Arquivos da categoria: Literatura

Literatura

A cantiga silenciosa das inquietudes da mente

12 novembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Um dos romances finalistas do Prêmio Jabuti, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira, narra a comovente história de um homem erudito, que é abandonado repentinamente por sua amada mulher e que perde, então, a razão de viver e torna-se morador de rua – “Dia anterior àquele em que ela deixou bilhete elíptico ACABOU-SE; ADEUS sobre o criado-mudo, disse-me, olhos nos olhos: Vou amá-lo vida toda. Silhueta da lâmina da despedida estava por trás daquele olhar umedecido”. O livro vem causando polêmica pelo estilo do autor, considerado demasiadamente hermético.

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Literatura

o voo do albatroz

11 novembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

O livro O albatroz e o chinês reúne cinco ensaios inéditos de Antonio Cândido. São escritos dispersos, divididos em três partes: as duas primeiras, compostas por ensaios mais longos, e a terceira, por escritos breves. Esta publicação, da editora Ouro sobre azul, é uma reedição aumentada do heterogêneo conjunto de textos, lançado originalmente em 2004.

O ensaio que dá título ao livro aborda a oposição entre poemas que representam a natureza e poemas mais intimistas, que a recriam a partir de um ponto de vista subjetivo. O ensaio analisa, a partir daí, tensões da criação, tecendo sua argumentação sobre a interpretação de um poema de Mal­larmé. Os ensaios seguintes Continue lendo

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Literatura

Como um solo de violas

2 maio, 2013 | Por Isabela Gaglianone

como um solo de viola, grande sertão veredas - ilustração de Isabela Gaglianone

Digo-lhe, que se perguntarem, me diga um livro muito bonito para ler, minha memória cairá nas vertentes do viver de Grande sertão: veredas. Explanações pareceriam reles, o livro jorra beleza desde sua primeira palavra, Nonada. Derrama-se, goteja-se, verte-se. Caudaloso. A prosa demora-se em sua própria poesia, são veredas no texto as suas construções poéticas: líricas, inesperadas, vivas como um curso de água: os abundantes travessões dão a imagem, na página impressa – veredas –, vertentes em meio à prosa, comentários em meio à narrativa. Inúmeras variações sobre o próprio título. Os dois pontos fluem o texto em sucessivos riachos de poesia, que, por suas frases, umas nas outras, deságuam-se. Águas fortes, plácidas ou dramáticas, pela chuva ou pelos rios, a narrativa vai e volta levada pelas sensações das águas na lembrança de Rio baldo; o próprio narrador é como um rio de curso longo e tortuoso.

“ – “… Pois a minha não conheci…” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com certeza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras… Fosse cego de nascença”.

A beleza e o estranhamento dos entroncamentos de águas, enraizadas na língua viva da poesia. A língua poética não serve a um propósito – ainda que siga servindo –, não é um meio, mas um fim em si mesma. Remexidas como as pequenas pedras soltas pela correnteza do fundo de um rio, as palavras ganham vida ambivalente: deslocadas, agrupam em si novas maneiras de significância e de relação com as que lhes margeiam: poesia em prosa. “Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Esse sertão, por onde rolam, fugidas, as braças águas, tem a beleza e a tristeza de um solo de violas. Timbre deslocado da harmonia para a melodia, corredeira doce, voz a um tempo aguda e grave, chora e canta, em largas águas, derramando-se em serena vereda. O sertão que há dentro de um texto, entrecortado pela poesia das palavras, pelo movimento vivo da própria linguagem, a melodia tocada por um breve solo de viola amanhece.

_________________

Talvez a melhor tradução musical a essa ideia seja a Suíte Nordestina, de Guerra Peixe. Outros bons exemplos são também as peças de Radamés Gnattali, como o Concerto para viola e orquestra e a Sonata para viola e piano.

A edição 59 do programa Clave de Solencabeçado por Irineu Franco Perpétuo, apresentou gravações destas peças realizadas pelo violista Perez Dworeckio húngaro-brasileiro que foi um dos maiores instrumentistas do Brasil, um dos mais sensíveis intérpretes à viola, em grata homenagem após sua morte.

 

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Literatura

MARÍAS, Coração tão branco

16 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

livro Coracao tão branco, de Javier Marias

“Era simplesmente instalar-se na convicção ou
na superstição de que não existe o que se diz.”

O título Coração tão branco do livro do espanhol Javier Marías é uma alusão a um verso de Shakespeare, um diálogo em Macbeth:

My hands are of your colour, but I shame to wear a heart so white
[Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco].

A alusão desenvolve-se em breve comentário num dos decorreres do fluxo de consciência do protagonista narrador, um tradutor. Ele percorre mentalmente este e alguns versos circundantes, reconstruindo a cena e a história, interpretando-os, revirando os sentidos por trás de suas palavras, à maneira de um cacoete profissional, por impulso de pensar suas possíveis traduções. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte II.

12 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

A ironia de Robert Musil chegaria a ser desconcertante, não fosse sua elegância, a sutileza com que simplesmente permeia as situações do romance. A ironia não é escancarada em palavras ou expressões, reside antes no simples espelhamento de diferentes relações entre diferentes personagens, à maneira de uma fuga musical. Essa ironia é o que faz satírico O homem sem qualidades. Filosoficamente satírico, inclusive, pois põe em questão a moral frente à impessoalidade do homem moderno, enquanto homem de pensamento, imerso numa complexa dinâmica de possibilidades e impossibilidades. Movimentos de paixão e razão, utopias de resguardo inescrutável. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte I.

6 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

no princípio

Filosofia então teve início
na tentativa de liquidação
do universo (arranjo,
adereço, cosmético): promessa
de fluidez sem caroço
e coisa e Tales.

Meditações mediterrâneas. Hidráulica
arcaica. Absoluto
dissoluto.

A primeira
imprecisão é a que fica?

Rubens Rodrigues Torres Filho

 

MUSIL, O homem sem qualidades

(Nova Fronteira, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth)

O homem sem qualidades é logo apresentado a seu leitor. Sua principal qualidade é não ter nenhuma, pois ele é desprovido do dito senso de realidade e possui, em seu lugar, um senso de possibilidade:

Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que     também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (…) não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. (…) podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades” (pp. 34-36).

Se concordarmos com Maurice Blanchot, veremos o tema do livro inscrito em seu título e o tal ‘senso de possibilidade’, assim exposto nas primeiras páginas do monumental romance, como sua chave fundamental de leitura.

A expressão ‘homem sem qualidades’, embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter o sentido imediato, e de deixar perder-se a idéia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial, diz Musil em suas notas, é que ele não tem nada de particular.”
(Blanchot, O livro por vir).

O homem em questão, portanto, seria não exatamente sem qualidades, mas sem peculiaridades. “Nada, precisamente nada!”, “eis a espécie que nossa época produziu”, é o que diz sobre ele o antigo amigo que lhe confere a alcunha. Tudo, para este homem sem peculiaridades, o que acontece e também o que não acontece, equivale-se como variações plausíveis, genuínas possibilidades. Por isso ele não consegue decidir-se, nem mesmo por um caráter. Por isso talvez também Musil não tenha conseguido jamais terminar seu romance. Pois o romance é inacabado, mas metaforicamente também o é seu protagonista, impreciso, em seu mundo restrito a infinitas e incontornáveis potencialidades.

Num incerto salto tigrino que corre o risco de nos levar tão somente a um anacronismo berrante, fazem coro palavras de nosso contemporâneo escritor espanhol Javier Marías no seu romance Coração tão branco:

(…) o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. (…) O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada.
(Marías, Coração tão branco).

Para ele, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido entrelaçam-se, tem a mesma concretude, apesar serem definitivos e desembocarem na retumbante pergunta, “e agora?”. Para o homem sem qualidades, o que não existiu não deixa de existir como potência e resguarda-se em divagações ou investigações filosóficas, especialmente morais, que se desdobram em suas ações e opiniões. Também o que aconteceu poderia ter acontecido de outra maneira. Os fatos estão sempre prestes a inverterem-se de acordo com as relações estabelecidas, dentro dos maleáveis limites da pura possibilidade. Mesmo realidade e utopia mesclam-se indefinidamente. A verdade perde seu estatuto ontológico e desmorona-se em fragmentos possíveis.

O tema desenvolve-se no personagem e vice-versa. Os dois complexos temáticos que dividem o livro e sobre os quais modula sua tonalidade acabam sem peculiaridades que os explique ou resolva. Tanto quanto o homem sem qualidades, são pura plausibilidade. É por isso que Blanchot pode referir-se ao protagonista como uma representação do homem moderno: impessoal, abstrato, imerso na “neutralidade das grandes existências coletivas”, a quem as sequências de possibilidades são ilimitadas e que, “por vocação e por tormento, [tem] de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”. Ulrich – nosso protagonista ganha um nome após ter sido apresentado como um “homem sem qualidades”, mas jamais um sobrenome – é uma abstração. Uma abstração intelectual, cuja humanidade é dramática, pois desenrolada principalmente no incesto nunca concretizado; mesmo sua relação consigo mesmo tem que ser projetada num outro, quase gêmeo, a única possibilidade de amar a si mesmo é através de um espelho.

A condicionalidade é perpétua e irresoluta. Ao contrário do que ocorre no conto “Na galeria”, que Kafka inicia com uma partícula condicional “se”, numa frase que é todo um parágrafo. Ela guarda uma possibilidade que é somente sonhada, o que diz o segundo parágrafo, espelhado: a realidade, que faz chorar. A possibilidade, alí, é quimérica, ao passo que a realidade, concreta, imutável e frustrante. O conto é marcado por quatro tempos: “se”, “– talvez”, no primeiro parágrafo, e, no segundo, “mas [uma vez que não é assim]” e “– uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundado na marcha final como num sonho pesado, ele chora sem o saber”. Em Musil não há desilusão, pois ele está imerso na imprecisão de sua própria impossibilidade.

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Crítica Literária

Musil e Dostoiévski – Modulações

1 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Não que se diga de um homem sem qualidades que seja de todo um idiota. Mas em uma sociedade imperial ou czarista, muito se diz a respeito das personalidades mais excêntricas. Pois as altas rodas dessas sociedades costumam maldizer personagens que as observam com perspicácia, ainda que tais personagens mantenham certo alheamento social. Vivendo nessas sociedades, o idiota é ridicularizado por sua ingenuidade; o homem sem qualidades por seu sarcasmo pessimista. Ambos são personagens permeados por um diagnóstico crítico, de época e de mundo. Assumem discretamente um tom satírico e sua simples existência meio descabida nessas sociedades em que se inserem é espelhada nas personagens ao redor, o que acaba por tipificá-las – tipos quer sociais, quer psicológicos, nas vestes de uma generala ou de uma Diotima. E, se ridicularizados, nessa sociedade que os espelha como numa sonata, quer dizer, retomando e reexpondo seus temas em outros registros, eles, com a irrefutável capacidade de rir-se de si mesmos dão vazão à risibilidade latente das discussões sérias feitas em sociedades que levam a si, e a seus modelos, demasiado a sério – nota: um elegante conde séculos antes já sugerira, a verdade deve passar no teste do ridículo. A crítica refletida é sutil e precisa.

A impressão é a de uma música, sob a qual as personagens se organizam. Os tipos dançam, ao som dos acordes em voga, à maneira de cenas que se sucedem com entradas e saídas do palco, dançarinos com figurinos em meio a cenários requintados e significativos, através dos quais, porém, um idiota ou um homem sem qualidades, cada um a seu jeito, parecem caminhar calmamente, incomodando as coreografias; caminham pela cena, alheios, de calças compridas e olhar reflexivo mesmo que em plena encenação de um pas-des-deux. Figuras quiméricas em meio a retratos do homem moderno.

o homem sem qualidades e o idiota

 

 

 

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Literatura

Justa homenagem a Hilda Hilst

4 fevereiro, 2013 | Por admin

uma homenagem a escritora brasileira Hilda Hilst

Uma justa homenagem a uma grande escritora brasileira chamada Hilda Hilst. Morreu há exatos 9 anos, e os textos que guardo mais vivos na memória são os de sua “tetralogia pornográfica”: Caderno Rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio. Textos Grotescos, Cartas de um sedutor e Bufólicas. Foi um ato consciente quando Hilda Hilst resolveu “escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu”. Aos 60 anos de idade, como o narrador Crasso dos Contos d’escárnio, o lirismo da poesia de Hilda cede lugar a zombaria.

A escatologia enoja os puritanos, os moralistas de araque. Não é possível que não se deliciem com tal construção: “Todo mundo quando me via dizia: lá vai o Crasso, filho daquela da crassa putaria. Eu ficava com os olhos úmidos mas logo em seguida, apesar da minha timidez, mostrava o pau”; é o início de uma incrível rapsódia travestida de obscenidade. Na minha opinião, é na prosa satírica onde a lucidez crítica atinge seu mais alto grau de perfeição. A dimensão política é inegável: aos olhos do leitor atento, cúmplices do despudor, da poesia e do riso, o livro transforma-se numa “síntese amplificada, vale dizer, obscena e cruel, de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana”, nas palavras de Alcir Pécora.

Foi em 2001 que a Editora Globo comprou os direitos da obra de Hilda Hilst e passou a reeditar a Obra Completa da escritora. Quase todos os volumes já estão disponíveis em ebook, para deleite do jovem leitor. Mas que as palavras de Jocasta sirvão-lhes de sobreaviso: “Já dizia um rei: um livro nas mãos é uma foda de menos”.

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Literatura

Orgulho e Preconceito segundo Walter Scott e Mark Twain

29 janeiro, 2013 | Por admin

Jane Austen é nome reconhecido por todos. O fato é que o livro Orgulho e Preconceito de Jane Austen foi publicado há exatos 200 anos. Serei breve neste artigo comemorativo e apenas transcreverei duas opiniões divergentes sobre a autora: uma delas, positiva, por Walter Scott, e outra negativa, do bufão Mark Twain. Continue lendo

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Crítica Literária

Witold Gombrowicz: Trá-lá-lá

11 dezembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

Witold Gombrowicz escolheu para si o signo da imaturidade.

“Pois os Maduros sentem profunda aversão pela imaturidade, e nada lhes parece mais odioso do que um ser imaturo. (…) Então, como tudo isso vai terminar? Aonde chegarei seguindo por este caminho? Como se formou em mim (pensava eu) este fascínio pela imaturidade? Seria por eu viver num país repleto de indivíduos rudes, medíocres e efêmeros, que não se sentem bem num colarinho engomado, e onde, em vez da Melancolia e do Destino, são a Inabilidade e a Bisonhice que gemem pelos campos? Ou talvez eu vivesse numa época instável, que a cada instante inventava um novo lema e um novo mote, contorcendo o rosto da melhor forma possível – numa época transitória? …” (Ferdydurke, p. 30).  Continue lendo

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Literatura

Escrever é algo muito suado

31 março, 2012 | Por rafael_rodrigues

Depois de André de Leones e Menalton Braff, quem agora “fala” sobre a arte da escrita é o contista Antonio Carlos Viana, um dos mestres do gênero no Brasil.

Menos conhecido e festejado do que deveria ser, Viana é autor de “Aberto está o inferno“, “O meio do mundo e outros contos” e “Cine Privê“. O escritor, que é doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Nice, da França, é sergipano e atualmente mora em Aracaju, capital do estado.

Inspiração e genialidade são duas palavras que não fazem parte de meu vocabulário quando penso no ato de escrever. Sou mais dos que transpiram 100% para produzir um texto. Não fico esperando que as Musas venham e me ditem as palavras. Pode ser que um ou outro escritor tenha esse privilégio. Eu não tenho.

Escrever é algo muito suado e a palavra que me vem à cabeça para descrever o momento da escrita é disponibilidade. Creio que o artista precisa estar disponível para sua arte e disposto a enfrentar suas limitações, porque cada texto que escrevemos é uma superação de nossos limites. Acredito no trabalho diário, insistente, mesmo que, ao final, de aproveitável sobre apenas uma frase.

Não tenho rituais para começar a escrever. Adquiri o hábito de me sentar sempre por volta das nove da manhã para tentar escrever o que quer que seja. Deixo que as ideias venham por si sós, nunca as forço. A gente precisa ter um horário para a escrita, assim como temos para a academia, para a caminhada, para o lazer.

Podemos ter todas as ideias do mundo, mas elas escapam e dificilmente voltarão se não estivermos com disposição para enfrentar a tela em branco e se não tivermos também uma grande disciplina. Parece que as histórias têm um tempo para nos desafiar, porque depois perdem a força, desaparecem.

Muitas vezes me sento diante do computador e não vem nada à cabeça. Antes me angustiava muito com isso, hoje não mais. Aí digito uma palavra qualquer e deixo que ela me conduza. Outras vezes sou assaltado por uma frase, e sinto, por sua pulsação, que ela pode ou não render uma boa história. Mas para isso, preciso estar aberto para ela. Se não estiver, melhor fazer outra coisa, caminhar mais na praia, por exemplo.

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Literatura

Livros perdidos

29 março, 2012 | Por rafael_rodrigues

Certa vez, ouvi na livraria um diálogo mais ou menos assim:

“- Ah, eu não gosto de emprestar meus livros. Sempre me devolvem com algum estrago.

– Já eu adoro emprestar. Prefiro vê-los circulando do que parados na estante.”

(É claro que a pessoa não disse “vê-los”. Só quis deixar a passagem mais bonita.)

Àquela época, eu me via às voltas com resmungos diários por ter perdido meu exemplar de “Juventude”, de J.M. Coetzee, e de “Werther”, de Goethe. Como eu trabalhava em livraria – saí de lá poucos meses depois, e retornei dois anos mais tarde -, todos os dias eu lembrava de ambos.

A loja não possuía exemplares desses livros, porém, ao ver outras obras desses autores nas prateleiras, eu sempre me recordava dessas baixas literárias.

Além dos títulos citados, devo incluir, nessa fatídica lista, “Budapeste”, de Chico Buarque – do qual, para ser sincero, não sentia muita falta -, “Um certo capitão Rodrigo”, de Erico Verissimo, e “As mentiras que os homens contam” e “Sexo na cabeça”, de Luis Fernando Verissimo.

Com tantos e tão traumáticos desaparecimentos, tomei a única decisão possível em uma situação como essa: resolvi não mais emprestar meus livros. E fui além: passei a defender com veemência o não-empréstimo.

Falo dos livros mas poderia falar também de filmes que foram “arrancados” de mim, como “Amnesia”, de Christopher Nolan, e “O clube da luta”, de David Fincher. Poderia também incluir discos que me foram devolvidos com danos, como a trilha sonora de uma novela cujo nome não lembro, e o “MTV Unplugged” de Bryan Adams – não me julguem por isso, vocês também foram adolescentes! -, que, na verdade, foi roubado junto com o som do carro de um amigo.

Alguns desses livros, discos e filmes eu tive que comprar novamente. Outros, não consegui, e nem sei se conseguirei, como “Amnésia”. E é por isso que, hoje, quando me pedem um livro emprestado, mui polidamente digo que não empresto.

Há exceções, claro. Meu exemplar de “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa, está com uma amiga, por exemplo. “Minority Report”, filme dirigido por Steven Spielberg, está com um amigo. Mas, como disse, são exceções.

Entretanto, não pensem que sou um monstro egoísta. Já perdi a conta de quantos livros dei de presente, em vez de emprestar. Prefiro fazer isso a ficar controlando empréstimos, fazendo listinhas e cobrando a devolução.

Mas a questão, na verdade, é a seguinte: para mim, há um valor sentimental em cada um dos livros, discos e filmes que possuo. Principalmente nos livros. Posso contar uma história sobre cada um: onde, como e porquê o comprei, quem me deu de presente e quando, como ele veio parar em minhas mãos… É como se cada um deles fosse um pedaço de minha memória. Se determinado livro não tiver a sua história, eu invento. É assim que funciona, ao menos comigo.

E é por isso que digo e repito: não empresto meus livros, e recomendo que você também não empreste os seus. Vai que…

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cinema

Sem limites e Meia noite em Paris

26 março, 2012 | Por rafael_rodrigues

Protagonizados respectivamente por Bradley Cooper (“Se beber não case”, “Esquadrão Classe A”, “Maluca Paixão”) e Owen Wilson (“Uma noite no museu”, “Marley e Eu”, “Starsky e Hutch”), os filmes “Sem limites” e “Meia noite em Paris” têm escritores como personagens principais. E, deixando de lado as tramas de cada um, ambos tocam em dois pontos que atormentam boa parte dos escritores: no caso do primeiro, o bloqueio criativo; no caso do segundo, a nostalgia de tempos não vividos.

Eddie Morra, vivido por Cooper, não consegue começar a escrever seu romance, pelo qual uma editora pagou um adiantamento. Gil Pender, vivido por Wilson, vai passar alguns dias em Paris com a noiva, e lá tenta convencê-la a se mudarem para a Cidade Luz, onde ele acredita que conseguirá inspiração para escrever bons romances.

No caso de Morra, seu bloqueio criativo é resolvido quando cai em suas mãos uma pílula chamada NZT, que tem o poder de aprimorar o desempenho do cérebro de quem a toma. Enquanto se envolve em problemas que nada têm a ver com literatura, Morra termina de escrever seu livro, mas a questão literária é deixada de lado em prol de uma trama mais atraente para o público, recheada de suspense, crimes e perseguições.

Já Gil Pender se vê enredado em uma viagem no tempo que o leva à década de 1920 em Paris, época em que lá passaram temporadas ou viveram Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, entre outros. Sua inquietação está no fato de achar que deveria ter nascido em outra época, a tempo de conseguir viver os anos 20 e assim ter contato com os grandes escritores e artistas que viviam na capital da França. Escrito e dirigido por Woody Allen, que por esse roteiro ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original este ano, “Meia noite em Paris”, ao contrário de “Sem limites”, está embriagado de literatura. Mas não estamos aqui para fazer comparações.

A intenção é voltar nossas atenções – na verdade, apenas destacar, iluminar, porque ambas são, talvez, insolúveis – para essas duas angústias, talvez as maiores que um escritor tenha o desprazer de vivenciar.

Bloqueios criativos são aparentemente normais – quem escreve pode ficar à vontade para relatar suas experiências. Mas, ao chegarem em determinados estágios, são desesperadores. O que fazer quando as palavras não vêm? Ou quando não há ideias sobre o que escrever? Ou, ainda, quando a dúvida entre qual caminho o personagem deve seguir é como escolher entre salvar a vida de apenas um de seus dois filhos?

Conselhos para se livrar de tais bloqueios existe, e não são poucos. Caminhar um pouco, ler alguma coisa leve, escrever qualquer coisa que lhe venha à mente, para daí, quem sabe, chegar onde se quer… Mas às vezes nada disso funciona.

A questão da nostalgia é bem mais simples e muito menos incômoda (ou não…). Ela não atinge apenas escritores, mas artistas de um modo geral são mais propensos a sentir tal sensação. Afinal, onde estão os gênios? Onde estão os grandes romances? Onde estão os grandes fatos? A resposta: no passado.

A Paris dos anos 1920, 1930, 1940 é comentada até hoje. Inúmeros livros já foram escritos sobre essas épocas. E quantas obras-primas não foram escritas na cidade, ou ao menos iniciadas lá. Cito Paris mas poderíamos estar falando sobre a Londres mais ou menos na mesma época, ou a Belo Horizonte da década de 1940, ou o Rio de Janeiro dos anos 1960 e 1970.

É uma pena que não existam pílulas ou viagens no tempo para dar cabo de ambos os problemas. A solução, portanto, seria, no primeiro caso, enfrentar a página em branco, até que a “inspiração” retorne, e, no segundo, contentar-se em viver o presente, conformando-se em conviver com os grandes autores apenas através de seus livros e representações no cinema.

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Literatura

Nunca se sabe de onde virão os temas

25 março, 2012 | Por rafael_rodrigues

Dando prosseguimento à “série” de posts iniciada sábado passado, segue abaixo o depoimento do escritor Menalton Braff, um dos mais importantes autores da atualidade. Entre seus livros mais conhecidos estão “A coleira no pescoço” (finalista do prêmio Jabuti de 2007), “A muralha de Adriano” (também finalista do Jabuti, em 2008) e “À sombra do cipreste” (eleito Livro do Ano, categoria ficção, do Jabuti de 2000). Entre suas orbas mais recentes estão “Moça com chapéu de palha” e “Tapete de silêncio”.

Gosto de esquematicamente dividir o ato criativo em três momentos. Está claro que se trata apenas de um esquema, com todas as variantes impostas pela vida.

– O primeiro momento é o da concepção. A ideia ou a imagem que bate na parede e cai na sua frente. É necessário sentir que a vida não continua sem que se fale da ideia ou da imagem. E repito: às vezes surge um tema abstrato, que precisa procurar suas figuras; às vezes surge uma figura, que deve procurar seu tema. A vida vivida, a vida ouvida, as leituras, a imaginação, enfim, nunca se sabe de onde virão as figuras e os temas.

– O segundo momento é o da gestação. É neste momento que os temas buscam figuras e vice-versa. Se é uma história o momento da concepção, ela começa a buscar sentidos, significados, às vezes sua própria linguagem. É a hora das anotações e/ou pesquisas, Ponto de vista, estrutura, padrão de linguagem, elementos em geral da narrativa, tudo isso cresce durante a gestação.

– O momento final é a execução. Muitas vezes é necessário modificar aspectos daquilo que foi gestado e não se deve temer a modificação. É o início do trabalho, a transformação de temas e figuras em discurso.

No meu caso particular, prefiro trabalhar à noite, todos os dias e sempre nos mesmos horários. Agora que já vou me tornando mais vagabundo, começo a escrever durante o dia também. Sempre no mesmo lugar e de preferência nas mesmas horas.

O conto não exige a mesma disciplina, pois seu convívio com o autor é menor. Conto a gente pode escrever até em quarto de hotel, nas férias.

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Literatura

Assunto encerrado, de Italo Calvino

23 março, 2012 | Por rafael_rodrigues

O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) pertence a um grupo não muito numeroso: o de autores que conseguem fazer trabalhos excepcionais tanto na ficção quanto na não-ficção.

É o caso de George Orwell – talvez até melhor ensaísta que romancista, mas isso seria conversa que duraria até o fim dos tempos -, Jorge Luis Borges, Cesar Aira, J.M. Coetzee, e, no Brasil, Nelson Rodrigues, Machado de Assis – pouco reconhecido por suas crônicas e ensaios, a propósito -, entre outros.

Assunto encerrado“, reunião de conferências e ensaios de Calvino sobre os mais variados temas, é uma boa amostra da visão arguta que tinha o autor. Seu objetivo com esses textos não poderia ser mais “presunçosa”: “Diria que meu objetivo talvez fosse estabelecer algumas linhas gerais que servissem de pressuposto a meu trabalho e ao dos outros; postular uma cultura como contexto em que situar as obras ainda a escrever. A ambição juvenil de que parti foi a do projeto de construção de uma nova literatura que por sua vez servisse para a construção de uma nova sociedade”.

E já no primeiro ensaio, originalmente uma conferência, “O miolo do leão”, Calvino mostra a que veio: “As coisas que a literatura pode buscas e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em algum outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente”.

Extremamente habilidoso com as palavras, além de ter um nível cultural altíssimo, Italo Calvino faz uma crítica à civilização contemporânea na conferência “Os beatniks e o ‘sistema'”. Segundo ele, “estamos vivendo no tempo das invasões bárbaras”: “Não adianta olhar em torno, buscando identificar os bárbaros em algumas categorias de pessoas. Os bárbaros, desta vez, não são pessoas: são coisas. São os objetos que acreditamos possuir e que nos possuem; é o desenvolvimento produtivo, que devia estar a nosso serviço mas do qual estamos nos tornando escravos; são os meios de difusão do nosso pensamento, que procuram nos impedir de continuar a pensar; é a abundância de bens, que nos dá não o conforto do bem-estar, mas a ansiedade do consumo forçado (…)”.

Cada ensaio ou conferência de Calvino pode dar origem a um novo artigo. O que dizer do texto “Para quem se escreve?”, por exemplo, no qual ele declara “A contribuição que a literatura pode dar é apenas indireta: por exemplo, recusando decididamente toda solução paternalista; se pressupusermos um leitor menos culto que o escritor e assumirmos com relação a ele uma postura pedagógica, divulgadora, tranquilizadora, só confirmaremos o desnível [cultural]; toda tentativa de adoçar a situação com paliativos (uma literatura ‘popular’) é um passo para trás, e não um passo adiante. A literatura não é escola; ela deve pressupor um público mais culto, mais culto que o escritor; se esse público existe ou não, não importa”.

Às vezes duro ou polêmico, mas sempre elegante e munido de bons argumentos, Italo Calvino não foge do debate, e escreve até mesmo sobre o uso excessivo de palavrões.

Num tempo em que o politicamente correto é o que vigora, o espírito combativo de Calvino faz muita falta. Resta o consolo de que podemos ter a companhia de seus livros.

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