Propomos uma análise panorâmica a respeito de uma das figuras mais enigmáticas da história da arte. Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma família de prósperos banqueiros – o banco Warburg foi fundado no século XVIII e, quando Aby Warburg nasceu, era o maior da Alemanha. Aby era o primogênito e herdaria a responsabilidade pelos bem-sucedidos negócios da família, porém jovem ainda, abriu mão de sua primogenia em favor de seu irmão mais novo, com a condição que este lhe fornecesse, ao longo de toda sua vida, todos os livros que desejasse. Assim nasceu a então maior biblioteca privada da Europa, hoje abrigada pelo Instituto Warburg, em Londres. Na entrada da biblioteca, Warburg gravou o nome “Mnemosyne” e esta antiga deidade pagã, a musa da memória, permeia de maneira peculiar o núcleo de toda sua obra – desenvolvida até seu falecimento, em 1929. Porque a grande questão, para Warburg, diz respeito à influência da Antiguidade na cultura europeia na época do Renascimento: haveria um mito do “Reanscimento”?; o que “renasceu” da Antiguidade no Renascimento?; será que “renasceu”, ou há uma memória freática que pode ser percebida na arte? É o que pretendemos mostrar doravante. Continue lendo
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Incerta memória
“Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens” – Borges.
Se questionássemos a história da literatura entendida como linha temporal dialógica de confrontos dos movimentos literários com movimentos antecedentes, veríamos que talvez o que esteja por trás desta concepção seja uma ideia de história linear. A ela poderíamos então sobrepor outra possibilidade, a ideia de história circular. Para precisar, um circular espiralado, com eixo móvel, em que a repetição[1] torna-se um conceito ontológico maior: a concepção de uma ontologia da própria literatura[2], considerando-a sujeito de si, encarnada no artista literário, no escritor. O artista percebe a mobilidade do eixo histórico, vive o paradoxo da repetição. Nas palavras de Deleuze, “não se pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mudança que ela introduz no espírito que contempla”, ou seja, “a não ser por uma diferença que o espírito extrai da repetição” (Deleuze, Diferença e repetição, p. 111): o eixo histórico é móvel, pois o presente constantemente imiscui-se ao passado e dele retorna, um espelho que reflete a diferença; o artista faz esse movimento, cria a si mesmo através da criação da forma a partir da contemplação daquilo que o precede, enquanto sujeito total ou parcial, de si ou da história: “Extrair da repetição algo novo, extrair-lhe a diferença, este é o papel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos ou fragmentados” (idem, p. 118). Para o artista o presente é simbólico, qualquer perturbação ocasionada ao real, carrega-a consigo. Provocando a forma literária, ele preenche a si mesmo, materializando a contemplação dos liames da representação da realidade em pontos complexos, confrontando e efetuando a originalidade de um presente a outro, do real ao mais profundo do próprio ser literário. Sempre em primeiro plano[3].
Signos em rotação ou: por que artista?
A IMAGEM DO MUNDO E A POESIA
A arte responde ao mundo, fala a própria história. Se o “nosso tempo é o do fim da história como futuro imaginável e previsível”, a própria sociedade, como palavra viva e palavra vivida, hoje deve descobrir a figura do mundo na dispersão de seus fragmentos. Paz anuncia daí sua mirada, o “ponto de inserção da poesia que é também um ponto de interseção, centro fixo e vibrante onde se anulam e renascem sem trégua as contradições. Coração-manancial”[i].
Seu poético questionamento debruça-se sobre as “possibilidades de encarnação da poesia”; sua pergunta, não é “sobre o poema e sim sobre a história: será uma quimera pensar em uma sociedade que reconcilie o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida, criação da comunidade e comunidade criadora?”. Paz identifica a questão primordial, que une ao presente o passado: a origem poética da língua ao balbuciamento do signo puro do “contínuo transcender-se, desse permanente imaginar-se” que é o poema enquanto tradução do homem, da sua essência ontológica enquanto constante busca de si, sendo o mundo sem cessar de ser ele mesmo.
“[…] o poeta escuta. No passado foi o homem da visão. Hoje aguça o ouvido e percebe que o próprio silêncio é voz, murmúrio que busca a palavra de sua encarnação. O poeta escuta o que diz o tempo, ainda que ele lhe diga: nada”.
Rubens Rodrigues Torres Filho .parte I.
A arqueologia da palavra é tarefa compartilhada pelo filósofo e pelo poeta. “As palavras são símbolos que postulam uma memória compartilhada”, segundo Borges. Trabalho minucioso, do espírito e da letra. E se acontece-lhe ser feito na poesia escrita por um filósofo, como o é Rubens Rodrigues Torres Filho, ganha um polimento ambivalente porém exato, um humor fino que permite-se chegar a vocábulos eruditos ou expressões coloquiais com a mesma facilidade – e com a mesma ironia.
Poeta solitário, alheio a escolas, grupos ou modismos, mesmo porque a poesia foi-lhe tarefa secundária – quase um capricho, segundo o poeta Cacaso (Antônio Carlos de Brito) – em relação à filosofia, seu objeto de estudo e interesse primeiro. Rubens foi professor de filosofia moderna na Universidade de São Paulo, especialista na filosofia de Fichte – a respeito da qual escreveu uma notória tese, O espírito e a letra: a crítica da imaginação pura em Fichte –, comentador da filosofia alemã, sobretudo dos períodos conhecidos como o Idealismo e o Romantismo, profícuo tradutor de obras de autores como Nietzsche, Novalis, Benjamin, Adorno, Schelling, Kant e Fichte. Nos trabalhos filosóficos vemos sua poesia – a sua articulação de uma brincadeira com a hermenêutica das palavras – em germe. Suas traduções já possuem o cuidado preciso com as palavras, equilibradas como numa escultura; seus comentários de filosofia, o humor irônico que lhe é peculiar.
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Pelas ruas, bares e prostíbulos – A poética expressionista de Hansen Bahia
“Como é simplista o trabalho dos escrivinhadores de
arte, e mais simples ainda, quando conseguem situar alguém
dentro da linha, desde há muito totalmente encalhada, da
arte-de-moda-universalmente-aceita contemporânea”
(HANSEN, Jornal da Bahia, 1970).
Na alegria pacata da ida Bahia do início da segunda metade do século XX, reduto de tranquila espontaneidade, dos saveiros e dos coqueirais, o artista alemão Karl Heinz Hansen encontrou os motivos de maior inspiração para suas xilogravuras. Marinheiro traumatizado após ter lutado na segunda guerra mundial, veio ao Brasil e aqui descobriu ancoragem propícia ao desenvolvimento de sua poética expressionista. Continue lendo