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Um não lugar em tempo algum

20 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

A Utopia de Thomas More completou 500 anos de publicação no ano passado. Em comemoração, a editora Autêntica acaba de publicar uma edição bilíngue da obra, a primeira tradução brasileira da obra diretamente do latim, realizada por Márcio Meirelles Gouvêa Júnior e revisada por Guilherme Gontijo Flores.

O tradutor, na apresentação do livro, fala sobre como a compreensão da personagem principal da trama de Thomas More é chave importante para a tradução de seu latim humanista: “O navegante de pele atrigueirada pelo sol, barba comprida e roupas de marinharia foi, de modo expresso, anunciado por aquele que o apresentava ao narrador não como um Palinuro, mas como um Ulisses, ou antes, mesmo como um Platão. Desse modo, ao recusar-lhe a semelhança com o piloto do navio de Eneias, e aproximá-lo de Ulisses ou de Platão, o autor não caracterizou seu protagonista como um marinheiro profissional, mas precisamente como um explorador de novas regiões da Terra, em um mundo que expandia suas fronteiras geográficas na esteira das grandes navegações”.

A tradução procurou sobretudo recuperar características do tempo e do mundo em que a obra foi escrita. Na apresentação, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior explica que procurou “entender as peculiaridades e idiossincrasias do estilo literário da escrita do autor. Desse modo, a melhor solução tradutória pareceu ser a busca da máxima preservação das estruturas frasais utilizadas no original, com o longo encadeamento de extensas orações subordinadas e coordenadas, bastante típico dos textos seiscentistas”. A edição conta ainda com cartas reproduzidas no Anexo da edição, que são preciosas peças na contextualização da obra, uma vez que mostram como o autor buscou criar uma farsa em torno da existência do personagem principal e de sua narrativa sobre a descoberta da ilha de Utopia. De acordo com o tradutor, também no texto de apresentação, a obra representa: “Uma mistura de informações factuais com ficção que não se encerra no livro, mas foi apoiada pela troca de correspondência com a fina flor da intelectualidade europeia da época, encabeçada por Erasmo de Rotterdam. Toda essa intrincada rede de significados subjacentes – esse tom de brincadeira erudita ou serio ludere – parece, portanto, mais uma forma de consecução dos objetivos de instruir e divertir, como anunciado pelo autor”.

Segundo o tradutor, “bastante significativas foram foram as escolhas dos nomes próprios na Utopia, a começar pelo título do livro. Essas escolhas se inserem, decerto, na proposta inscrita no colofão da primeira edição, que caracterizou a obra como um livrinho realmente de ouro, não menos útil que divertido”. “Utopia”, ele explica, “em tradução livre do grego pode ser compreendido como Não Lugar. Veja-se ainda a carta de Guilhaume Budé a Lupset (reproduzida nos Anexos), em que o erudito francês propôs uma corruptela dessa interpretação, para Udepotia […], que se traduziria por Não Tempo. Desse modo, a Utopia se revelaria como um não lugar em tempo algum”.

Márcio Meirelles Gouvêa Júnior comenta ainda que o nome do protagonista, Rafael Hitlodeu, “se reveste de significados. Rafael busca sua origem no nome de um dos arcanjos bíblicos, personagem do Livro de Tobias. Desse modo, o nome do navegante português ganha a acepção de mensageiro […]. Por outro lado, Hythlodaeus […] se traduz por sem sentido, sem noção […], de tal sorte que a composição do nome se revela como aquele que distribui mensagens sem sentido, ou algo como Mensageiro Sem Noção.” Mesmo “o rio que passa pela cidade é o Anidro, […] cuja tradução é sem água”.

Antonio Gonçalves Filho, em resenha publicada no caderno Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, comenta que a obra “chega às livrarias num momento de turbulência política e recessão econômica no Brasil, exatamente o que não existe na ilha modelar imaginada por More – uma sociedade em que tudo pertence a todos e a busca do bem comum é lei. Como no Brasil tudo funciona ao contrário – o que é um bem comum é de ninguém –, a palavra distopia parece fazer mais sentido aqui, lembrando apenas que, como escreveu o autor (de ficção científica) China Miéville num artigo publicado pelo jornal The Guardian, o utopismo não é esperança, muito menos otimismo, mas uma necessidade e um desejo. O desejo, claro, é o mesmo que motivou More a escrever seu clássico sobre os antípodas”. Gonçalves Filho esclarece que o clássico “é dividido em dois livros: no primeiro, More traça um panorama crítico de seu país (a Inglaterra), sendo bastante corrosivo a respeito das estruturas de um Estado que favorece a corrupção e o roubo. Na segunda parte, que fala da ilha Utopia, More apresenta uma sociedade alternativa (ainda que o neologismo criado por ele venha acompanhado de uma contradição, a do não-lugar/u-tópos)”. O crítico ainda pontua que em Utopia, More “propõe um sistema alternativo de governo. Na ilha descrita pelo explorador português (fictício) Rafael, tudo parece indicar o paraíso recuperado sobre a terra: a intolerância é condenada; as pessoas podem escolher sua religião e o dinheiro foi abolido da terra – inspirada, é provável, nos lugares exóticos visitados pelos navegadores europeus do século 16 (não se pode esquecer que Utopia foi lançado em 1516, 24 anos após a descoberta da América). Porém, e sempre existe uma conjunção adversativa, na ilha sonhada por More persiste a escravidão e os ladrões têm suas orelhas cortadas”. Ainda assim, analisa o crítico, “Utopia é uma ilha da fantasia administrativa em que a razão conserva muito do cristianismo ético de More (que foi decapitado por isso) e de sua crença na igualdade entre os sexos (foi pioneiro ao educar as filhas nos moldes da educação clássica que formou seu filho, isso no século 16). Rompendo com a tradição bélica dos impérios, o humanista More faz a guerra virar palavrão em sua ilha, ainda que seus cidadãos se preparem para combater, caso seja necessário (para defender suas fronteiras, por exemplo)”.

Para Manuel da Costa Pinto, em resenha publicada no jornal Folha de S. Paulo, a edição do clássico tem atraso com “justiça poética”: afinal, diz, “a imaginação de mundos ideais sempre corresponde a um ‘não lugar’ (sentido do termo cunhado pelo humanista inglês decapitado por Henrique 8⁰) situado aquém ou além do presente. A ‘ilha dos utopienses’, descrita na obra a partir das experiências de um navegador português, é um avesso da Inglaterra corrupta e intolerante de seu tempo, batizando um gênero que, antes e depois de More, alimentou transformações concretas com a aspiração ao impossível”.

Como diz o Professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos, no posfácio desta edição: “A meio caminho entre a literatura e a filosofia, na zona de passagem entre um não-lugar que nega nossas misérias e um bom lugar que as torna talvez mais insuportáveis, a utopia de More é um patrimônio cultural tão rico que não cabe mais apenas no espaço comprimido da tradição acadêmica que a quer domesticar”.

 

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Em contrapartida, em Utopia, onde ninguém duvida que tudo é de todos, uma vez que se cuide que os silos públicos estejam cheios, nunca faltará coisa alguma a ninguém. Por isso, não é mesquinha a distribuição de bens, de modo que não há ali ninguém que seja pobre ou mendigo. Embora nada possuam, todos são ricos. Pois maior riqueza ninguém pode ter do que, inteiramente livre de qualquer preocupação, viver com o ânimo alegre e tranquilo, sem temor pelo sustento, sem o incômodo das queixas da esposa, sem a apreensão pela pobreza do filho, nem a aflição pelo dote da filha, estando seguro quanto à sua felicidade e sustento, e com a de todos os seus – esposa, filhos, netos, bisnetos e toda a série de descendentes que os nobres computam.

 

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UTOPIA

Autor: Thomas More
Editora: Autêntica
Preço: R$ 47,84 (256 págs.)

 

 

 

 

 

 

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