Guia de Leitura

Anatomia da melancolia

23 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A melancolia, diz Robert Burton, pode ser uma disposição, ou um hábito. Sua monumental Anatomia da melancolia trata da melancolia não enquanto disposição, seu sentido atualmente mais usual – como descontentamento, angústia, tristeza, depressão –, mas enquanto hábito, ou mesmo uma mania, um humor fixo, portanto dificilmente removível.

Publicada originalmente em 1621, esta é uma obra-prima, filosófica, psicológica, literária. Burton compilou todo o material então disponível para, a partir da melancolia, investigar e explicar todas as emoções humanas, bem como suas causas “psíquicas”.

A edição brasileira, publicada com a ótima tradução de Guilherme Gontijo Flores – tradução vencedora do prêmio Jabuti 2014 –, pela editora da UFPR, traz o texto em quatro tomos:

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume I - Demócrito Júnior ao leitor

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume I – Demócrito Júnior ao leitor

O primeiro volume intitula-se Demócrito Júnior ao leitor. Burton escreve, sob esse pseudônimo – homenagem ao “filósofo que ria”, de acordo com a descrição de Hipócrates –, este prefácio sarcástico.

O tradutor, Guilherme Gontijo Flores, no artigo “A anatomia no Brasil”, publicado na revista Anamorfose, explica: A persona de Demócrito ajuda na construção de uma escrita constantemente irônica, com bases na obra de verve satírica do autor grego Luciano de Samósata e nas suas estruturas similares à fábula menipeia; além de uma persistente auto-derrisão que muitas vezes põe em cheque o que o próprio autor parece defender e acaba deixando o leitor desnorteado, ou, quem sabe, convidado a tomar parte no pensamento, a largar o comodismo do leitor passivo. O livro, como venho dizendo, é amplíssimo e abarca muitos autores, épocas e temas; várias partes, ainda que integradas na totalidade do livro, são praticamente ensaios separados (inclusive são traduzidos separadamente, vez por outra): “A digressão do ar” é um dos primeiros ensaios ocidentais sobre climatologia, “A melancolia religiosa” é o primeiro estudo detalhado sobre o assunto; seu estudo psicológico do sexo antecipa Havelock Ellis e Bernard Shaw; enquanto no prefácio encontramos uma Utopia burtoniana que se parece com a de Wells; seus comentários sobre ações contrárias à consciência podem elencá-lo num grupo de psicanalistas avant la lettre. Burton revela-se um sonoro economista político, protecionista, oponente dos monopólios, inimigo da guerra, defensor de melhores estradas, das irrigações terrestres, das construção de jardins, das pensões para os idosos, da sexualidade humana, do desejo feminino, etc. Resumindo: um livro assentado sobre livros, mas capaz de invocar o humano de quem o lê”. Continue lendo

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história

Forma de protesto

22 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
gravura de Lasar Segall

gravura de Lasar Segall

Acaba de ser publicado o livro Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil, do historiador Flávio dos Santos Gomes, pela Companhia das Letras.

Trata-se de um estudo sobre a existência, por todo o Brasil, de comunidades negras rurais que são remanescentes de quilombos – concretude da continuidade social e histórica de um processo mais longo da escravidão e das primeiras décadas da pós-emancipação do que se costuma supor. As comunidades de fugitivos da escravidão não representam, nas palavras do autor, um passado imóvel, “aquilo que sobrou (posto nunca transformado) de um passado remoto. As comunidades de fugitivos da escravidão produziram histórias complexas de ocupação agrária, criação de territórios, cultura material e imaterial próprias baseadas no parentesco e no uso e manejo coletivo da terra. O desenvolvimento das comunidades negras contemporâneas é bastante complexo, com seus processos de identidade e luta por cidadania”. O livro repassa a história dos quilombos, e seus desdobramentos, do passado e do presente.

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matraca

O Brasil não é longe daqui

19 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
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Debret

Publicado em 1990 pela Companhia das Letras, o interessante estudo de Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui – O narrador, a viagem, alia análise histórica a um olhar atento ao lirismo de seu material: por entre charadas, textos de divulgação científica, estampas de plantas e animais, pequenas biografias e casos curiosos, Süssekind trata do narrador de ficção na literatura brasileira, o qual surpreende em pleno movimento, ao longo do processo histórico de sua formação, desde os relatos de viagens – fundamentais para a criação de um imaginário paisagístico do Brasil –, mediados pela figura de um narrador-viajante que, mutante – ora cartógrafo, ora historiador, ora cronista –, daria as cartas na nossa prosa de ficção romântica.

A análise de Süssekind primeiro investiga e data “a constituição de um narrador de ficção na prosa brasileira”. Ao mesmo tempo, partindo de “uma questão específica no campo da historiografia literária”, analisa a noção do “começo histórico, da ‘origem’ entendida como processo de emergência e singularização, em meio a escolhas, repetições e diferenciações, figurações e recomposições diversas”. Assim, delimitando a caracterização que tanto constitui, quanto origina o narrador de ficção, a autora acompanha o narrador-viajante desde seu surgimento, nas décadas de 1830 e 1840, na prosa ficcional brasileira.  Continue lendo

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Livros de fotografias de índios no Brasil

16 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Até quando será que o Brasil vai ignorar a responsabilidade que tem com seus indígenas?

Reunimos aqui alguns trabalhos fotográficos que originaram livros e cujo tema foram índios brasileiros.

Mais do que imagens belas, que de fato o são, trata-se de trabalhos documentais profundos, ensaios fotográficos complexos. Em que aspectos da riqueza cultural abstrata ganha a representação concreta da imagem.

Essas fotografias são, de certa maneira, estímulos antropológicos, pois fazem com que se possa ver “o outro” como parte de um todo comum, ou seja, os homens, retratados, levam também à consideração do homem, do humano.

 

Claudia Andujar, "Marcados"

Claudia Andujar, “Marcados”

A fotógrafa Claudia Andujar desenvolve um papel crucial na luta do povo indígena Yanomami, a que tem se dedicado desde o final da década de 1970. Ela estabeleceu seu primeiro contato com os índios devido a trabalhos fotojornalísticos, sobretudo desenvolvidos no período áureo da revista Realidade, e a realização de importantes ensaios fotográficos na companhia das tribos graças foi possibilitada por bolsas de estudos, brasileiras e internacionais. Seus trabalhos integram acervos de grandes museus, como por exemplo o MoMA, em Nova York.

Em 2009 Claudia Andujar publicou pela CosacNaify o livro Marcados, composto por 85 fotos dos índios Yanomami realizadas entre 1981 e 1983, durante uma viagem de levantamento das suas condições de saúde após o contato com o branco. Para a catalogação dos registros, como os Yanomami não respondem a nome próprio, foi adotado o método, consagrado desde o século XIX para a identificação dos povos nativos, que consiste em uma fotografia do indivíduo com um número preso ao corpo. O conjunto das fotos transformado em livro apresenta-se como um profundo questionamento sobre as relações que povos exercem sobre outros, marcando-os e determinando a extensão de sua sobrevivência.

Yanomami, publicado, pela editora DBA, em 1998 e infelizmente esgotado e indisponível mesmo em sebos, é seu possivelmente mais belo livro, um interessante trabalho fotográfico. Profundamente poético, reúne fotografias que unem intenções documentais a uma estética onírica. Através dos fortes contrastes, as fotos revelam o efeito da iluminação na completude de sua carga simbólica.

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Contos de Kolimá

15 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Estou convencido de que os campos de prisioneiros, todos eles, são uma escola negativa; passar neles uma hora que seja é uma defloração. O campo de prisioneiros não dá, nem pode dar, nada de positivo a ninguém. Sobre todos, encarcerados e trabalhadores contratados, o campo age de modo deflorador”.

siberia

Na desolada região no extremo leste da Sibéria conhecida como Kolimá, onde as temperaturas chegam a 60 graus negativos, existiram alguns dos campos de trabalhos forçados mais temíveis e desumanos da era stalinista. É sobre eles que o escritor russo Varlam Chalámov (1907-1982) fala em Contos de Kolimá, recentemente lançado pela Editora 34, em uma edição cuidadosa, com tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich, apresentação de Boris Schnaiderman e prefácio de Irina P. Sirotínskaia, companheira do escritor em seus últimos anos e profunda conhecedora de sua obra.

Chalámov, poeta e jornalista, conheceu profundamente Kolimá, pois alí cumpriu a maior parte de sua pena de quase vinte anos: preso político, trabalhou até 16 horas por dia em minas de ouro e carvão, constantemente doente e subnutrido.

Ao final da pena, o escritor retornou a Moscou e, no ano seguinte, começou a dedicar-se à composição de sua obra monumental, trabalho que lhe tomou mais novos vinte anos: Contos de Kolimá, mais de duas mil páginas divididas em seis volumes, que retomam de maneira profunda a memória do autor, uma vasta coleção de histórias da vida cotidiana nos campos de prisioneiros que forma um relato autobiográfico agudo, pois acompanhado por uma reflexão profunda sobre os limites do humano frente à brutalidade sem limites.  Continue lendo

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Ensaios sobre o ensaio [ou: O ensaio como forma]

9 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Montaigne, quando escreveu seus célebres Ensaios, sobre o método de apreensão de seu objeto, disse: “Dos cem membros e rostos que tem cada coisa, pego uma […]. Dou uma, laçada, não o mais largamente, mas o mais profundamente que sei. […] sem desígnio, sem promessa, não sou obrigado a cumpri-la, nem eu próprio me obrigo a isso, sem variar quando bem entender, a entregar-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma dominante, que é a ignorância”

A ironia do filósofo, aliada a certa modéstia, sintetizam o modo quase literário dos ensaios – com estrutura próxima à língua falada, um exame despretensioso, cujo intuito no geral é explorar um tema, mais do que esgotá-lo.

Desde então, o ensaio estabeleceu-se enquanto forma muito peculiar de desenvolvimento textual, forma sobre a qual, inclusive, muitos ensaios foram escritos.

 

 

Sartre, "Situações I"

Sartre, “Situações I”

Como diz Bento Prado Jr., em “Sartre e o destino histórico do ensaio”, presente como prefácio na edição brasileira de Situações I, a esforço crítico de Sartre em seus ensaios “é sempre acompanhado pela reflexão sobre a história desse gênero literário desde as origens do pensamento moderno e sobre seus impasses ou tropeços na cultura contemporânea”. Com os ensaios de Sartre, Bento Prado diz, “o que temos é a vontade de encontrar um ‘gênero literário’ que elimine uma certa concepção por assim dizer ‘separatista’ dos gêneros literários. Não se trata de confundir filosofia e literatura, mas de abrir caminho para uma filosofia que seja capaz de exprimir a experiência mais concreta e de valorizar uma literatura que nos permita ver melhor a nós mesmos e o mundo presente”.

Sartre inicia o ensaio que dedica a Bataille com o diagnóstico: “Há uma crise do ensaio”. Pois, ironiza, a “elegância e a clareza parecem exigir que usemos nesse tipo de obra uma língua mais morta que o latim: a de Voltaire. Foi o que notei a propósito de O mito de Sísifo. […] o romance contemporâneo, com seus autores americanos, com Kafka, entre nós com Camus, encontrou seu estilo. Falta encontrar o do ensaio. E diria também o da crítica, pois não ignoro, ao escrever estas linhas, que utilizo um instrumento obsoleto, que a tradição universitária conservou até nossa época”.

Bataille é, segundo o filósofo, o criador do “ensaio-martírio”: “Ele se desnuda, se mostra, não é de boas maneiras. Vai falar da miséria humana? Vejam minhas úlceras e minhas feridas – diz ele. E ei-lo a tirar as roupas. Mas ele não visa o lirismo. Se se mostra, é para provar. Mas nos fez entrever sua nudez miserável e já está vestido: ei-nos começando a raciocinar com ele sobre o sistema de Hegel ou o cogito de Descartes. Mas em seguida o raciocínio se detém bruscamente e o homem reaparece. Por exemplo: ‘Eu poderia dizer – escreve ele em meio a uma exposição sobre Deus – [que] esse ódio é o tempo, mas isso me desagrada. Por que eu diria ‘o tempo’? sinto esse ódio quando choro, não analiso nada’”Continue lendo

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O circuito dos afetos

8 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Gravura de Marco Buti

Gravura de Marco Buti

O circuito dos afetos, novo livro do filósofo Vladimir Safatle, acaba de ser lançado, pela editora Cosacnafy.

Trata-se de uma interessante análise sobre o conceito moderno de indivíduo enquanto, sobretudo, um sistema de afetos. A investigação de Safatle, professor de filosofia da USP, parte da articulação entre psicanálise, filosofia e teoria social.

“Sujeitos políticos não constituem um povo, esta será a última lição de Freud. Eles desconstituem o povo como categoria política, sem para isso cair na ilusão de uma sociedade como mera associação de indivíduos”, diz o autor.

Sua indagação matriz é: “Qual o sentido da política no mundo contemporâneo?” – questão que suscita o levantamento de novos paradigmas políticos, justo em um momento histórico em que tanto as utopias de esquerda quanto o próprio capitalismo encontram-se em descrédito. Para desenvolver sua reflexão, o autor sugere uma linha interpretativa que passa por Aristóteles, Espinosa, Hobbes, Giorgio Agamben, Michel Foucault e chega à discussão com expoentes atuais da Escola de Frankfurt.  Continue lendo

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Sobre o homem e suas relações

5 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Vermeer, "Mulher segurando uma balança"

Vermeer, “Mulher segurando uma balança”

Dada a dificuldade de acesso aos textos do filósofo Franz Hemsterhuis (1721 – 1790), é notória e feliz a existência de uma boa tradução de alguns de seus mais relevantes textos, reunidos em Sobre o homem e suas relações, feita por Pedro Paulo Pimenta, professor de filosofia da USP, e publicada pela editora Iluminuras. Pimenta é responsável também pelas notas e pela introdução, na qual contextualiza a produção do filósofo e a publicação original da carta que dá nome ao volume:

“[…] Franz Hemsterhuis declina da atividade acadêmica para dedicar-se à administração pública dos Países-Baixos, e é paralelamente à carreira política que desenvolve sua reflexão filosófica a partir do início dos anos 1760. Tomando para si a tarefa de imprimir seus próprios textos, redigidos sempre em francês, o filósofo não desfruta de qualquer reputação para além de um estreito círculo de amigos que conhecem e admiram seus textos e sua conversação. Em 1772, Hemsterhuis redige a Carta sobre o homem e suas relações e, algum tempo depois (provavelmente em 1774), pede a Diderot uma opinião a respeito do texto, que faz chegar às suas mãos juntamente com a Carta sobre os desejos (1768)”.

O volume contém os seguintes textos de Hemsterhuis: Carta sobre a escultura (1765), Carta sobre o homem e suas relações (1772), Aristeu ou sobre a divindade (1778), Carta de Diócles a Diotima sobre o ateísmo (1789). Acompanham esses textos o comentário de Diderot, acima mencionado, bem como a carta de Jacobi a Hemsterhuis sobre o Aristeu, enviada a Mendelssohn em 1784.  Continue lendo

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Idade das trevas?

2 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A comum associação da Idade Média a uma época de trevas, lacuna obscura entre períodos de grande efervescência artística e cultural é questionada por historiadores, teóricos de arte, filósofos, críticos.

Alguns historiadores defendem que o Renascimento dos séculos XV e XVI não representou o fim da Idade Média, como se costuma pensar, mas sim o “terceiro” e mais importante Renascimento do próprio período medieval.

“O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo” – Huizinga.

 

Johan Huizinga, "O outono da Idade Média"

Johan Huizinga, “O outono da Idade Média”

O holandês Johan Huizinga, em seu Outono da Idade Média, publicado originalmente em 1919, afirma que o século XIV foi o último da Idade Média: a modernidade só teria sido esboçada com a Reforma Protestante, a partir de 1517. A Renascença permeia a era medieval.

O livro, considerado um clássico historiográfico, analisa a Idade Média sob a plenitude de seus contrastes, distante do lugar-comum segundo o qual ela não passaria de uma transição, longa e letárgica, entre o brilho da Antiguidade e do Renascimento. O autor mostra as formas de vida e de pensamento medievais, tal como se expressaram na cultura, na arte, na religião e no pensamento, e também nos modos de expressão da felicidade, do sofrimento, do amor e do medo da morte no dia a dia das pessoas.

Huizinga utilizou métodos e fontes históricas pouco usuais em sua época. Sua história não narra apenas os grandes fatos e feitos, mas detém-se nas nuances da vida cotidiana para perceber nos homens seus sonhos, medos, obsessões, sua maneira de pensar e de experimentar o mundo. Combinando a crença no poder revelador da obra de arte e um olhar muito semelhante ao de um antropólogo, ele se tornou um pioneiro do que mais tarde se denominou história das mentalidades.

A edição brasileira, traduzida direto do holandês Francis Petra Janssen, conta com um dossiê organizado por Anton van der Lem, um dos responsáveis pelo espólio do historiador, além de um aparato crítico e biobibliográfico, ensaio de Peter Burke e entrevista com Jacques Le Goff, além de um rico repertório iconográfico das obras citadas.

O livro foi escrito como uma resposta a Jacob Burckhardt e trava um diálogo direto com as ideias de A Cultura do Renascimento na Itália, questionando a importância, praticamente mítica, que este conferiu ao Renascimento italiano, ressaltando o fundo medieval, que o havia concebido e que preservou-se na cultura renascentista, principalmente na França e nos Países Baixos.  Continue lendo

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lançamentos

Metafísicas canibais

1 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Eduardo Viveiros de Castro

fotografia de Eduardo Viveiros de Castro

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro acaba de lançar o livro Metafísicas canibais, escrito à guisa de resenha  do livro imaginário que ele porém julga que jamais será capaz de terminar: O Anti-Narciso. Este, por sua vez, teria como objetivo provar a seguinte tese: a antropologia é uma versão das práticas de conhecimento indígenas que lhe serviram de estudo.

O perspectivismo ameríndio, conceito desenvolvido por Viveiros de Castro e que afirmou a sua celebridade intelectual enquanto estudioso original e relevante, é um exemplo de como o estilo de pensamento nativo afeta a imaginação antropológica. A reflexão do autor é guiada por duas obras fundamentais da filosofia e da antropologia: O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, e as Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss. A aproximação entre filosofia e antropologia visa a investigação da seguinte pergunta, “o que deve conceitualmente a antropologia aos povos que estuda?”. As culturas e sociedades estudadas antropologicamente “influenciam, ou, para dizer de modo mais claro, coproduzem” as teses formuladas.

Estas Metafísicas canibais reúnem parte significativa das reflexões que Viveiros de Castro vem desenvolvendo desde a publicação de A inconstância da alma selvagem, inclusive a reformulação da teoria perspectivista.  Continue lendo

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Literatura

Juncos ao vento

28 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Grazia Deledda

Grazia Deledda

Juncos ao vento é uma das grandes obras de Grazia Deledda (1871 – 1936), um dos principais nomes da literatura italiana do século XX e segunda mulher a ganhar o Nobel de Literatura.

O livro ganhou, no Brasil, nova tradução, feita por Maria Augusta Mattos, publicada em março deste ano pela recém fundada editora Carambaia. O volume conta também com ensaio da professora Maria Teresa Arrigoni.

Trata-se de uma narrativa que resguarda o microuniverso sardo, utilizando suas paisagens, física e cultural, para discutir questões humanas que extrapolam a geografia insular. A autora conta a história das irmãs Pintor, imersas na ruína que é também personificada na figura de Efix, seu leal serviçal, remanescente de um ido período abastado. Uma forte esperança de dias melhores surge com a chegada de um sobrinho, personagem cujo passado é desconhecido.

O texto de Grazia Deledda é característico pelo estilo direto, sem floreios, permeado por um humor amargo e fatalista.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Protagonistas músicos ou entusiastas da música

25 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Fala-se sempre das imbricações da literatura com artes como a pintura, a dramaturgia ou o cinema. A relação das letras com os sons fica no geral a cargo dos filósofos, dos filólogos e dos poetas. Mas a relação pode ser, também, mais direta.

Aqui elencamos algumas narrativas cujos protagonistas são músicos, ou entusiastas da música a ponto de, embora não tocarem nenhum instrumento, viverem para sua própria sensibilidade musical.

 

 

Adriana Lisboa, "Hanói"

Adriana Lisboa, “Hanói”

A escritora brasileira Adriana Lisboa, em Hanói, conta a história de David, um brasileiro de 30 e poucos anos radicado em Chicago, filho de uma imigrante mexicana, que toca trompete e é apaixonado por jazz.  O romance foi um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom de 2014.

Em entrevista concedida em 2013 ao jornalista Luciano Trigo e publicada no blog “Máquina de escrever”, a autora disse, sobre o protagonista músico: “Eu queria trabalhar com um personagem músico, pela primeira vez. Tive ajuda de algumas pessoas para compô-lo – um amigo trompetista, sobretudo. As passagens de David no livro foram quase sempre escritas ao som das músicas que faziam parte da vida dele”. Na mesma entrevista, Lisboa ainda conta e analisa: “Fui musicista durante mais de dez anos. Isso, ao lado da leitura de poesia, que sempre me acompanhou, tornam a musicalidade do próprio texto muito importante para mim. Em “Hanói,” a música se entrelaça na narrativa com um personagem trompetista. Cheguei a criar uma playlist para o livro. Acho também relevante o fato de que a música muitas vezes serve de ponte entre culturas, transcendendo questões de idioma (uma barreira para a literatura), e me fascina a capacidade fraternizadora do jazz. Essa união que parecemos ter às vezes com as outras pessoas na plateia de um show. A música ao vivo é uma experiência única, que você não leva para casa nem mesmo num CD. Que testemunha, experimenta num momento e lugar específicos, que vem e passa, mas que fica, na medida em que forma a sua experiência. Quando David começa a se descartar de tudo o que tem, a música fica. O seu trompete fica, a sua vontade de ir a concertos de jazz, e sua vontade de terminar a vida ouvindo Ella Fitzgerald cantando “Sweet Georgia Brown”.

Diagnosticado com uma doença terminal, eis como David sente-se: “De todo modo, era uma pena saber que não ia mais poder tocar o seu trompete, nem ia mais poder ouvir Miles tocando ‘Round Midnight’ ou ‘Spanish Key’, o que era ainda pior do que não poder mais tocar ele próprio”. O romance é pontuado por referências musicais, desenvolvendo-se, mesmo, à guisa de melodias.  Continue lendo

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lançamentos

Testemunho transiente  

24 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Ao testemunhar tua aparição, descobri que a proximidade, a mais intensa, se dá junto da distância mais distante.”

Gravura da série "Ir" [2007], de Marco Buti

Gravura da série “Ir” [2007], de Marco Buti

Sabedoria do nunca [1999], Ignorância do sempre [2000], Certeza do agora [2002], são livros que traçam a temática que atravessa toda a obra de Juliano Garcia Pessanha: uma reflexão sobre a precariedade do ser, preso nos cárceres da linguagem, subjugado às violências inerentes à necessária apropriação do existente pelo olhar utilitarista da técnica. Uma investigação poético-filosófica à qual dá prosseguimento Instabilidade perpétua [2009], em que o autor dialoga com filósofos, tais como Heidegger, Cioran e Sloterdijk, e com escritores, como Kafka e Gombrowicz.

A Cosacnaify acaba de lançar esta tetralogia em um volume único, intitulado Testemunho transiente. A edição conta com texto de orelha de Roberto Machado e texto de quarta capa de Jean-Claude Bernadet.  Continue lendo

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Ao som do tamborim e das castanholas

21 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Vânia Mignone

Vânia Mignone

As Novelas exemplares de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616) foram originalmente publicadas em 1613, entre as publicações das duas partes de D. Quixote. Um volume completo das novelas acaba de ser lançado no Brasil pela Cosacnaify, edição cuidadosa com tradução de Ernani Ssó e textos críticos de Maria Augusta da Costa Vieira, Silvia Massimini Félix e Ernani Ssó. O livro é ilustrado por Vânia Mignone.

São “exemplares”, pois, como gênero literário, a novela já existia, mas, então, nunca fora escrita na Espanha nada que se assemelhasse a esta forma narrativa. Cervantes experimenta o gênero em todas as direções possíveis, com relatos bizantinos, cortesãos ou picarescos. Busca em sua prosa o estabelecimento de um padrão realista, tratando do cotidiano das pessoas, de uma Espanha palpável, vivida. Os 12 textos, escritos entre 1590 e 1612 e publicados originalmente juntos sob o título Novelas Exemplares de Honestíssimo Entretenimento, são o primeiro exemplo em castelhano de novelas, que, à época, possuíam um caráter moral e didático, ao qual Cervantes uniu seu humor gracioso, suas metáforas agudas e suas personagens, tão reais, tão humanas.  Continue lendo

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Estetização

18 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Algumas reflexões sobre o uso, ou o abuso estético no mundo, na vida, na arte. Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Discussões que se inserem na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção que vem sendo debatida sobretudo no cenário filosófico francês contemporâneo.

 

Gilles Lipovetsky, Jean Serroy, "A estetização do mundo - Viver na era do capitalismo artista"

Gilles Lipovetsky, Jean Serroy, “A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista”

Cada dia mais, o estilo, o design e a beleza se impõem como imperativos estratégicos das marcas. O apelo ao imaginário e a habilidade em despertar a emoção dos consumidores impulsionam a criação massiva de mecanismos de sedução, no design, na moda, no cinema, nos produtos. Arte e mercado nunca antes se misturaram tanto, exagerando, na experiência contemporânea, o alcance do desdobramento das dimensões do valor estético. O filósofo Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy, investigam estas relações, A estetização do mundo e o aparentemente paradoxal conceito do capitalismo artista.

Lipovetsky, em entrevista, pontuou de maneira sucinta o conceito de “capitalismo artista”: “Antes de mais nada, a estetização do mundo acompanha a própria história da humanidade. Desde a pré-história tínhamos formas de estetização, como as pinturas faciais, as bijuterias, os diferentes adereços. A novidade é que a estetização hoje é conduzida pelo capitalismo pós-fordista,que não se contenta em produzir produtos funcionais, mas investe em produtos de moda para vender mais, qualquer que seja a área. No passado, um par de óculos era apenas uma órtese para enxergar melhor. Hoje é um acessório de moda”.

Desvendando a superficialidade de um mundo em “tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor”, os autores investigam as transformações do capitalismo e do consumo, bem como seus alcances na individualidade dos sujeitos. Sua análise mostra que a cultura e sua expressão artística se converteram em simples negócio de mercado. Assim, a arte hoje impregna o mundo comum.  Continue lendo

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