Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

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Silêncio, beleza vulnerável

20 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Guignard

o nosso reino foi o primeiro livro publicado pelo português valter hugo mãe. Foi também o primeiro romance de sua tetralogia em letras minúsculas, composta por o remorso de baltazar serapião [2006], o apocalipse dos trabalhadores [2008] e a máquina de fazer espanhóis [2010].

Trata-se aqui da arrebatadora história de um menino de oito anos e sua vida numa pequena aldeia de pescadores portuguesa nos anos 1970, nos estertores do regime salazarista.

O próprio menino, Benjamin, é quem narra em primeira pessoa o texto, que descreve a sua busca para distinguir o bem e o mal. Pois, em meio à repressão da Igreja e aos trágicos acontecimentos a seu redor, o pequeno protagonista é tido ora como santo, ora como demônio.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Desumanização

17 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A desumanização pode assumir-se como coisificação, como animalização. Enquanto decorrente da miséria é uma tragédia social encenada em muitos atos, há muitos séculos. Um processo alastrado, latente à própria dinâmica social. O drama social moderno distribui papéis desumanos aos miseráveis – sem educação, sem sociabilidade, sem comida. Que – sem educação, sem sociabilidade, sem comida – não respondem senão com o movimento inerte impotente que lhes resta.

 

Graciliano Ramos, "Vidas secas"

Graciliano Ramos, “Vidas secas”

“Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

– Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apena um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e o cabelos ruivo s; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em terno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

– Você é um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.

– Um bicho, Fabiano.

Era. […]”

Graciliano Ramos, Vidas Secas.

 

A discussão sobre humanização e desumanização passa pela discussão sobre a liberdade, pois implica na renúncia a uma liberdade antagônica. Em meio à era triunfante das expectativas decrescentes, tempo de urgência perpétua, de “horizon d’attende” em que o futuro é substituído pelo presente prolongado, a imposição de diferentes graus de humanidade é resposta e condição à relação de valor como mediação social dominante, em que a própria palavra legitima a consagração, a manutenção da desigualdade e, mais ainda, a própria recusa da qualidade humana a parte da espécie.

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lançamentos

Performance literária

16 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
"Untitled", obra de Pierre Huyghe

“Untitled”, obra de Pierre Huyghe

Enrique Vila-Matas foi convidado a participar da Documenta, maior exposição de arte contemporânea do mundo contemporâneo, realizada a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha. O escritor deveria realizar uma performance: sentaria à mesa em um restaurante chinês nas cercanias da cidade e escreveria – diante dos comensais, que poderiam aproximar-se e mesmo intervir.

Não há lugar para a lógica em Kassel surge assim, conforme o próprio autor define, como uma “reportagem romanceada” – uma mistura de diário de viagem que conta sua experiência, com uma profunda reflexão sobre a arte e a literatura contemporâneas.

Com o humor que lhe é peculiar, Vila-Matas coloca em inusitada perspectiva o papel do artista em uma Europa destroçada pela crise e reconstrói uma visão de mundo a partir do questionamento sobre a arte.  Continue lendo

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lançamentos

História, literatura, filosofia

13 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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Antoine Compagnon é conhecido por realizar uma crítica literária cujo viés histórico a torna particularmente sensível às ideias filosóficas, artísticas e sociológicas . Nascido em Bruxelas, o autor é professor da Universidade de Columbia e do Collège de France.

Ao longo dos quarenta capítulos que compõem Uma temporada com Montaigne, ele retoma os Ensaios do filósofo em toda sua exuberância intelectual e profundidade histórica.

Com uma prosa tão clara quanto erudita, o livro é composto à maneira dos ensaios: como conversas – mesmo porque o livro originou-se de um programa radiofônico diário, em que as leituras foram apresentadas durante um verão. Compagnon vivifica a atualidade dos ensaios, enquanto formas ao mesmo tempo literárias e filosóficas, passando por temas como a mortalidade, os limites do conhecimento, a amizade, a construção da identidade.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Escritores do absurdo

3 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Diferente do fantástico, o absurdo cala em si um lado de humor negro do existencialismo.

 

kharms

Daniil Kharms, “Os sonhos teus vão acabar contigo”

Daniil Kharms, um dos pioneiros do absurdismo, foi, enquanto poeta e dramaturgo, considerado um dos mais autênticos e talentosos escritores da vanguarda russa. Os sonhos teus vão acabar contigo é um título que parece pairar em prenúncio, pois seu autor foi um dos cruéis exemplos do destino dos artistas na ditadura stalinista, culpado por divergir, estética e filosoficamente, do chamado “realismo socialista”,  morreu, abandonado numa prisão psiquiátrica a ponto de definhar de fome e ter o corpo devorado por ratos.

A mistura de gêneros desta coletânea de textos de prosa, poesia e teatro de Kharms – construída como uma “polifonia formal” – é, sob sua pena, peculiarizada por uma comicidade e um caráter absurdo, completamente originais: entre paródias, o grotesco serve-lhe como elemento simbólico sintetizador de uma poética absurdista da vida cotidiana banal.

Seus textos dialogam com a arte a que são contemporâneos, mas também com o que há de mais profundo no dramático da própria condição humana [Confira Matraca]. Continue lendo

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lançamentos

Obra de um “hipocondríaco assumido”

2 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Honoré Daumier

Honoré Daumier

O escritor argentino Diego Vecchio acaba de ter lançada no Brasil uma edição de seu livro Micróbios. Vecchio participa da FLIP deste ano como um dos autores de destaque.

O livro é uma reunião de contos que oscilam entre a comédia e a tragédia. Sua criação literária surge como uma resposta psicanalítica non-sense. São nove narrativas, cada qual uma apresentação de um caso clínico raro, descritos em chave freudiana – cada uma das personagens sofre de uma enfermidade, causada pela leitura e pela escrita.

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Literatura

O senhor quer falar?

1 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Edvard Munch

O interessante livro A alma do mundo, do uruguaio Felipe Polleri, percorre o diálogo entre um paciente e sua psiquiatra.

Através da exploração das complexas entranhas do inconsciente, em que coabitam os limites da loucura e da reflexão. Concebido quase como uma obra teatral, o interrogatório psiquiátrico esmiúça uma mente angustiada de um personagem em que coabitam mundo paralelos, radicalmente antagônicos.

Uma peça literária ousada e original, que mostra como coabitam os antagonismos da fantasia e do realismo na peculiar captação do mundo de cada subjetividade.  Continue lendo

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Assunto encerrado?

30 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Escrever não consiste mais em narrar, mas em dizer que se narra, e aquilo que se diz se identifica com o próprio ato de dizer: a pessoa psicológica é substituída por uma pessoa linguística ou até gramatical, definida apenas por sua posição no discurso”.

Il Vangelo Secondo Matteo, Pasolini

Além de escritor de algumas das mais interessantes prosas fantásticas da história da literatura, desenvolvidas nas pequenas fendas das possibilidades do incontornável, Italo Calvino é também conhecido como um dos ensaístas mais brilhantes do século XX, profícuo crítico literário e crítico da cultura. Em Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade, publicado originalmente em 1980, o italiano reuniu parte de sua crítica que ele mesmo julgava a mais representativa de seu percurso intelectual.

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Meu caro Carlos Drummond

29 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A Companhia das Letras acaba de trazer de volta às livrarias a correspondência recebida por Carlos Drummond de Andrade pelo amigo Mário de Andrade.

Os dois escritores conheceram-se em 1924, durante uma viagem de Mário a Minas Gerais. Mário, então, já era um proeminente escritor, enquanto que Carlos ainda não havia estreado em livro. Sua correspondência a partir dali teve início e manteve-se pelos vinte anos seguintes, até as vésperas da morte de Mário, em 1945.

As cartas foram reunidas pelo próprio Drummond, sob o título A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. São testemunhas preciosas de sua amizade, das conversas inteligentes e afetuosas sobre a poesia, o prosaico, a arte, o artista no Brasil.

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Guia de Leitura

Filósofos e literatos que pontuam Mallarmé como o principal marco de ruptura com a poesia pregressa

26 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Mallarmé como fundamental instaurador de questões contemporâneas que ultrapassam a forma poética.

 

Stéphane Mallarmé (1842-1898) inaugurou questões e possibilidades para a poesia, tão profundas, que ainda não plenamente decifradas pela crítica literária contemporânea. Precursor da poesia concreta, influência decisiva para os poetas futuristas e dadaístas, Mallarmé é, sobretudo, conhecido como um escritor cuja prosa e poesia primam pela musicalidade e experimentação gramatical.

 

Sartre, “Mallarmé”

Sartre, no livro Mallarmé – sem tradução para o português –, analisa que o poeta, em sua obra, nega o homem, pois que transforma “o eterno em temporalidade e o infinito em acaso”.

Antes de Camus, Mallarmé teria percebido, segundo o filósofo, que o suicídio é uma questão humana premente, trabalhada, em sua poesia, através do poema crítico, em que a elocução do poeta desaparece em favor da autonomia das palavras.

Mallarmé cria uma articulação sintática inovadora a partir de uma desconexão, um distanciamento, que faz com que as palavras orbitem em torno umas das outras não por uma necessidade semântica, mas por relações analógicas.

De acordo com Sartre, Mallarmé cria uma linguagem em que a palavra se torna coisa. Segundo o filósofo, “le poème est la seule bombe” [“o poema é a única bomba”], frase provinda de uma metáfora-ideia política de Mallarmé. Poemas podem ser bombas, pois exploram e esgotam as relações dos significantes que abarcam.

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O paradoxo do espetáculo

25 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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Um dos grandes professores do departamento de filosofia da USP, Luiz Roberto Salinas Fortes (1937 – 1987), obteve, em 1983, o título de livre-docente, com a tese Paradoxo do espetáculo, transformado em livro pela Discurso Editorial. Nela, Salinas analisa a obra política de Jean Jacques Rousseau e realça a “importância da ideia de ‘teatro’ e ‘encenação’ (a não ser confundida com a mera ‘representação’) na ética e na política de Rousseau: é preciso algo como um cenário material disposto com sabedoria, para reconduzir a alma à virtude (o ‘materialismo do sábio’) e a cidade à justiça (a festa política que deve substituir o teatro existente no mundo moderno, e que estava ainda embutida na tragédia grega)”.

O teatro é decisivo para a articulação filosófico-politica de Rousseau. Como aponta o professor Luis Fernando Franklin de Matos, na apresentação ao livro, o teatro, para o filósofo genebrino “é o objeto de severa e inquietante reflexão na Carta a d’Alembert sobre os Espetáculos, uma das mais terríveis peças de acusação jamais escritas contra o teatro; é a metáfora obsecante que está em toda parte: no rigor do moralista, na severidade do pedagogo, nas novidades do pensador político. Em suma, o teatro é o ”paradigma essencial” que organiza o ”sistema” rousseauniano em sua totalidade”.  Continue lendo

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Literatura

Jornalismo histórico e literário

24 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Para Heródoto, viajar é sinônimo de esforçar-se, uma tentativa de conhecer tudo, a vida, o mundo, a si próprio”.

kapuscinski

Ryszard Kapuscinski (1932 – 2007) foi um prestigiado repórter e escritor polonês. Minhas viagens com Heródoto – Entre a história e o jornalismo é uma narrativa viva de como, no começo de sua carreira, quando era mandado a locais remotos e, para ele, indecifráveis, tais como Índia ou China, contando apenas com um inglês rudimentar e trabalhando sob condições precárias para órgãos estatais do governo totalitário polonês, encontrou companhia, guia e refúgio espiritual, no clássico livro História, do grego Heródoto de Halicarnasso, escrito no século V a.C. O livro foi um presente, que o jornalista ganhou antes da primeira viagem, e nunca deixou de acompanhá-lo em suas jornadas.

Em Heródoto, Kapuscinski encontrou a inspiração intelectual que iria motivar toda a sua carreira: o desejo de viajar pelo mundo e contar o que via. A História teria sido a “primeira grande reportagem da literatura mundial”, relatando os fatos e costumes da vida dos povos “bárbaros” que o grego visitou conforme penosamente viajava; umais do que uma homenagem, Kapuscinski vê no texto grego uma maneira de compreender o mundo desde seus primórdios, um elogio à diferença e à ideia de que o conhecimento de outros povos e culturas acaba por servir também como conhecimento próprio, espelhado.

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lançamentos

Uma história política e filosófica

23 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

lowy

Acaba de ser lançado no Brasil o livro A luta de classes: uma história política e filosófica, do marxista italiano Domenico Losurdo. Com tradução de Silvia de Bernardinis, o volume chega às livrarias editado pela Boitempo.

O filósofo analisa o conceito e a prática da luta de classes, frente à sua atualidade diante da atual crise econômica que se alastra: “é certo que a luta de classe tenha de fato desaparecido?”, provoca.

Para Losurdo, a luta de classes não é apenas o embate entre classes proprietárias e trabalho dependente. É também a “exploração de uma nação por outra”, como denunciava Marx, é a opressão “do sexo masculino sobre o feminino”, como escrevia Engels. O texto realiza, assim, uma original leitura da teoria de Marx e Engels da história mundial que tem início com o Manifesto Comunista. Losurdo mostra que diante das transformações que marcaram a passagem do século XX para o XXI, a teoria da luta de classes revela-se uma fundamental chave de compreensão.  Continue lendo

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Literatura

Ironias capitalistas

22 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
William Hogarth

William Hogarth

O romance Moll Flanders foi escrito em 1722, no auge do reconhecimento literário do escritor inglês Daniel Defoe. O seu título original ocupava toda a capa da edição, um traçado de todo o destino da protagonista: “As Venturas e Desventuras da Famosa Moll Flanders, que Nasceu na Prisão de Newgate, e ao Longo de uma Vida de Contínuas Peripécias, que Durou Três Vintenas de Anos, sem Considerarmos sua Infância, Foi por Doze Anos Prostituta, por Doze Anos Ladra, Casou-se Cinco Vezes (Uma das Quais com o Próprio Irmão), Foi Deportada por Oito Anos para a Virgínia e, Enfim, Enriqueceu, Viveu Honestamente e Morreu como Penitente”.

Assim, o romance segue a vida de uma mulher que nasceu na prisão e atravessou agruras até morrer, rica, como penitente – narrado por ela mesma, como suas memórias. Trata-se de umas das mais fascinantes personagens femininas da literatura universal. A edição brasileira, recentemente lançada pela Cosac Naify para inaugurar sua coleção “Nova Prosa do Mundo”, foi traduzida por Donaldson M. Garschagen e conta com textos de Cesare Pavese, Marcel Schwob e Virginia Woolf.  Continue lendo

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lançamentos

Intelectual radical

19 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Susan Sontag

Susan Sontag

A vontade radical é segunda coletânea de ensaios de Susan Sontag e foi concebida como continuidade às investigações empreendidas em seu livro anterior, Contra a interpretação [L&PM, 1987, esgotado].

Trata-se da reunião de textos escritos entre 1966 e 1969 que tratam de cinema, literatura, política e, caso do mais célebre deles, pornografia.

Felizmente de volta às livrarias, reeditado pela Companhia das Letras, desta vez em edição de bolso. A tradução é de João Roberto Martins Filho

Nos textos, Sontag analisa a obra dos cineastas Ingmar Bergman e Jean-Luc Godard, do dramaturgo Samuel Beckett, comenta os escritores Rainer Maria Rilke e William Burroughs. Compõem ainda o volume suas reflexões agudas sobre o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, bem como o clássico libelo contra a guerra do Vietnã, escrito por ocasião da sua visita a Hanói.  Continue lendo

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