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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai

19 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Samico [“João, Maria e o pavão azul”, 1960]

Acaba de ser publicado no Brasil o livro Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, do português Gonçalo M. Tavares.

O romance se passa na Europa pós Segunda Guerra, em meio a uma paisagem de escombros, figuras esqueléticas e quase absoluto desamparo social e psicológico. Naquele cenário, uma menina e um homem perambulam por entre as ruínas. A menina é Hanna, tem catorze anos, é portadora de uma doença congênita e está em busca do pai; o homem é Marius, sujeito enigmático que parece se esconder do próprio passado. A menina, desprotegida e com dificuldades de comunicação, carrega consigo uma caixa repleta de fichas escritas que formam uma espécie de curso, com atividades e perguntas, e, a partir delas, dá-se um questionamento sobre o que é o ser humano. Juntas, as duas personagens chegam a um estranho hotel em Berlim, no qual os quartos não têm números, mas carregam os nomes dos campos de concentração que, pouco tempo antes, foram o palco do inferno para milhões de pessoas. Quando Marius pergunta por que fazem aquilo, a dona do hotel responde: “Porque podemos. Somos judeus”.

Trata-se de uma narrativa fantasmagórica e irônica, características típicas do autor português, que neste livro cria um retrato tocante da guerra e de suas vítimas.  Continue lendo

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Estado de exceção, ou, da ambivalência entre violência e poder

16 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Goya, gravura da série “Os desastres da guerra”

Diante do horror frente aos atentados em Paris, a filósofa Judith Butler, no próprio dia 13, escreveu, a pedido de Helder Ferreira, um preciso artigo, publicado na revista Cult [tradução de Sofia Nestrovski], no qual diz:

“As discussões televisivas que ocorreram imediatamente após os eventos parecem deixar claro que o ‘estado de emergência’, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo ‘completar’ esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o ‘islã’, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como ‘guerra’, tentou parecer másculo, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo de sua performance – tornou-se difícil, então, levar seu discurso a sério. E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército”.

Butler alerta: “A distinção entre estado e exército se dissolve em um estado de emergência”.

A discussão é delicada e pertinente, pois, como diz a filósofa, as “pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível”; por outro lado, no momento, em Paris, “não há toque de recolher instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais”.

Outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, em Estado de Exceção, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial em 2004, estuda a contraditória figura dos momentos antes “extraordinários” – de emergência, sítio, guerras – nos quais o Estado usa de dispositivos legais para suprimir os limites da sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Para Agamben, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.

O poder além de regulamentações e controle, segundo Agamben, hoje não é mais excepcional, mas o padrão de atuação dos Estados. Ironicamente, para preservar a liberdade, a lógica do estado de exceção assegura a soberania do governo – legitima a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança, a serviço da concentração de poder.  Continue lendo

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O fim da arte

13 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O célebre tema, hegeliano, tornou-se um mote da teoria e da crítica de arte contemporânea.

Baseada no domínio da subjetividade, a situação da arte, na estética de Hegel, deve ser analisada de acordo com o desenvolvimento do espírito como um todo. Retomadas, suas reflexões são fundamento para a discussão dos rumos da arte contemporânea e dos limites das narrativas acompanham o que os artistas produzem.

A questão germinou a discussão, presente sobretudo na filosofia francesa contemporânea, sobre a estetização do mundo.

 

Hegel, "Cursos de Estética" [vol. I]

Hegel, “Cursos de Estética” [vol. I]

G. W. F. Hegel, ao ministrar seus Cursos de Estética, no século XIX, enunciou a tese do “fim da arte”. O filósofo, não procurava clamar a destruição da arte ou das práticas artísticas, mas distinguir e estabelecer a mudança de significado sofrida pelas artes, no mundo moderno, desde a antiguidade. Desde a Grécia antiga, a arte tanto seguia quanto oferecia uma orientação ligada à filosofia e a concepções políticas e sociais e, com a arte moderna, essa vinculação teria chegado ao fim. Trata-se, grosso modo, do fim do verdadeiro ideal, ou seja, fim do papel privilegiado da arte enquanto revelação e manifestação da verdade. Pois, valendo-nos da ambiguidade da palavra “fim” – término, mas também finalidade –, “o fim da arte consiste em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito”.

O filósofo brasileiro Gerd Bornheim, em Páginas de filosofia da arte, retoma a formulação hegeliana da morte da arte, mostrando seu sentido como interrupção de um modelo artístico fundamentado no conceito de imitação, com a arte, que nasce com o romantismo, baseada na dicotomia sujeito-objeto.

De acordo com a pesquisadora Márcia C. F. Gonçalves, conforme o diz no artigo “A morte e a vida da arte”, porém, é necessário cuidado interpretativo, pois a “especulação estética de Hegel não envolve uma constatação do fim da arte enquanto fenômeno histórico, mas apenas da sua transformação gradual a partir do predomínio da reflexão sobre intuição na idade moderna”.

Os Cursos de Estética de Hegel podem ser considerados como o maior empreendimento de filosofia da arte dos tempos modernos. Os quatro volumes investigam filosoficamente o fenômeno sensível da arte. A tradução desta edição brasileira foi feita a partir do original alemão, tomando como base a primeira edição de 1835, e vem acompanhada de um glossário com os principais conceitos empregados por Hegel.

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Gerd Bornheim

12 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O aspecto mais fascinante de uma pesquisa filosófica reside talvez no fato de que ela se faz refratária a uma palavra final e definitiva. Não porque repouse no jogo infindável da conotação lógica das palavras, e sim porque há uma “prosa do mundo” – prosa que se inventa a si mesma, aderida a um mundo sempre em transformação. Todo o escopo do pensamento consiste em decifrar essa prosa, já que nela se esgota a inteireza da própria legitimidade do ato de pensar. – Gerd Bornheim.

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Gerd Bornheim (1929 – 2002) é considerado um dos poucos grandes filósofos brasileiros.

Dedicou boa parte de sua obra ao teatro, porém dizia considerar secundária sua produção sobre dramaturgia, em relação à importância que atribuía à sua atividade filosófica. Foi um dos grandes divulgadores da filosofia de Sartre, porém lia seu pensamento enquanto “enraizado, sobretudo, em Heiddeger, em Hegel e em Marx”.

A Edusp acaba de publicar uma cuidadosa e representativa reunião de ensaios de Gerd Bornheim, organizados por Gaspar Paz, sob o título Temas de filosofia.

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O tenente Quetange

9 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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Iuri Tyniánov [1894 – 1943] é conhecido sobretudo por seu estudo da teoria poética, trabalho vinculado ao formalismo russo. Ocupou-se da natureza do verso, da noção de história literária, do nascimento da poesia russa moderna a partir do conflito entre arcaizantes e inovadores.

Suas incursões na prosa de ficção, porém, são igualmente bem sucedidas.

O tenente Quetange, traduzido para o português por Aurora Bernardini, é uma sátira do autoritarismo e de sua burocracia.

O improvável patronímico é fruto de um emprego equivocado de um clichê da burocracia russa, a expressão “que tange”. A edição brasileira, publicada pela Cosac Naify, conta ainda com prefácio de Boris Schnaiderman.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Literatura turca

6 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O que sabemos sobre a literatura turca?

O Prêmio Nobel concedido em 2006 a Orthan Pamuk foi o estopim para um crescente interesse pelas obras literárias turcas.

Segundo Azade Seyhan, estudiosa de literatura turca e professora na Universidade Bryn Mawr, na Pensilvânia, EUA, conforme citada pelo tradutor e professor da USP Marco Syrayama de Pinto: “A história da literatura turca moderna é um vasto tesouro que permanece em sua maior parte ainda inexplorado. Falta de conhecimento da vida cultural dos turcos e de sua língua; a escassez de traduções e a visão generalizada do Oriente Médio como uma área exclusivamente sociológica na qual as humanidades nunca acontecem […] impedem o acesso a essa rica tradição literária”.

 

 

Nâzim Hikmet, "Paisagens humanas do meu país"

Nâzim Hikmet, “Paisagens humanas do meu país”

Paisagens humanas do meu país é a obra máxima de Nâzým Hikmet (1902-1963), poeta turco que é um dos principais nomes da literatura moderna em todo o mundo – apenas a distância entre as línguas justifica seu relativo desconhecimento no Brasil.

A interessante obra acaba de ganhar tradução para o português, direto do turco, por Marco Syrayama de Pinto, em cuidadoso volume publicado pela Editora 34.

O livro começou a ser escrita na prisão de Bursa, na Turquia, em 1939, com o intuito de ser uma enciclopédia dos tipos humanos que o poeta conhecera. O texto acabou por tornar-se um verdadeiro épico do século XX. Hikmet articula técnicas do romance, do teatro e do cinema, diálogos epistolares e emissões radiofônicas, trechos de reportagens, canções e contos folclóricos tradicionais. O livro acompanha a vida de pessoas de diferentes estratos sociais, criando uma rica trama de histórias que têm, sob seus entrelaçamentos, as lutas pela libertação da Turquia na década de 1920 e a experiência da Segunda Guerra Mundial – retratada através de muitos planos, dos campos de batalha aos arranjos de bastidores.

Paisagens humanas do meu país é um livro que se deixa ler como uma espécie de Aleph da conturbada história do nosso tempo. Hikmet é também comparado a Pablo Neruda, por sua exuberância lírica e posicionamento político, e a García Lorca, por seu enraizamento na paisagem e cultura locais.

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Assim começa o mal

5 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Pintura de Tamara de Lempicka

Pintura de Tamara de Lempicka

Recém lançado no Brasil, Assim começa o mal, do espanhol Javier Marías, é considerado um dos melhores livros do ano. Marías, célebre por sua prosa arrebatadora e capacidade narrativa instigante e atraente, inicia sua história na Madri pós-ditatura franquista do início dos anos 1980, momento em que a capital espanhola fervia.

O título é um verso do Hamlet de Shakespeare, que, tratando do rancor e da vingança, diz que quando começa o mal, o pior fica para trás.

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Metafísicas canibais

30 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A pesquisa antropológica faz, de seu objeto de estudo, o próprio paradigma de seu trabalho: é a tese que defenderia o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, num livro, cujo título seria “O anti-Narciso”, que, porém, jamais conseguirá concluir, tese, esta, que mostra a antropologia como uma versão das práticas de conhecimento indígenas que lhe serviram de estudo.

Se o perspectivismo conceitualiza a visão abstrata que os povos indígenas têm da natureza, perspectivando-a humanamente, pode-se, a partir da discussão, analisar a teia de relações estabelecidas entre espelhamentos e apropriações de lógicas, bem como de maneiras de se conhecer o mundo, o outro e o próprio eu – individual ou social.

Nosso guia segue apenas uma das trilhas sugeridas por Viveiros de Castro.

 

Eduardo Viveiros de Castro, “A inconstância da alma selvagem”

A inconstância da alma selvagem foi a publicação que reuniu pela primeira vez em um único volume toda a trajetória intelectual do antropólogo até então [2002]. Os ensaios de Viveiros de Castro, em grande parte centrados nas sociedades amazônicas, analisam o pensamento indígena, através de um forte diálogo com a filosofia. Nestes escritos encontra-se o original conceito de “perspectivismo” – que diz respeito à concepção de que animais e espíritos ocupam legitimamente a posição de sujeitos. O perspectivismo ameríndio confere aos animais existência cultural, porém a partir de uma confluência de perspectivas, cujo ponto em comum é a subjetividade; pois os animais, assim como os humanos, veem-se como humanos – ainda que não vejam os humanos como animais. A questão, portanto, é posta como variável de acordo ponto de vista. A alteridade é vista sob diferentes formas estabelecidas por relações.

Conforme sintetiza, em resenha publicada na revista Mana, o professor da Unicamp Mauro W. Barbosa de Almeida: “A Inconstância, lembremos de novo, não é um tratado: é um livro de ensaios em movimento, que deixam à mostra o processo de descoberta. Um dos exemplos é que vemos primeiro o tema de uma pancosmologia ameríndia emergir no fascinante estudo dos modalizadores ontológicos yawalapíti (cap. 1); observamos, então, o jogo de perspectivas instáveis no diálogo do matador e da vítima (cap. 4), antes que o conceito mesmo apareça; e as várias modalidades de alterização através do canibalismo, até que, em um salto de imaginação, alimentada pelo diálogo de professor-aluna, vemos todos esses perspectivismos particulares se unificarem em um perspectivismo generalizado, agora na forma de um programa de pesquisa cheio de entusiasmo, consciente da descoberta de uma solução que é, por sua vez, o ponto de partida para uma “grande teoria unificada”. O professor aponta que a visão de Viveiros de Castro adota o ângulo de uma ontologia de modos de predação, que é intimamente conectada com “uma visão epistemológica quase desnorteadora por sua novidade, que é a teoria do perspectivismo ameríndio. Sem procurar resumi-la, essa teoria aponta para um aspecto crucial da pensée sauvage, mostrando os ameríndios como naturalistas que não apenas são taxonomistas ao estilo de Lineu, mas também argutos defensores, como Darwin, da unidade profunda que liga plantas, animais e humanidade, embora vendo essa unidade de um ângulo, por assim dizer, oposto, ao trazerem a animalidade para o domínio da humanidade”.

A “inconstância” da alma selvagem alude ao fato de que ao “tentarem catequizar os Tupinambá, os jesuítas encontravam sua maior dificuldade na ‘inconstância’ apresentada pelos índios. Estes pareciam sedentos para aprender os ensinamentos jesuíticos, mas a rapidez com que voltavam a seus antigos costumes era algo de assustador aos jesuítas”Continue lendo

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Contra os gramáticos

29 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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O filósofo antigo Sexto Empírico foi um cético grego da escola pirrônica, cujos escritos dirigem-se contra a defesa dogmática que pretende conhecer uma verdade absoluta. Uma de suas mais importantes reflexões céticas desenvolve-se na obra “Contra os Matemáticos” (Adversus Mathematicos), também conhecida como “Contra os Professores”, dividida em seis livros: Contra os Gramáticos (Livro I), Contra os Retóricos (Livro II), Contra os Geômetras (Livro III), Contra os Aritméticos (Livro IV), Contra os Astrólogos (Livro V) e Contra os Músicos (Livro VI).

A editora Unesp acaba de publicar uma cuidadosa edição bilíngue de Contra os gramáticos, em que Sexto discute o papel crucial do uso comum das palavras para a compreensão da linguagem e para o bom filosofar. Atento aos sentidos técnicos e problemáticos com que os dogmáticos usavam as palavras, ele critica a tentativa de uma gramática geral, de princípios universais, e defende uma concepção convencionalista da linguagem.  Continue lendo

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Federigo Tozzi

26 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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A interessante e jovem editora Carambaia teve uma sagaz ideia: para montar seu planejamento de publicações, adicionou, a uma longa lista de autores e títulos selecionados pelos editores, as sugestões dos tradutores que contratou – pediu-lhes que indicassem textos que gostariam de traduzir, mas para o quê o mercado editorial nunca dera espaço. Foi assim que a editora chegou, através do tradutor Maurício Santana Dias, no italiano Federigo Tozzi (1883-1920) e lançou, há pouco, seu romance Memórias de um empregado.

O romance é escrito em forma de pequenas entradas de diário. Acompanha a história, um jovem de uma família operária que, pressionado pelo pai, parte de sua cidade natal, Pontedera, para trabalhar em uma estação ferroviária. Enquanto está longe, o protagonista mantém um diário e corresponde-se com a namorada, deixada na pequena cidade. O fato é autobiográfico.

Tozzi, que durante muito tempo foi um autor desconhecido, é hoje considerado um dos maiores escritores italianos, um dos mais importantes narradores do século passado, objeto de um crescente interesse, por parte da crítica literária. É comparado, por críticos, a Luigi Pirandello e Italo Svevo, apesar de que sua obra permanece, contudo, pouco conhecida pelo público leitor brasileiro. Mesmo na Itália, os livros de Tozzi só começaram a se popularizar nos anos sessenta, quando a crítica passou a atentar para o pioneirismo de sua ficção, dotada de um realismo psicológico cuja veia lírica é notável e profundamente instigante.

Sua prosa utiliza a forma tradicional do realismo apenas para exprimir uma visão particular da realidade e gira em torno da inadequação do indivíduo. Encontra-se, em seus textos, uma espécie de representação lírica do homem frente ao mundo e às coisas. O texto de Tozzi é também conhecido por ser inovador na forma. O romance tem pontuação, ritmo e estilo que marcam sua modernidade.

O romance mostra o solitário limbo de quem vive uma vida, em si, insignificante, como se vivesse “de olhos fechados” (alusão ao título de outro de seus romances e metáfora que atravessa sua obra, de maneira geral).

Memórias de um empregado foi publicado em 1920, ano da morte de Tozzi – morreu aos 37 anos, vítima da gripe espanhola.A edição brasileira, além da tradução do professor da USP, Maurício Santana Dias, conta com apresentação de Maria Betânia Amoroso.

 

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“Se certas pessoas soubessem dos traços indeléveis que deixaram em mim, ficariam espantadas. Quando penso que sou feito de tantas linhas correspondentes a outros tantos dias, me pergunto se quem existe sou eu ou as coisas que agora tenho diante dos olhos. E me pergunto o que significa viver”.

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MEMÓRIAS DE UM EMPREGADO

Autor: Federigo Tozzi
Editora: Carambaia
Preço: R$ 55,01 (144 págs.)

 

 

 

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Guia de Leitura

Anatomia da melancolia

23 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A melancolia, diz Robert Burton, pode ser uma disposição, ou um hábito. Sua monumental Anatomia da melancolia trata da melancolia não enquanto disposição, seu sentido atualmente mais usual – como descontentamento, angústia, tristeza, depressão –, mas enquanto hábito, ou mesmo uma mania, um humor fixo, portanto dificilmente removível.

Publicada originalmente em 1621, esta é uma obra-prima, filosófica, psicológica, literária. Burton compilou todo o material então disponível para, a partir da melancolia, investigar e explicar todas as emoções humanas, bem como suas causas “psíquicas”.

A edição brasileira, publicada com a ótima tradução de Guilherme Gontijo Flores – tradução vencedora do prêmio Jabuti 2014 –, pela editora da UFPR, traz o texto em quatro tomos:

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume I - Demócrito Júnior ao leitor

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume I – Demócrito Júnior ao leitor

O primeiro volume intitula-se Demócrito Júnior ao leitor. Burton escreve, sob esse pseudônimo – homenagem ao “filósofo que ria”, de acordo com a descrição de Hipócrates –, este prefácio sarcástico.

O tradutor, Guilherme Gontijo Flores, no artigo “A anatomia no Brasil”, publicado na revista Anamorfose, explica: A persona de Demócrito ajuda na construção de uma escrita constantemente irônica, com bases na obra de verve satírica do autor grego Luciano de Samósata e nas suas estruturas similares à fábula menipeia; além de uma persistente auto-derrisão que muitas vezes põe em cheque o que o próprio autor parece defender e acaba deixando o leitor desnorteado, ou, quem sabe, convidado a tomar parte no pensamento, a largar o comodismo do leitor passivo. O livro, como venho dizendo, é amplíssimo e abarca muitos autores, épocas e temas; várias partes, ainda que integradas na totalidade do livro, são praticamente ensaios separados (inclusive são traduzidos separadamente, vez por outra): “A digressão do ar” é um dos primeiros ensaios ocidentais sobre climatologia, “A melancolia religiosa” é o primeiro estudo detalhado sobre o assunto; seu estudo psicológico do sexo antecipa Havelock Ellis e Bernard Shaw; enquanto no prefácio encontramos uma Utopia burtoniana que se parece com a de Wells; seus comentários sobre ações contrárias à consciência podem elencá-lo num grupo de psicanalistas avant la lettre. Burton revela-se um sonoro economista político, protecionista, oponente dos monopólios, inimigo da guerra, defensor de melhores estradas, das irrigações terrestres, das construção de jardins, das pensões para os idosos, da sexualidade humana, do desejo feminino, etc. Resumindo: um livro assentado sobre livros, mas capaz de invocar o humano de quem o lê”. Continue lendo

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Forma de protesto

22 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
gravura de Lasar Segall

gravura de Lasar Segall

Acaba de ser publicado o livro Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil, do historiador Flávio dos Santos Gomes, pela Companhia das Letras.

Trata-se de um estudo sobre a existência, por todo o Brasil, de comunidades negras rurais que são remanescentes de quilombos – concretude da continuidade social e histórica de um processo mais longo da escravidão e das primeiras décadas da pós-emancipação do que se costuma supor. As comunidades de fugitivos da escravidão não representam, nas palavras do autor, um passado imóvel, “aquilo que sobrou (posto nunca transformado) de um passado remoto. As comunidades de fugitivos da escravidão produziram histórias complexas de ocupação agrária, criação de territórios, cultura material e imaterial próprias baseadas no parentesco e no uso e manejo coletivo da terra. O desenvolvimento das comunidades negras contemporâneas é bastante complexo, com seus processos de identidade e luta por cidadania”. O livro repassa a história dos quilombos, e seus desdobramentos, do passado e do presente.

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O Brasil não é longe daqui

19 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
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Debret

Publicado em 1990 pela Companhia das Letras, o interessante estudo de Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui – O narrador, a viagem, alia análise histórica a um olhar atento ao lirismo de seu material: por entre charadas, textos de divulgação científica, estampas de plantas e animais, pequenas biografias e casos curiosos, Süssekind trata do narrador de ficção na literatura brasileira, o qual surpreende em pleno movimento, ao longo do processo histórico de sua formação, desde os relatos de viagens – fundamentais para a criação de um imaginário paisagístico do Brasil –, mediados pela figura de um narrador-viajante que, mutante – ora cartógrafo, ora historiador, ora cronista –, daria as cartas na nossa prosa de ficção romântica.

A análise de Süssekind primeiro investiga e data “a constituição de um narrador de ficção na prosa brasileira”. Ao mesmo tempo, partindo de “uma questão específica no campo da historiografia literária”, analisa a noção do “começo histórico, da ‘origem’ entendida como processo de emergência e singularização, em meio a escolhas, repetições e diferenciações, figurações e recomposições diversas”. Assim, delimitando a caracterização que tanto constitui, quanto origina o narrador de ficção, a autora acompanha o narrador-viajante desde seu surgimento, nas décadas de 1830 e 1840, na prosa ficcional brasileira.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Livros de fotografias de índios no Brasil

16 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Até quando será que o Brasil vai ignorar a responsabilidade que tem com seus indígenas?

Reunimos aqui alguns trabalhos fotográficos que originaram livros e cujo tema foram índios brasileiros.

Mais do que imagens belas, que de fato o são, trata-se de trabalhos documentais profundos, ensaios fotográficos complexos. Em que aspectos da riqueza cultural abstrata ganha a representação concreta da imagem.

Essas fotografias são, de certa maneira, estímulos antropológicos, pois fazem com que se possa ver “o outro” como parte de um todo comum, ou seja, os homens, retratados, levam também à consideração do homem, do humano.

 

Claudia Andujar, "Marcados"

Claudia Andujar, “Marcados”

A fotógrafa Claudia Andujar desenvolve um papel crucial na luta do povo indígena Yanomami, a que tem se dedicado desde o final da década de 1970. Ela estabeleceu seu primeiro contato com os índios devido a trabalhos fotojornalísticos, sobretudo desenvolvidos no período áureo da revista Realidade, e a realização de importantes ensaios fotográficos na companhia das tribos graças foi possibilitada por bolsas de estudos, brasileiras e internacionais. Seus trabalhos integram acervos de grandes museus, como por exemplo o MoMA, em Nova York.

Em 2009 Claudia Andujar publicou pela CosacNaify o livro Marcados, composto por 85 fotos dos índios Yanomami realizadas entre 1981 e 1983, durante uma viagem de levantamento das suas condições de saúde após o contato com o branco. Para a catalogação dos registros, como os Yanomami não respondem a nome próprio, foi adotado o método, consagrado desde o século XIX para a identificação dos povos nativos, que consiste em uma fotografia do indivíduo com um número preso ao corpo. O conjunto das fotos transformado em livro apresenta-se como um profundo questionamento sobre as relações que povos exercem sobre outros, marcando-os e determinando a extensão de sua sobrevivência.

Yanomami, publicado, pela editora DBA, em 1998 e infelizmente esgotado e indisponível mesmo em sebos, é seu possivelmente mais belo livro, um interessante trabalho fotográfico. Profundamente poético, reúne fotografias que unem intenções documentais a uma estética onírica. Através dos fortes contrastes, as fotos revelam o efeito da iluminação na completude de sua carga simbólica.

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Contos de Kolimá

15 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Estou convencido de que os campos de prisioneiros, todos eles, são uma escola negativa; passar neles uma hora que seja é uma defloração. O campo de prisioneiros não dá, nem pode dar, nada de positivo a ninguém. Sobre todos, encarcerados e trabalhadores contratados, o campo age de modo deflorador”.

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Na desolada região no extremo leste da Sibéria conhecida como Kolimá, onde as temperaturas chegam a 60 graus negativos, existiram alguns dos campos de trabalhos forçados mais temíveis e desumanos da era stalinista. É sobre eles que o escritor russo Varlam Chalámov (1907-1982) fala em Contos de Kolimá, recentemente lançado pela Editora 34, em uma edição cuidadosa, com tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich, apresentação de Boris Schnaiderman e prefácio de Irina P. Sirotínskaia, companheira do escritor em seus últimos anos e profunda conhecedora de sua obra.

Chalámov, poeta e jornalista, conheceu profundamente Kolimá, pois alí cumpriu a maior parte de sua pena de quase vinte anos: preso político, trabalhou até 16 horas por dia em minas de ouro e carvão, constantemente doente e subnutrido.

Ao final da pena, o escritor retornou a Moscou e, no ano seguinte, começou a dedicar-se à composição de sua obra monumental, trabalho que lhe tomou mais novos vinte anos: Contos de Kolimá, mais de duas mil páginas divididas em seis volumes, que retomam de maneira profunda a memória do autor, uma vasta coleção de histórias da vida cotidiana nos campos de prisioneiros que forma um relato autobiográfico agudo, pois acompanhado por uma reflexão profunda sobre os limites do humano frente à brutalidade sem limites.  Continue lendo

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