Literatura

Humilhados e ofendidos

7 dezembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Osvaldo Goeldi

O romance Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski, é considerado pela crítica como um dos mais notáveis textos do autor. Trata-se de um retrato profundamente complexo das condições psicológicas e morais às quais a própria condição humana submete-se na vida urbana. Dividido em quatro partes, o romance perpassa e une as histórias de um príncipe, um escritor e de uma família empobrecida, que encontra-se em condição penúria e degradação na cidade grande.

A narrativa foi publicado originalmente no início da década de 1860; escrita para ser publicada no jornal “Vrênia”. Ao longo de seus capítulos, o desenrolar da prosa dostoiévskiana mantém o leitor envolto em uma atmosfera de grande tensão psicológica. As histórias das personagens por si sós são densos relatos e, seu cruzamento, é de tal forma encaminhado, que completa um efeito vivo de inquietude, marcado pela intensidade de sentimentos espessamente envoltos em mistério.   Continue lendo

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Guia de Leitura

As traduções da Odisseia

4 dezembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Uma tradição tradutora no Brasil consolida-se em diversas áreas, para a felicidade do leitor. Traduções diretas do original, ao invés de mediadas por outras traduções, começam a ser, cada vez mais, verdadeiras exigências.

Obras clássicas sobretudo acabam tendo diversas traduções e, assim, o leitor pode escolher a vertente teórica que mais lhe adequa – se leituras mais fiéis ao original em sua forma, se leituras mais acessíveis a seu vocabulário contemporâneo, se historicamente mais fieis.

A Odisseia tem, atualmente no mercado brasileiro, algumas diferentes traduções. As mais comentadas divergem justamente pela concepção da obra e de sua transmissão pelos respectivos tradutores.

 

Homero, Odisseia [tradução de Frederico Lourenço]

A tradução do português Frederico Lourenço, publicada pela Companhia das Letras, conseguiu reproduzir uma versão fluente e mais prosaica, capaz de transmitir o texto aos leitores contemporâneos sem grandes estranhamentos.

A versão da Penguin-Companhia das Letras vem com um “guia de leitura” ao final, com algumas questões de verificação de compreensão acerca de alguns episódios, com respectivas respostas, além de uma seleção bibliográfica recomendada à guisa de comentário – dois livros publicados nos Estados Unidos, dois na Inglaterra e um em Portugal.

A edição conta com introdução e notas escritas pelo falecido professor inglês Bernard Knox, estudioso dos textos da Grécia Antiga, debruçou-se durante a carreira acadêmica principalmente sobre a obra de Sófocles e foi diretor e fundador do Centro de Estudos Helênicos da Universidade de Harvard. O tradutor Frederico Lourenço é também responsável pelo prefácio.

A editora disponibiliza trecho do Canto I em seu site.

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O paraíso perdido

3 dezembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Gravura de Gustave Doré para “O paraíso perdido”

A desobediência do homem e, como consequência a ela, a perda do Paraíso que habitava. O primeiro motivo de sua desgraça foi a aparição da Serpente, ou melhor dizendo, de Satã, nela personificado; o qual, rebelando-se contra Deus e atraindo a seu partido numerosas legiões de anjos, foi, por ação divina, banido do céu e precipitado, com sua horda, ao profundo abismo.

Eis em linhas gerais o mote do grandioso poema O paraíso perdido, um dos maiores épicos da literatura ocidental, obra do inglês John Milton (1608-1674). O poema acaba de ter uma cuidadosa edição lançada no Brasil pela editora 34. Bilíngue, a edição traz a elogiada tradução do premiado poeta português Daniel Jonas, que segue de perto a versificação e a musicalidade do original. O volume conta ainda com a apresentação, apaixonada, do crítico Harold Bloom. Completam ainda esta joia editorial a fantástica série de cinquenta ilustrações de Gustave Doré, publicadas em 1866.  Continue lendo

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Uma filosofia da cultura humana

30 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Edvard Munch, 1895

Ernst Cassirer [1874 – 1945] foi um dos maiores filósofos do século XX.

Seu Ensaio sobre o homem – traduzido no Brasil primeiramente como “Antropologia filosófica”[i] – apresenta os resultados de uma vida de estudos sobre as realizações culturais da humanidade. É uma síntese original do conhecimento contemporâneo, uma interpretação notável da crise intelectual de nosso tempo e uma brilhante defesa da capacidade da razão do homem.

Diz Cassirer que “no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não é apenas quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado com os outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inconfundível entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, uma resposta direta e imediata é dada a um estímulo externo; no segundo, a resposta é diferida. É interrompido e retardado por um lento e complicado processo de pensamento”.

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As areias do imperador

26 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Ngungunhane (1884-1895)

Ngungunhane (1884-1895)

A história de Moçambique, sobretudo sua história mais recente, é marcada por um quadro social complexo e uma grande instabilidade política. O moçambicano Mia Couto resolveu contá-la através da impressionante trilogia As Areias do Imperador. No Brasil, a Companhia das Letras acaba de publicar o primeiro volume, Mulheres de cinzas, notável por unir, à já conhecida prosa lírica do autor, a força do romance histórico.

O romance se passa na época em que o sul de Moçambique era governado por Ngungunyane – conhecido pelos portugueses como Gungunhane –, herói nacional símbolo da resistência contra a colonização européia, último dos líderes do Estado de Gaza, o segundo maior império no continente comandado por um africano.

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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai

19 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Samico [“João, Maria e o pavão azul”, 1960]

Acaba de ser publicado no Brasil o livro Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, do português Gonçalo M. Tavares.

O romance se passa na Europa pós Segunda Guerra, em meio a uma paisagem de escombros, figuras esqueléticas e quase absoluto desamparo social e psicológico. Naquele cenário, uma menina e um homem perambulam por entre as ruínas. A menina é Hanna, tem catorze anos, é portadora de uma doença congênita e está em busca do pai; o homem é Marius, sujeito enigmático que parece se esconder do próprio passado. A menina, desprotegida e com dificuldades de comunicação, carrega consigo uma caixa repleta de fichas escritas que formam uma espécie de curso, com atividades e perguntas, e, a partir delas, dá-se um questionamento sobre o que é o ser humano. Juntas, as duas personagens chegam a um estranho hotel em Berlim, no qual os quartos não têm números, mas carregam os nomes dos campos de concentração que, pouco tempo antes, foram o palco do inferno para milhões de pessoas. Quando Marius pergunta por que fazem aquilo, a dona do hotel responde: “Porque podemos. Somos judeus”.

Trata-se de uma narrativa fantasmagórica e irônica, características típicas do autor português, que neste livro cria um retrato tocante da guerra e de suas vítimas.  Continue lendo

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Estado de exceção, ou, da ambivalência entre violência e poder

16 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Goya, gravura da série “Os desastres da guerra”

Diante do horror frente aos atentados em Paris, a filósofa Judith Butler, no próprio dia 13, escreveu, a pedido de Helder Ferreira, um preciso artigo, publicado na revista Cult [tradução de Sofia Nestrovski], no qual diz:

“As discussões televisivas que ocorreram imediatamente após os eventos parecem deixar claro que o ‘estado de emergência’, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo ‘completar’ esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o ‘islã’, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como ‘guerra’, tentou parecer másculo, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo de sua performance – tornou-se difícil, então, levar seu discurso a sério. E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército”.

Butler alerta: “A distinção entre estado e exército se dissolve em um estado de emergência”.

A discussão é delicada e pertinente, pois, como diz a filósofa, as “pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível”; por outro lado, no momento, em Paris, “não há toque de recolher instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais”.

Outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, em Estado de Exceção, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial em 2004, estuda a contraditória figura dos momentos antes “extraordinários” – de emergência, sítio, guerras – nos quais o Estado usa de dispositivos legais para suprimir os limites da sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Para Agamben, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.

O poder além de regulamentações e controle, segundo Agamben, hoje não é mais excepcional, mas o padrão de atuação dos Estados. Ironicamente, para preservar a liberdade, a lógica do estado de exceção assegura a soberania do governo – legitima a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança, a serviço da concentração de poder.  Continue lendo

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Guia de Leitura

O fim da arte

13 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O célebre tema, hegeliano, tornou-se um mote da teoria e da crítica de arte contemporânea.

Baseada no domínio da subjetividade, a situação da arte, na estética de Hegel, deve ser analisada de acordo com o desenvolvimento do espírito como um todo. Retomadas, suas reflexões são fundamento para a discussão dos rumos da arte contemporânea e dos limites das narrativas acompanham o que os artistas produzem.

A questão germinou a discussão, presente sobretudo na filosofia francesa contemporânea, sobre a estetização do mundo.

 

Hegel, "Cursos de Estética" [vol. I]

Hegel, “Cursos de Estética” [vol. I]

G. W. F. Hegel, ao ministrar seus Cursos de Estética, no século XIX, enunciou a tese do “fim da arte”. O filósofo, não procurava clamar a destruição da arte ou das práticas artísticas, mas distinguir e estabelecer a mudança de significado sofrida pelas artes, no mundo moderno, desde a antiguidade. Desde a Grécia antiga, a arte tanto seguia quanto oferecia uma orientação ligada à filosofia e a concepções políticas e sociais e, com a arte moderna, essa vinculação teria chegado ao fim. Trata-se, grosso modo, do fim do verdadeiro ideal, ou seja, fim do papel privilegiado da arte enquanto revelação e manifestação da verdade. Pois, valendo-nos da ambiguidade da palavra “fim” – término, mas também finalidade –, “o fim da arte consiste em pôr ao alcance da intuição o que existe no espírito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espírito”.

O filósofo brasileiro Gerd Bornheim, em Páginas de filosofia da arte, retoma a formulação hegeliana da morte da arte, mostrando seu sentido como interrupção de um modelo artístico fundamentado no conceito de imitação, com a arte, que nasce com o romantismo, baseada na dicotomia sujeito-objeto.

De acordo com a pesquisadora Márcia C. F. Gonçalves, conforme o diz no artigo “A morte e a vida da arte”, porém, é necessário cuidado interpretativo, pois a “especulação estética de Hegel não envolve uma constatação do fim da arte enquanto fenômeno histórico, mas apenas da sua transformação gradual a partir do predomínio da reflexão sobre intuição na idade moderna”.

Os Cursos de Estética de Hegel podem ser considerados como o maior empreendimento de filosofia da arte dos tempos modernos. Os quatro volumes investigam filosoficamente o fenômeno sensível da arte. A tradução desta edição brasileira foi feita a partir do original alemão, tomando como base a primeira edição de 1835, e vem acompanhada de um glossário com os principais conceitos empregados por Hegel.

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Gerd Bornheim

12 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O aspecto mais fascinante de uma pesquisa filosófica reside talvez no fato de que ela se faz refratária a uma palavra final e definitiva. Não porque repouse no jogo infindável da conotação lógica das palavras, e sim porque há uma “prosa do mundo” – prosa que se inventa a si mesma, aderida a um mundo sempre em transformação. Todo o escopo do pensamento consiste em decifrar essa prosa, já que nela se esgota a inteireza da própria legitimidade do ato de pensar. – Gerd Bornheim.

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Gerd Bornheim (1929 – 2002) é considerado um dos poucos grandes filósofos brasileiros.

Dedicou boa parte de sua obra ao teatro, porém dizia considerar secundária sua produção sobre dramaturgia, em relação à importância que atribuía à sua atividade filosófica. Foi um dos grandes divulgadores da filosofia de Sartre, porém lia seu pensamento enquanto “enraizado, sobretudo, em Heiddeger, em Hegel e em Marx”.

A Edusp acaba de publicar uma cuidadosa e representativa reunião de ensaios de Gerd Bornheim, organizados por Gaspar Paz, sob o título Temas de filosofia.

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O tenente Quetange

9 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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Iuri Tyniánov [1894 – 1943] é conhecido sobretudo por seu estudo da teoria poética, trabalho vinculado ao formalismo russo. Ocupou-se da natureza do verso, da noção de história literária, do nascimento da poesia russa moderna a partir do conflito entre arcaizantes e inovadores.

Suas incursões na prosa de ficção, porém, são igualmente bem sucedidas.

O tenente Quetange, traduzido para o português por Aurora Bernardini, é uma sátira do autoritarismo e de sua burocracia.

O improvável patronímico é fruto de um emprego equivocado de um clichê da burocracia russa, a expressão “que tange”. A edição brasileira, publicada pela Cosac Naify, conta ainda com prefácio de Boris Schnaiderman.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Literatura turca

6 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O que sabemos sobre a literatura turca?

O Prêmio Nobel concedido em 2006 a Orthan Pamuk foi o estopim para um crescente interesse pelas obras literárias turcas.

Segundo Azade Seyhan, estudiosa de literatura turca e professora na Universidade Bryn Mawr, na Pensilvânia, EUA, conforme citada pelo tradutor e professor da USP Marco Syrayama de Pinto: “A história da literatura turca moderna é um vasto tesouro que permanece em sua maior parte ainda inexplorado. Falta de conhecimento da vida cultural dos turcos e de sua língua; a escassez de traduções e a visão generalizada do Oriente Médio como uma área exclusivamente sociológica na qual as humanidades nunca acontecem […] impedem o acesso a essa rica tradição literária”.

 

 

Nâzim Hikmet, "Paisagens humanas do meu país"

Nâzim Hikmet, “Paisagens humanas do meu país”

Paisagens humanas do meu país é a obra máxima de Nâzým Hikmet (1902-1963), poeta turco que é um dos principais nomes da literatura moderna em todo o mundo – apenas a distância entre as línguas justifica seu relativo desconhecimento no Brasil.

A interessante obra acaba de ganhar tradução para o português, direto do turco, por Marco Syrayama de Pinto, em cuidadoso volume publicado pela Editora 34.

O livro começou a ser escrita na prisão de Bursa, na Turquia, em 1939, com o intuito de ser uma enciclopédia dos tipos humanos que o poeta conhecera. O texto acabou por tornar-se um verdadeiro épico do século XX. Hikmet articula técnicas do romance, do teatro e do cinema, diálogos epistolares e emissões radiofônicas, trechos de reportagens, canções e contos folclóricos tradicionais. O livro acompanha a vida de pessoas de diferentes estratos sociais, criando uma rica trama de histórias que têm, sob seus entrelaçamentos, as lutas pela libertação da Turquia na década de 1920 e a experiência da Segunda Guerra Mundial – retratada através de muitos planos, dos campos de batalha aos arranjos de bastidores.

Paisagens humanas do meu país é um livro que se deixa ler como uma espécie de Aleph da conturbada história do nosso tempo. Hikmet é também comparado a Pablo Neruda, por sua exuberância lírica e posicionamento político, e a García Lorca, por seu enraizamento na paisagem e cultura locais.

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Últimas

Assim começa o mal

5 novembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Pintura de Tamara de Lempicka

Pintura de Tamara de Lempicka

Recém lançado no Brasil, Assim começa o mal, do espanhol Javier Marías, é considerado um dos melhores livros do ano. Marías, célebre por sua prosa arrebatadora e capacidade narrativa instigante e atraente, inicia sua história na Madri pós-ditatura franquista do início dos anos 1980, momento em que a capital espanhola fervia.

O título é um verso do Hamlet de Shakespeare, que, tratando do rancor e da vingança, diz que quando começa o mal, o pior fica para trás.

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Guia de Leitura

Metafísicas canibais

30 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A pesquisa antropológica faz, de seu objeto de estudo, o próprio paradigma de seu trabalho: é a tese que defenderia o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, num livro, cujo título seria “O anti-Narciso”, que, porém, jamais conseguirá concluir, tese, esta, que mostra a antropologia como uma versão das práticas de conhecimento indígenas que lhe serviram de estudo.

Se o perspectivismo conceitualiza a visão abstrata que os povos indígenas têm da natureza, perspectivando-a humanamente, pode-se, a partir da discussão, analisar a teia de relações estabelecidas entre espelhamentos e apropriações de lógicas, bem como de maneiras de se conhecer o mundo, o outro e o próprio eu – individual ou social.

Nosso guia segue apenas uma das trilhas sugeridas por Viveiros de Castro.

 

Eduardo Viveiros de Castro, “A inconstância da alma selvagem”

A inconstância da alma selvagem foi a publicação que reuniu pela primeira vez em um único volume toda a trajetória intelectual do antropólogo até então [2002]. Os ensaios de Viveiros de Castro, em grande parte centrados nas sociedades amazônicas, analisam o pensamento indígena, através de um forte diálogo com a filosofia. Nestes escritos encontra-se o original conceito de “perspectivismo” – que diz respeito à concepção de que animais e espíritos ocupam legitimamente a posição de sujeitos. O perspectivismo ameríndio confere aos animais existência cultural, porém a partir de uma confluência de perspectivas, cujo ponto em comum é a subjetividade; pois os animais, assim como os humanos, veem-se como humanos – ainda que não vejam os humanos como animais. A questão, portanto, é posta como variável de acordo ponto de vista. A alteridade é vista sob diferentes formas estabelecidas por relações.

Conforme sintetiza, em resenha publicada na revista Mana, o professor da Unicamp Mauro W. Barbosa de Almeida: “A Inconstância, lembremos de novo, não é um tratado: é um livro de ensaios em movimento, que deixam à mostra o processo de descoberta. Um dos exemplos é que vemos primeiro o tema de uma pancosmologia ameríndia emergir no fascinante estudo dos modalizadores ontológicos yawalapíti (cap. 1); observamos, então, o jogo de perspectivas instáveis no diálogo do matador e da vítima (cap. 4), antes que o conceito mesmo apareça; e as várias modalidades de alterização através do canibalismo, até que, em um salto de imaginação, alimentada pelo diálogo de professor-aluna, vemos todos esses perspectivismos particulares se unificarem em um perspectivismo generalizado, agora na forma de um programa de pesquisa cheio de entusiasmo, consciente da descoberta de uma solução que é, por sua vez, o ponto de partida para uma “grande teoria unificada”. O professor aponta que a visão de Viveiros de Castro adota o ângulo de uma ontologia de modos de predação, que é intimamente conectada com “uma visão epistemológica quase desnorteadora por sua novidade, que é a teoria do perspectivismo ameríndio. Sem procurar resumi-la, essa teoria aponta para um aspecto crucial da pensée sauvage, mostrando os ameríndios como naturalistas que não apenas são taxonomistas ao estilo de Lineu, mas também argutos defensores, como Darwin, da unidade profunda que liga plantas, animais e humanidade, embora vendo essa unidade de um ângulo, por assim dizer, oposto, ao trazerem a animalidade para o domínio da humanidade”.

A “inconstância” da alma selvagem alude ao fato de que ao “tentarem catequizar os Tupinambá, os jesuítas encontravam sua maior dificuldade na ‘inconstância’ apresentada pelos índios. Estes pareciam sedentos para aprender os ensinamentos jesuíticos, mas a rapidez com que voltavam a seus antigos costumes era algo de assustador aos jesuítas”Continue lendo

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Contra os gramáticos

29 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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O filósofo antigo Sexto Empírico foi um cético grego da escola pirrônica, cujos escritos dirigem-se contra a defesa dogmática que pretende conhecer uma verdade absoluta. Uma de suas mais importantes reflexões céticas desenvolve-se na obra “Contra os Matemáticos” (Adversus Mathematicos), também conhecida como “Contra os Professores”, dividida em seis livros: Contra os Gramáticos (Livro I), Contra os Retóricos (Livro II), Contra os Geômetras (Livro III), Contra os Aritméticos (Livro IV), Contra os Astrólogos (Livro V) e Contra os Músicos (Livro VI).

A editora Unesp acaba de publicar uma cuidadosa edição bilíngue de Contra os gramáticos, em que Sexto discute o papel crucial do uso comum das palavras para a compreensão da linguagem e para o bom filosofar. Atento aos sentidos técnicos e problemáticos com que os dogmáticos usavam as palavras, ele critica a tentativa de uma gramática geral, de princípios universais, e defende uma concepção convencionalista da linguagem.  Continue lendo

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Federigo Tozzi

26 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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A interessante e jovem editora Carambaia teve uma sagaz ideia: para montar seu planejamento de publicações, adicionou, a uma longa lista de autores e títulos selecionados pelos editores, as sugestões dos tradutores que contratou – pediu-lhes que indicassem textos que gostariam de traduzir, mas para o quê o mercado editorial nunca dera espaço. Foi assim que a editora chegou, através do tradutor Maurício Santana Dias, no italiano Federigo Tozzi (1883-1920) e lançou, há pouco, seu romance Memórias de um empregado.

O romance é escrito em forma de pequenas entradas de diário. Acompanha a história, um jovem de uma família operária que, pressionado pelo pai, parte de sua cidade natal, Pontedera, para trabalhar em uma estação ferroviária. Enquanto está longe, o protagonista mantém um diário e corresponde-se com a namorada, deixada na pequena cidade. O fato é autobiográfico.

Tozzi, que durante muito tempo foi um autor desconhecido, é hoje considerado um dos maiores escritores italianos, um dos mais importantes narradores do século passado, objeto de um crescente interesse, por parte da crítica literária. É comparado, por críticos, a Luigi Pirandello e Italo Svevo, apesar de que sua obra permanece, contudo, pouco conhecida pelo público leitor brasileiro. Mesmo na Itália, os livros de Tozzi só começaram a se popularizar nos anos sessenta, quando a crítica passou a atentar para o pioneirismo de sua ficção, dotada de um realismo psicológico cuja veia lírica é notável e profundamente instigante.

Sua prosa utiliza a forma tradicional do realismo apenas para exprimir uma visão particular da realidade e gira em torno da inadequação do indivíduo. Encontra-se, em seus textos, uma espécie de representação lírica do homem frente ao mundo e às coisas. O texto de Tozzi é também conhecido por ser inovador na forma. O romance tem pontuação, ritmo e estilo que marcam sua modernidade.

O romance mostra o solitário limbo de quem vive uma vida, em si, insignificante, como se vivesse “de olhos fechados” (alusão ao título de outro de seus romances e metáfora que atravessa sua obra, de maneira geral).

Memórias de um empregado foi publicado em 1920, ano da morte de Tozzi – morreu aos 37 anos, vítima da gripe espanhola.A edição brasileira, além da tradução do professor da USP, Maurício Santana Dias, conta com apresentação de Maria Betânia Amoroso.

 

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“Se certas pessoas soubessem dos traços indeléveis que deixaram em mim, ficariam espantadas. Quando penso que sou feito de tantas linhas correspondentes a outros tantos dias, me pergunto se quem existe sou eu ou as coisas que agora tenho diante dos olhos. E me pergunto o que significa viver”.

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MEMÓRIAS DE UM EMPREGADO

Autor: Federigo Tozzi
Editora: Carambaia
Preço: R$ 55,01 (144 págs.)

 

 

 

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