoas que fotografa o conhecem bem, aceitaram sua presença, até quiseram que ele estivesse no local. Elas lhe pediram que mostrassem ao mundo o que lhes acontece”.
As fotografias de Sebastião Salgado são apelativas? São, realmente, belas. A habilidade que Salgado tem para fazer fotos belíssimas é estonteante. Os assuntos de que trata são, em contrapartida, tristes aspectos da realidade humana – miséria, trabalho escravo, consequências de guerras, êxodos. Realizar fotos belas de assuntos como estes – que retratam e despertam o horror – é incongruente, mesmo paradoxal, ou, até, sentimentalista ou estetizante? Moralmente, sim, diz a crítica. Jean Galard, entretanto, põe a questão sob outra perspectiva; questiona a experiência do belo que, diz no prólogo, é provocada por algumas obras de arte, sobretudo algumas fotografias da atualidade, “para designar o que nelas faz nascer não a satisfação, mas sim a estupefação, o estarrecimento e, às vezes, a não satisfação ou a sufocação”.
Salgado, conforme o filósofo indica, disse com frequência não querer “que suas imagens sejam miserabilistas”; e, se “forem belas, terão alguma possibilidade de ser lembradas mais intensamente”, despertarão maior atenção e, mesmo, tornarem-se memoráveis. Talvez a beleza venha do âmago humano que suas fotos fazem aflorar e que torna o sofrimento mais dramático, porque dimensionado humanamente. Se a tendência alegorizante das fotografias as transformam em objetos de consumo mais fácil, é questão que caminha sob a relação entre a imagem e a beleza.
Galard ainda evoca um último exemplo argumentativo:
“Em fevereiro de 2011, a fotógrafa sul-africana Jodi Bieber ganhou o World Press Photo Award do ano de 2010, com o retrato de uma jovem afegã de 18 anos, Bibi Aisha. Esta, tendo fugido da casa do marido, havia sido desfigurada, em represália, por um grupo de talibãs. A foto mostra mais ou menos três quartos do rosto da jovem com o nariz cortado. O olhar é intenso, forte, altivo, interrogativo. […] fica-se de olhos arregalados, exorbitados. Mas é preciso enfrentar esse olhar negro e corajoso, suportá-lo por muito tempo. É preciso deixar-se observar por esse rosto, deixar-se interpelar por ele. Aqui, não há ‘contemplação’ possível, nem sentimento de admiração e, menos ainda, de ‘satisfação’. Não há nada que corresponda às tradicionais considerações sobre ‘o belo’, nem a nenhuma definição vigente dessa noção. A beleza desse rosto é exorbitante”.
Seu argumento, o título já indicava, é que a beleza de determinadas obras é exorbitante. Que quer dizer? Que extrapolam a dimensão estética e alcançam uma esfera verdadeiramente crítica – ética, política, social, histórica.
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Notas:
[1] Para Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em A estetização do mundo, o apelo ao imaginário e a habilidade em despertar a emoção dos consumidores impulsionam a criação massiva de mecanismos de sedução, no design, na moda, no cinema, nos produtos. Arte e mercado nunca antes se misturaram tanto, exagerando, na experiência contemporânea, o alcance do desdobramento das dimensões do valor estético. Desvendando a superficialidade de um mundo em “tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor”, os autores mostram que a cultura e sua expressão artística se converteram em simples negócio de mercado. Assim, a arte hoje impregna o mundo comum, é instrumentalmente aplicada a tudo, funcionando dentro de um sistema geral de investimentos e lucros. Lipovestky é também autor dos incontornáveis O império do efêmero e O luxo eterno e, com Jean Serroy, de A cultura-mundo.
[2] No manifesto “Estética da fome”, o cineasta Glauber Rocha põe em questão a contextualização cultural da recepção da obra – o cinema novo, para um espectador europeu seria “um estranho surrealismo tropical”, ao passo que, para a maioria dos brasileiros, “miserabilismo e uma vergonha nacional”.
[3] Ricardo Nascimento Fabbrini, “Fim das vanguardas: estetização da vida e generalização do estético”.
[4] Blanchot, “Le mal du musée”
[5] Barthes, Mitologias [Edições 70, 2014].
[6] Galard, em artigo traduzido por Leyla Perrone-Moisés e publicado pela revista Cult, analisa: “Barthes se irritava ao constatar por toda parte o recurso ao ‘natural’, ao ‘óbvio’. A crença na natureza mascarava o trabalho da História. Agora, a consciência da historicidade está adquirida. Somente a História tomou uma forma assustadora. Os mitos não são mais, na verdade, nosso problema. A realidade é muito visível e muito temível. Em Os romanos no cinema havia a confusão desonesta entre os signos fabricados e uma pretensão ao natural. Mas agora sabemos todos que o ‘natural’ é composto (tecnicamente, cientificamente). Estamos todos muito conscientes de que os tempos mudam, e de que a História nos compõe e nos decompõe”.
Autor: Jean Galard
Editora: FAP-UNIFESP
Preço: R$ 28,00 (176 págs.)