Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

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Vertiginosas perspectivas

24 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone
Capa do livro Sobre São Paulo, de Claudia Jaguaribe

Capa do livro “Sobre São Paulo”, de Claudia Jaguaribe

A cidade de São Paulo é a protagonista do quase centenário desvairismo: a alcunha dada por Mário de Andrade nunca deixou de ser-lhe marcante e a cidade vem tornando-se cada vez mais desvairada, mais massacrante – ainda assim, ou justamente por isso, assunto e metáfora para uma poesia única. Num livro de uma página só, Sobre São Paulo, a fotógrafa Claudia Jaguaribe consegue captar a dimensão monstruosa e dicotômica da cidade caótica, a poesia paulistana: suas fotos carregam a indiferença do centro urbano – uma das traduções do cosmopolitismo contemporâneo –, mas suas montagens resguardam-lhe um aspecto lúdico profundo. Especialmente nas fotografias noturnas, um impulso lírico quase faz-se soar levemente das luzes e dos arabescos refletidos.

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Nove contos de Beatriz Bracher

23 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

imagem da capa do livro Garimpo, autora Beatriz BracherBeatriz Bracher é uma escritora cinematográfica. Talvez a analogia óbvia com seu ofício de roteirista pareça, a princípio, infame; é possível que seja. Mas é baseada na observação de que a construção das personagens e cenas em seus livros é feita de maneira que elas são quase visíveis, tão bem a prosa de Beatriz lida com os silêncios e intervalos, discretos e despretensiosos, da fala natural cotidiana.

Ao longo dos nove contos que compõem o seu novo livro, Garimpo, lançado pela Editora 34, percebe-se também sua versátil coerência. Os contos não tem padrão de tamanho, de linguagem, de estilo – há irreverentes diálogos de internet, ou anotações antropológicas do diário de viagem de uma escritora, por exemplo.

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Joseph Roth: escritor andarilho

19 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Há um interesse peculiar pelos andarilhos, pelos errantes. Dizia-se que Robert Walser o era; Michel Foucault destrincha os significados sociais dos hospícios como prisões, bem como do reforço da criação de um imaginário popular que relaciona a caminhada desinteressada à loucura; o cineasta brasileiro Cao Guimarães, no longa “Andarilho”, depara-se não somente com um, mas consegue o encontro de dois andarilhos.

Joseph Roth, nascido em 1894 em Brody – confins do Império Austro­ Húngaro, atual Ucrânia –, foi um escritor andarilho e nômade convicto, tinha inclusive fama entre os conhecidos de ter seus bens resumidos a três malas. No romance A lenda do santo beberrão, recém lançado no Brasil pela Estação Liberdade, seu protagonista – espécie de seu alter ego – é um andarilho. Um dos aspectos de interesse do andarilho, do nômade, é que são espécies de anti-heróis na sociedade de consumo. Ironicamente interessante no livro de Roth, pois seu protagonista depara-se com a improvável fortuna de ganhar uma alta soma de dinheiro de um desconhecido. Idôneo, garante que devolverá o dinheiro como promessa a uma santa, porém, acaba por gastá-lo inteiramente, em grandes doses etílicas. Seu lar passa a resumir-se ao sempre protelado fundo do copo. Joseph Roth, definido já como poeta do cotidiano, chamou a este livro de seu testamento.

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Impressões de Carybé nas suas visitas ao Benin – 1969 e 1987

18 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Notas e desenhos de viagem do artista Carybé em visita ao seu grande amigo Pierre Verger às antigas terras do Reino de Dahomé, hoje chamado Benin

O livro, uma reprodução do caderno de viagem de Carybé, publicado pela Imprensa Oficial de São Paulo em parceria com o Museu Afrobrasileiro, é a representação inclusive emocional do contato com a ancestralidade do universo mítico das religiões africanas tradicionais de cultos aos Orixás. As figuras de seus desenhos dançam, vivem.

Os desenhos de Carybé são ágeis, poucos traços resolvem-se em complexas expressões corporais. Sugerem mesmo a narrativa das vidas que representam, pois cada desenho mantém em si uma infinita sucessão de sons e silêncios que sugerem movimentos seguintes, mesmo nas figuras mais serenas. São desenhos de uma beleza singela e sincera, fortes. Precisos, os gestos traduzem-se no traço inteligente e sintético.

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Ensaios em miniatura

17 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

A difícil tarefa de traduzir um poema e manter suas sonoridades, silêncios, imagens, humores, ambiguidades e ambivalências, torna-se, no Brasil, uma já criada tradição, enraizada no trabalho dos irmãos Campos e, hoje, em plena ramificação. Uma feliz proficuidade editorial de boas traduções, diretas para o português, possibilitam a familiaridade do leitor brasileiro, por exemplo, com expressivos poetas poloneses, como Czesław Miłosz e Wisława Szymborska.

Prêmio Nobel de Literatura em 1996, Wisława Szymborska foi publicada no Brasil pela Companhia das letras, no livro intitulado Poemas, traduzido por Regina Przybycien. Além de traduções portuguesas, especialmente publicadas pela editora Relógio D’água, aos não leitores de polonês ainda não era possível conhecer sua interessante poesia a não ser por algumas indicações ou traduções isoladas feitas por poetas brasileiros, como Ana Cristina Cesar, Nelson Ascher, Eucanaã Ferraz e Antônio Cícero. Eucanaã, por exemplo, em seu último livro, Sentimental, rende homenagem à conversa com a pedra de Szymborska e a seu insólito realismo sutil, exemplar, “Sou eu, me deixa entrar”, “Não tenho porta – diz a pedra”.

A vida quase inteira vivida na Cracóvia rendeu à poetisa um olhar agudo, irônico e curioso. No discurso que proferiu na Academia Sueca, “O poeta e o mundo”, defendeu que “todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura necessária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à sociedade. É por isso que dou tanto valor à pequena frase “não sei”. É pequena, mas voa com asas poderosas”. Para o crítico polonês Ryszard Matuszewski, a poesia de Szymborska assume “a forma condensada de uma história ou de ensaio em miniatura”, “por um lado obriga a pensar, e por outro, comove”.

POEMAS
Autor: Wisława Szymborska
Editora: Companhia das Letras
(168 págs.)
Leia um pequeno trecho do livro.

 

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A filosofia do como se

16 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Utilizando argumentos como a literatura fantástica, a matemática, a antropologia literária de Iser, elementos da crítica kantiana, do idealismo alemão e da filosofia da ciência de Quine, A filosofia do como se é um interessante tratado sobre a teoria da ficção. Escrito nos primeiros anos do século XX, propõe a teorização da ficção como importante artifício intelectual para a realização de tarefas primordiais do conhecimento, inclusive do conhecimento científico e matemático.

Da desconfortável caverna aos argumentos de sonho e aos contratos sociais, por exemplo, a ficção serve como intermédio filosófico à realidade e alargamento das possibilidades hipotéticas. A filosofia do como se sugere, contudo, uma aproximação mais profunda, segunda a qual as próprias ideais seriam ficções – um positivismo idealista, como o subtítulo define. A ficção, portanto, como condição cognitiva intencional e necessária, a partir do que o tratado pode propor uma fenomenologia da consciência idealizante; o mito, o sonho, o lúdico, o imaginário, na obra de Hans Vaihinger, tem implicações filosóficas importantes, sustentam noções de metafísica, psicologia, epistemologia e, pelo viés da filosofia da linguagem, ideias para uma teoria literária.

Pouco após a época de sua primeira publicação, 1911, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a consequente necessidade desesperada de se encontrar uma explicação possível ao que estava acontecendo com o mundo, com as pessoas, com a realidade e com os sonhos, A filosofia do como se foi uma leitura de trincheiras, extremamente difundida. A ficção a compartilhar com a razão uma solução a uma realidade problemática.

 

A FILOSOFIA DO COMO SE
Autor: Hans Vaihinger
Editora: Argos
(723 págs.)

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Cartas de Murilo Mendes a Roberto Assumpção

14 setembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Cartas de Murilo Mendes a Roberto Assumpção apresenta ao público as cartas de apenas um dos dois interlocutores, somente o lado do poeta, do diálogo travado em correspondências com o amigo e diplomata Roberto Assumpção, responsável pela organização da edição francesa de Janelas do caos, publicada em 1949 em Paris e ilustrada com litografias do gravurista Francis Picabia.

As cartas foram organizadas por Júlio Castañon Guimarães, no volume publicado pela Editora da Casa de Rui Barbosa em 2007.  Nelas, o poeta versa sobre questões relativas a publicação de alguns de seus livros, mas sobretudo sobre a edição francesa idealizada por Assumpção. “Sou terrivelmente do mundo”, declarara numa frase verso; sua poesia também o é, equilibrando-se entre o lúdico e o real, dotada de vocação cosmopolita e de erudição; suas cartas também o são, mostras de seu agradecimento afetuoso ao amigo pela publicação na França, sua colocação num contexto poético mais amplo. Sinal da poesia a alastrar-se pela maneira de ser do poeta, mesmo pela prosa natural como a dispendida numa carta: “a palavra nasce-me”.

A admiração intelectual nutrida por Murilo em relação ao amigo, aliada ao seu discreto apontamento do “mistério das coisas visíveis”, faz da reunião dessas cartas um documento simpático ao ininterrupto refluxo do refúgio do cidadão do mundo.

 

CARTAS DE MURILO MENDES A ROBERTO ASSUMPÇÃO
Organização: Júlio Castañon Guimarães
Editora: Casa de Rui Barbosa
(116 págs.)

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Crítica Literária

Rubens Rodrigues Torres Filho .parte I.

17 maio, 2013 | Por Isabela Gaglianone

poema semipronto*

Dante fez o que quis.
–  –  –  Beatriz.

__________
*) Adicionar água e levar a fogo brando.

A arqueologia da palavra é tarefa compartilhada pelo filósofo e pelo poeta. “As palavras são símbolos que postulam uma memória compartilhada”, segundo Borges. Trabalho minucioso, do espírito e da letra. E se acontece-lhe ser feito na poesia escrita por um filósofo, como o é Rubens Rodrigues Torres Filho, ganha um polimento ambivalente porém exato, um humor fino que permite-se chegar a vocábulos eruditos ou expressões coloquiais com a mesma facilidade – e com a mesma ironia.

Poeta solitário, alheio a escolas, grupos ou modismos, mesmo porque a poesia foi-lhe tarefa secundária – quase um capricho, segundo o poeta Cacaso (Antônio Carlos de Brito) – em relação à filosofia, seu objeto de estudo e interesse primeiro. Rubens foi professor de filosofia moderna na Universidade de São Paulo, especialista na filosofia de Fichte – a respeito da qual escreveu uma notória tese, O espírito e a letra: a crítica da imaginação pura em Fichte –, comentador da filosofia alemã, sobretudo dos períodos conhecidos como o Idealismo e o Romantismo, profícuo tradutor de obras de autores como Nietzsche, Novalis, Benjamin, Adorno, Schelling, Kant e Fichte. Nos trabalhos filosóficos vemos sua poesia – a sua articulação de uma brincadeira com a hermenêutica das palavras – em germe. Suas traduções já possuem o cuidado preciso com as palavras, equilibradas como numa escultura; seus comentários de filosofia, o humor irônico que lhe é peculiar.
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Literatura

Como um solo de violas

2 maio, 2013 | Por Isabela Gaglianone

como um solo de viola, grande sertão veredas - ilustração de Isabela Gaglianone

Digo-lhe, que se perguntarem, me diga um livro muito bonito para ler, minha memória cairá nas vertentes do viver de Grande sertão: veredas. Explanações pareceriam reles, o livro jorra beleza desde sua primeira palavra, Nonada. Derrama-se, goteja-se, verte-se. Caudaloso. A prosa demora-se em sua própria poesia, são veredas no texto as suas construções poéticas: líricas, inesperadas, vivas como um curso de água: os abundantes travessões dão a imagem, na página impressa – veredas –, vertentes em meio à prosa, comentários em meio à narrativa. Inúmeras variações sobre o próprio título. Os dois pontos fluem o texto em sucessivos riachos de poesia, que, por suas frases, umas nas outras, deságuam-se. Águas fortes, plácidas ou dramáticas, pela chuva ou pelos rios, a narrativa vai e volta levada pelas sensações das águas na lembrança de Rio baldo; o próprio narrador é como um rio de curso longo e tortuoso.

“ – “… Pois a minha não conheci…” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com certeza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras… Fosse cego de nascença”.

A beleza e o estranhamento dos entroncamentos de águas, enraizadas na língua viva da poesia. A língua poética não serve a um propósito – ainda que siga servindo –, não é um meio, mas um fim em si mesma. Remexidas como as pequenas pedras soltas pela correnteza do fundo de um rio, as palavras ganham vida ambivalente: deslocadas, agrupam em si novas maneiras de significância e de relação com as que lhes margeiam: poesia em prosa. “Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Esse sertão, por onde rolam, fugidas, as braças águas, tem a beleza e a tristeza de um solo de violas. Timbre deslocado da harmonia para a melodia, corredeira doce, voz a um tempo aguda e grave, chora e canta, em largas águas, derramando-se em serena vereda. O sertão que há dentro de um texto, entrecortado pela poesia das palavras, pelo movimento vivo da própria linguagem, a melodia tocada por um breve solo de viola amanhece.

_________________

Talvez a melhor tradução musical a essa ideia seja a Suíte Nordestina, de Guerra Peixe. Outros bons exemplos são também as peças de Radamés Gnattali, como o Concerto para viola e orquestra e a Sonata para viola e piano.

A edição 59 do programa Clave de Solencabeçado por Irineu Franco Perpétuo, apresentou gravações destas peças realizadas pelo violista Perez Dworeckio húngaro-brasileiro que foi um dos maiores instrumentistas do Brasil, um dos mais sensíveis intérpretes à viola, em grata homenagem após sua morte.

 

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Literatura

MARÍAS, Coração tão branco

16 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

livro Coracao tão branco, de Javier Marias

“Era simplesmente instalar-se na convicção ou
na superstição de que não existe o que se diz.”

O título Coração tão branco do livro do espanhol Javier Marías é uma alusão a um verso de Shakespeare, um diálogo em Macbeth:

My hands are of your colour, but I shame to wear a heart so white
[Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco].

A alusão desenvolve-se em breve comentário num dos decorreres do fluxo de consciência do protagonista narrador, um tradutor. Ele percorre mentalmente este e alguns versos circundantes, reconstruindo a cena e a história, interpretando-os, revirando os sentidos por trás de suas palavras, à maneira de um cacoete profissional, por impulso de pensar suas possíveis traduções. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte II.

12 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

A ironia de Robert Musil chegaria a ser desconcertante, não fosse sua elegância, a sutileza com que simplesmente permeia as situações do romance. A ironia não é escancarada em palavras ou expressões, reside antes no simples espelhamento de diferentes relações entre diferentes personagens, à maneira de uma fuga musical. Essa ironia é o que faz satírico O homem sem qualidades. Filosoficamente satírico, inclusive, pois põe em questão a moral frente à impessoalidade do homem moderno, enquanto homem de pensamento, imerso numa complexa dinâmica de possibilidades e impossibilidades. Movimentos de paixão e razão, utopias de resguardo inescrutável. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte I.

6 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

no princípio

Filosofia então teve início
na tentativa de liquidação
do universo (arranjo,
adereço, cosmético): promessa
de fluidez sem caroço
e coisa e Tales.

Meditações mediterrâneas. Hidráulica
arcaica. Absoluto
dissoluto.

A primeira
imprecisão é a que fica?

Rubens Rodrigues Torres Filho

 

MUSIL, O homem sem qualidades

(Nova Fronteira, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth)

O homem sem qualidades é logo apresentado a seu leitor. Sua principal qualidade é não ter nenhuma, pois ele é desprovido do dito senso de realidade e possui, em seu lugar, um senso de possibilidade:

Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que     também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (…) não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. (…) podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades” (pp. 34-36).

Se concordarmos com Maurice Blanchot, veremos o tema do livro inscrito em seu título e o tal ‘senso de possibilidade’, assim exposto nas primeiras páginas do monumental romance, como sua chave fundamental de leitura.

A expressão ‘homem sem qualidades’, embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter o sentido imediato, e de deixar perder-se a idéia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial, diz Musil em suas notas, é que ele não tem nada de particular.”
(Blanchot, O livro por vir).

O homem em questão, portanto, seria não exatamente sem qualidades, mas sem peculiaridades. “Nada, precisamente nada!”, “eis a espécie que nossa época produziu”, é o que diz sobre ele o antigo amigo que lhe confere a alcunha. Tudo, para este homem sem peculiaridades, o que acontece e também o que não acontece, equivale-se como variações plausíveis, genuínas possibilidades. Por isso ele não consegue decidir-se, nem mesmo por um caráter. Por isso talvez também Musil não tenha conseguido jamais terminar seu romance. Pois o romance é inacabado, mas metaforicamente também o é seu protagonista, impreciso, em seu mundo restrito a infinitas e incontornáveis potencialidades.

Num incerto salto tigrino que corre o risco de nos levar tão somente a um anacronismo berrante, fazem coro palavras de nosso contemporâneo escritor espanhol Javier Marías no seu romance Coração tão branco:

(…) o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. (…) O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada.
(Marías, Coração tão branco).

Para ele, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido entrelaçam-se, tem a mesma concretude, apesar serem definitivos e desembocarem na retumbante pergunta, “e agora?”. Para o homem sem qualidades, o que não existiu não deixa de existir como potência e resguarda-se em divagações ou investigações filosóficas, especialmente morais, que se desdobram em suas ações e opiniões. Também o que aconteceu poderia ter acontecido de outra maneira. Os fatos estão sempre prestes a inverterem-se de acordo com as relações estabelecidas, dentro dos maleáveis limites da pura possibilidade. Mesmo realidade e utopia mesclam-se indefinidamente. A verdade perde seu estatuto ontológico e desmorona-se em fragmentos possíveis.

O tema desenvolve-se no personagem e vice-versa. Os dois complexos temáticos que dividem o livro e sobre os quais modula sua tonalidade acabam sem peculiaridades que os explique ou resolva. Tanto quanto o homem sem qualidades, são pura plausibilidade. É por isso que Blanchot pode referir-se ao protagonista como uma representação do homem moderno: impessoal, abstrato, imerso na “neutralidade das grandes existências coletivas”, a quem as sequências de possibilidades são ilimitadas e que, “por vocação e por tormento, [tem] de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”. Ulrich – nosso protagonista ganha um nome após ter sido apresentado como um “homem sem qualidades”, mas jamais um sobrenome – é uma abstração. Uma abstração intelectual, cuja humanidade é dramática, pois desenrolada principalmente no incesto nunca concretizado; mesmo sua relação consigo mesmo tem que ser projetada num outro, quase gêmeo, a única possibilidade de amar a si mesmo é através de um espelho.

A condicionalidade é perpétua e irresoluta. Ao contrário do que ocorre no conto “Na galeria”, que Kafka inicia com uma partícula condicional “se”, numa frase que é todo um parágrafo. Ela guarda uma possibilidade que é somente sonhada, o que diz o segundo parágrafo, espelhado: a realidade, que faz chorar. A possibilidade, alí, é quimérica, ao passo que a realidade, concreta, imutável e frustrante. O conto é marcado por quatro tempos: “se”, “– talvez”, no primeiro parágrafo, e, no segundo, “mas [uma vez que não é assim]” e “– uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundado na marcha final como num sonho pesado, ele chora sem o saber”. Em Musil não há desilusão, pois ele está imerso na imprecisão de sua própria impossibilidade.

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Crítica Literária

Musil e Dostoiévski – Modulações

1 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Não que se diga de um homem sem qualidades que seja de todo um idiota. Mas em uma sociedade imperial ou czarista, muito se diz a respeito das personalidades mais excêntricas. Pois as altas rodas dessas sociedades costumam maldizer personagens que as observam com perspicácia, ainda que tais personagens mantenham certo alheamento social. Vivendo nessas sociedades, o idiota é ridicularizado por sua ingenuidade; o homem sem qualidades por seu sarcasmo pessimista. Ambos são personagens permeados por um diagnóstico crítico, de época e de mundo. Assumem discretamente um tom satírico e sua simples existência meio descabida nessas sociedades em que se inserem é espelhada nas personagens ao redor, o que acaba por tipificá-las – tipos quer sociais, quer psicológicos, nas vestes de uma generala ou de uma Diotima. E, se ridicularizados, nessa sociedade que os espelha como numa sonata, quer dizer, retomando e reexpondo seus temas em outros registros, eles, com a irrefutável capacidade de rir-se de si mesmos dão vazão à risibilidade latente das discussões sérias feitas em sociedades que levam a si, e a seus modelos, demasiado a sério – nota: um elegante conde séculos antes já sugerira, a verdade deve passar no teste do ridículo. A crítica refletida é sutil e precisa.

A impressão é a de uma música, sob a qual as personagens se organizam. Os tipos dançam, ao som dos acordes em voga, à maneira de cenas que se sucedem com entradas e saídas do palco, dançarinos com figurinos em meio a cenários requintados e significativos, através dos quais, porém, um idiota ou um homem sem qualidades, cada um a seu jeito, parecem caminhar calmamente, incomodando as coreografias; caminham pela cena, alheios, de calças compridas e olhar reflexivo mesmo que em plena encenação de um pas-des-deux. Figuras quiméricas em meio a retratos do homem moderno.

o homem sem qualidades e o idiota

 

 

 

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Artes Plásticas

Pelas ruas, bares e prostíbulos – A poética expressionista de Hansen Bahia

1 fevereiro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Um autoretrato em xilogravura de Hansen Bahia

“Como é simplista o trabalho dos escrivinhadores de
arte, e mais simples ainda, quando conseguem situar alguém
dentro da linha, desde há muito totalmente encalhada, da
arte-de-moda-universalmente-aceita contemporânea”
(HANSEN, Jornal da Bahia, 1970).

Na alegria pacata da ida Bahia do início da segunda metade do século XX, reduto de tranquila espontaneidade, dos saveiros e dos coqueirais, o artista alemão Karl Heinz Hansen encontrou os motivos de maior inspiração para suas xilogravuras. Marinheiro traumatizado após ter lutado na segunda guerra mundial, veio ao Brasil e aqui descobriu ancoragem propícia ao desenvolvimento de sua poética expressionista. Continue lendo

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Crítica Literária

Witold Gombrowicz: Trá-lá-lá

11 dezembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

Witold Gombrowicz escolheu para si o signo da imaturidade.

“Pois os Maduros sentem profunda aversão pela imaturidade, e nada lhes parece mais odioso do que um ser imaturo. (…) Então, como tudo isso vai terminar? Aonde chegarei seguindo por este caminho? Como se formou em mim (pensava eu) este fascínio pela imaturidade? Seria por eu viver num país repleto de indivíduos rudes, medíocres e efêmeros, que não se sentem bem num colarinho engomado, e onde, em vez da Melancolia e do Destino, são a Inabilidade e a Bisonhice que gemem pelos campos? Ou talvez eu vivesse numa época instável, que a cada instante inventava um novo lema e um novo mote, contorcendo o rosto da melhor forma possível – numa época transitória? …” (Ferdydurke, p. 30).  Continue lendo

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