Arquivos da categoria: matraca

Breves resenhas diárias.

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O vale do fim do mundo

30 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Ao desembarcar no Brasil, como imigrante europeu após a Segunda Guerra, o médico, escritor, tradutor e pensador húngaro Sándor Lénárd fixou-se na cidade de Dona Emma, em Santa Catarina, e naquele vale viveu, de 1952 até 1972. O livro O vale do fim do mundo traz uma visão panorâmica da sociedade, dos costumes, da política e do cotidiano dessa pequena cidade durante os anos 1950 e 1960. São histórias locais, ouvidas pelo médico e por ele vividas. “O colono de Santa Catarina espera que seus feitos heroicos sejam transformados em épico, e provavelmente espera em vão”, escreveu Sándor Lénárd. É representativa sobretudo sua visão como estrangeiro, que lhe permite uma observação geral sobre o lugar desconhecido e seus diferentes hábitos. Além de anedotas, também crendices populares e costumes locais são descritos e analisados ao longo do livro, dando à narrativa um interesse sociológico e histórico, além do literário narrativo. Um livro de memórias coletivas, narrado em primeira pessoa. O vale do fim do mundo foi publicado por “Alexander”, como o conheciam, em 1967 e, somente agora, traduzido para o português por Paulo Schiller, também responsável pelo texto de orelha desta edição da Cosacnaify. Continue lendo

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Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana

29 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Capa do livro "Literaturas da floresta – textos amazônicos e cultura latino-americana"Uma análise literária inusual, porque debruçada sobre literatura desenvolvida sobre a palavra sonora e não a escrita, compõe o interessante livro Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, escrito por Lucia Sá e publicado recentemente pela editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa abarca a produção cultural da Floresta Amazônica e das planícies da América do Sul, desenvolvendo conjecturas sobre a apropriação, por parte de muitos escritores do século XIX, de personagens e histórias da ficção da selva – cuja dimensão mágica era-lhes inextrincável, porém, cujo poder simbólico teve sobre eles forte influência, fonte literária da percepção abstrata do mundo. A literatura selvagem foi dispersada entre esses escritores pela transmissão de suas lendas, oralidade avessa a autores – ritos retumbados, modificados e finalmente reconstruídos, são hoje quase irreconhecíveis. Continue lendo

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A ação política ameríndia e seus personagens

28 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Capa do livro de antropologia "O Profeta e o Principal", publicado pela EduspO excelente livro de Renato Sztutman, professor de antropologia da Universidade de São Paulo, O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens, publicado pela Edusp, foi um dos três selecionados a finalista do prêmio Jabuti na categoria de obras não ficcionais da área de ciências humanas. No livro, Sztutman parte das ideias de Pierre e Hélène Clastres a respeito dos mecanismos indígenas de recusa e conjuração do poder coercitivo e de toda unificação ontológica. Baseado nos estudos etnológicos de ambos, o antropólogo brasileiro estuda a imbricação entre o que convencionamos chamar de “religioso” e “político”, analisando o reconhecimento ambíguo, entre os antigo Tupi, de seus pajés e chefes de guerra como “profetas” e “principais”. Continue lendo

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Rabo de Baleia

25 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

capa do livro de poesias um enorme rabo de baleia

cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela

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Um pintor de ideias

24 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Duchamp esteve aquiTalvez os dois pintores que maior influência exerceram em nosso século sejam Pablo Picasso e Marcel Duchamp. O primeiro pelas suas obras, o segundo por uma obra que é a própria negação da moderna noção de obra”. Assim começa o primeiro ensaio do livro Duchamp ou O castelo da pureza, de Octavio Paz, publicado, no Brasil, pela editora Perspectiva. A comparação segue: “As figurações de Picasso atravessam velozmente o espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp o espaço caminha, se incorpora e, tornado máquina filosófica e hilariante, refuta o movimento com o retarde, o retarde com a ironia. Os quadros do primeiro são imagens; os do segundo, uma reflexão sobre a imagem”. O desenvolvimento da análise é interessante e poético: “Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir as dos olhos, nascem e terminam numa zona invisível. […] o invisível não é obscuro nem misterioso, é transparente”. Segundo o poeta mexicano, Marcel Duchamp define nossa época por suas negações e explorações. Para ele, Duchamp teria sido desde seus primeiros trabalhos sempre “um pintor de ideias”. Continue lendo

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Um catálogo do destino

23 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

capa do livro Contos maravilhosos infantis e domésticos, publicado pela CosacnaifyE viveram felizes para sempre. Nem todo mundo sabe que o que conhecemos como “contos de fadas” são adaptações moralistas para não assustar crianças, de histórias que foram primeiramente criadas e transmitidas oralmente, como narrativas adultas mordazes, irônicas, cruéis e mesmo sórdidas.

Para homenagear o ano de bicentenário da primeira publicação dos famosos contos compilados pelos irmãos Grimm, a editora Cosacnaify publicou a tradução da versão original das 156 narrativas. A tradução foi feita pela especialista Christine Röhrig e a edição conta com uma apresentação do professor Marcus Mazzari. Outro aspecto muito interessante da edição brasileira são as ilustrações, feitas pelo xilogravurista pernambucano J. Borges. O deslocamento do traço de cordel criou um resultado feliz de encontros culturais de duas manifestações impressas de histórias populares pertencentes originalmente às tradições de oralidade. As gravuras ainda estabelecem um diálogo de naturalidade e humor com a excentricidade e o maravilhoso das narrativas alemãs. O livro Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos foi indicado como um dos dez finalistas de melhor projeto gráfico do prêmio Jabuti deste ano. Continue lendo

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A religião do desespero

22 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

detalhe da capa do livro "O capitalismo como Religião", de Walter BenjaminO capitalismo como religião, novo lançamento deste segundo semestre da editora Boitempo, é uma reunião de dezessete ensaios de Walter Benjamin, organizada e introduzida pelo sociólogo Michael Löwy. Os textos que compõem a antologia datam de 1912 – ano em que Benjamin participou do movimento da “Jugendbewegung”, do qual se afastou no início da Primeira Guerra Mundial –, até os anos mais decididamente militantes, no exílio, de 1933 a 1940. Segundo Löwy, o objetivo é mostrar como Benjamin soube unir, à sua crítica ao capitalismo, elementos provindos tanto do romantismo alemão quanto do messianismo judaico e do marxismo libertário: “A maior parte desses escritos, que versam sobre temas que vão das armas químicas das guerras futuras à condição dos operários na Alemanha nazista, expressa um olhar lúcido, ora irônico ora trágico sobre o mundo ‘civilizado’ do século XX”, diz o prefácio. O ensaio que dá título ao livro, “O capitalismo como religião”, escrito em 1921, é considerado um dos fragmentos mais intrigantes de Benjamin. Nele, Benjamin assimila reflexões de Friedrich Nietzsche, Max Weber, Georg Simmel e do teórico anarquista Gustav Landauer, tecendo uma “crítica romântica da Zivilisation capitalista” que “alimenta algumas de suas principais iluminações profanas”, nas palavras de Löwy. A análise de Benjamin aponta o capitalismo como uma religião cultual que encaminha a humanidade à “casa do desespero”. Continue lendo

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Experiências indizíveis

21 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Os amores difíceis é um título irônico. Pois seguindo esta série de novelas de Italo Calvino como fio condutor, percebe-se que os amores são difíceis, de maneira geral, pois mesmo entre múltiplas variáveis de combinações imagináveis de diferentes amores e diferentes circunstâncias de personagens, resta sempre a dificuldade comunicativa, aquela zona de silêncio que permeia as relações humanas amorosas – experiências indizíveis. Como o silêncio que paira sobre uma das personagens, de volta à rotina na manhã seguinte a uma inesperada aventura amorosa, por exemplo. “Aventura” inclusive é o título de muitos dos contos que compõem Os amores difíceis – “Aventura de um poeta”, “Aventura de um míope”, “Aventura de um leitor”; títulos também irônicos, pois tratam, na verdade, de uma aventura solipsista, interior, do itinerário rumo ao silêncio – e o silêncio que acarretam é em si um valor da vida minuciosa e transbordante. Continue lendo

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A batalha do homem contra o mar

18 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone
O polvo, aquarela de Victor Hugo, 1866

“O polvo”, aquarela de Victor Hugo, 1866

Escrito e ilustrado por Victor Hugo, Os trabalhadores do mar é novamente publicado no Brasil, agora na edição cuidadosa da Cosacnaify. A editora manteve a primeira tradução de Machado de Assis, publicada na primeira edição brasileira, e incluiu capítulos que não haviam sido publicados, cuja tradução é assinada pela poeta Marília Garcia. Publicado originalmente na França em 1866, o livro é dedicado à ilha de Guernesey, na qual Victor Hugo viveu quinze anos, em um exílio auto infligido. A dedicatória do livro diz: “Dedico este livro ao rochedo de hospitalidade e de liberdade, a este canto da velha Normandia onde vive o nobre e pequeno povo do mar, à ilha de Guernesey, severa e branda, meu atual asilo, meu provável túmulo”. A pequena ilha é cenário para a magnífica história, que transforma eventos aparentemente mundanos em profundos dramas humanos, além de desenvolver – ainda que menos do que em outros romances de Victor Hugo, como Os miseráveis ou L’Homme qui rit – questões de cunho social, histórico e político. Os trabalhadores do mar se passa em um momento imediatamente posterior às guerras napoleônicas e, entre seus principais temas, encontra-se também o impacto da primeira revolução industrial na população da ilha. Continue lendo

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Os rascunhos de Marcello Grassmann

17 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

As gravuras de Marcello Grassmann lidam com uma intensidade adormecida, recém saída de um sonho difuso e fantasmagórico. Apesar disso, seu universo fantástico é plenamente convincente. Um artista desconcertante, tão plausível faz tornar-se o absurdo. Frente aos seus desenhos, o silêncio é perfeitamente inútil e o lúdico torna-se visível e vulnerável.

A coleção Cadernos de Desenho, publicada por uma feliz parceria entre a editora da UNICAMP e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, esmiúça um canto do ateliê do artista que nem sempre vem à tona nos museus: seus rascunhos, primeira manifestação material da ideia. Um dos volumes da coleção, dedicado a Marcello Grassmann, desperta um interesse para além de uma curiosidade um tanto voyerística do processo de criação do artista, pois seus desenhos são mais que embrionários, não são somente esboços ou desígnios marcados de um trabalho por vir: seus desenhos compõem a si mesmos. São parte semântica de um universo próprio, encerram em si, mesmo os inacabados, a poética do conjunto da obra, esta, prefigurada como uma infinita narrativa onírica da qual se faz parte num só lande de olhar. Continue lendo

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Sonhos em prosa

16 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Gyula Krúdy (1878 – 1933) é considerado por muitos escritores húngaros o maior prosador da Hungria. Apesar de ter obtido sucesso literário em vida – desde os vinte anos teve seus textos publicados e em 1930 recebeu o Baumgarten, o prêmio de literatura mais importante na Hungria na época – suas narrativas foram muito difundidas após sua morte, durante a Segunda Guerra Mundial, redescobertas porque resguardavam a intimidade da memória e do próprio espírito do povo húngaro: narrativas capazes de despertar a sociedade então entorpecida, invadida, destruída pela guerra, capazes de resgatar uma sensibilidade cultural que a um estrangeiro não é perceptível, porque falam diretamente com o que há de mais secreto e profundo na identidade de seu povo, no que há de próprio em suas simbologias, seus costumes, sua compreensão do mundo, ou nos detalhes de um semblante, de prato de sopa ou de uma vitrine. Como diz o tradutor Paulo Schiller, na apresentação da edição de O companheiro de viagem, publicada pela editora Cosacnaify, “Em tom melodioso, Krúdy falava de uma outra Hungria, atemporal, cujo território era a memória, ressuscitava um passado talvez inexistente em que realidade e sonho se entrelaçavam e confundiam”. A alusão a uma melodia musical segue a interpretação de Paulo Rónai, primeiro a traduzir contos de Krúdy no Brasil, segundo quem “a prosa de Krúdy é próxima da música”. Continue lendo

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Noites de alface

15 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Noites de alface é um livro construído de pequenos detalhes. Nesta poética concentra, por um lado, boa parte de sua carga dramática e, por outro, uma veracidade, ou ao menos uma plausibilidade e familiaridade que conquistam de cara o leitor. Toda rotina é desenvolvida sobre pequenas coisas, sobre microcosmos muito pessoais; o romance de Vanessa Bárbara é feliz ao capturar essa imperceptível mas irrevogável penetração dos detalhes no desenrolar diário da vida. O livro é como que feito de pequeninas narrativas articuladas, tão completas e tão amplas, tão ricas em minúcias que interferem-se no desenrolar do cotidiano do protagonista, envolvido assim no desdobramento irreversível de significados dos detalhes. Continue lendo

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Os cinco paradoxos da modernidade

14 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Em vez dessas pseudo-reviravoltas ou dessa galeria de figuras exemplares, deveríamos fazer uma história paradoxal da tradição moderna, concebida como uma narrativa esburacada, uma crônica intermitente. Possivelmente a face oculta de cada modernidade seja justamente a mais importante: as aporias e as antinomias extraídas das narrativas ortodoxas.
– Antoine Compagnon

[domínio público]

Édouard Manet, “Le déjeuner sur l’herbe” [1862-1863], Museu d’Orsay, Paris.

A “tradição moderna” de que fala Antoine Compagnon seria absurda, pois seria uma tradição feita de rupturas: na medida em que cada geração rompe com o passado, a ruptura em si torna-se tradição. O autor inicia sua análise a partir de uma citação de Octavio Paz, segundo quem a “tradição moderna” é uma aporia, um impasse lógico, uma tradição voltada contra si mesma, que ao mesmo tempo afirma e nega a arte, que decreta, simultaneamente, sua vida e sua morte. A tradição moderna seria então tradição da negação, consequência do reconhecimento do novo como valor. Continue lendo

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A Cela Enorme

10 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

e. e. cummings – em minúsculas, como ele assinava – é conhecido como um dos poetas mais extravagantes da modernidade. Além de poeta, também pintor, ensaísta e dramaturgo, no Brasil teve suas poesias principalmente divulgadas e traduzidas, de maneira brilhante, por Augusto de Campos, que o considera um dos principais inovadores da linguagem da poesia e da literatura no século XX. Pouco se diz que, além de poemas, escreveu dois romances, autobiográficos, um dos quais, A cela enorme, foi publicado pela editora da Universidade Federal do Paraná, com tradução feita por Luci Collin, professora e escritora. O autor nasceu em 1894 e morreu em 1962, portanto vivenciou as duas grandes guerras. A cela enorme é justamente seu relato de prisão em um campo de concentração na França durante a Primeira Guerra Mundial. O jovem cummings descreve os personagens exóticos que conhece durante os meses de cativeiro, além de oficiais, os prisioneiros e tipos mundanos, dentre os quais trinta compartilhavam com ele a cela que dá título ao livro. Um amigo do escritor havia manifestado ideias contrárias à guerra e por isso fora detido e, como cummings defendeu o amigo, foi junto. Continue lendo

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Jogos de erosão emocional e memória

9 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Um artista plástico que escreve literatura tem à mão a possibilidade de intercalar ambos os trabalhos. No livro Lívia e o cemitério africano, Alberto Martins criou uma composição de capítulos curtos que tanto se completam quanto se contrapõem bruscamente, criando, na passagem e no confronto entre eles, novas possibilidades de leitura e, entre eles, inseriu dezesseis páginas de xilogravuras, em momentos cruciais da narrativa, que desempenham a mesma função ambivalente. O livro foi lançado no final de junho; nele, retoma a prosa autobiográfica de A história dos ossos, seu primeiro romance, também publicado pela editora 34 e vencedor do segundo lugar no prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2006.

As xilogravuras de Alberto Martins são fortes, densas, expressivas. Não recebem uma classificação formal precisa, estão entre o abstrato e certo figurativismo. Nelas, há peso e movimentos, distribuídos de maneira autônoma, desterritorializada, por vezes ancorados a demorarem-se, outras, a passarem, em travessias breves ou longas. Continue lendo

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