Arquivos da categoria: matraca

Breves resenhas diárias.

Literatura

Por uma literatura menor

9 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O meu emprego é intolerável porque contradiz o meu único desejo e a minha única vocação que é a literatura. Como eu nada sou senão literatura, que não posso nem quero ser outra coisa, o meu emprego nunca poderá ser causa de exaltação, mas poderá, pelo contrário, desequilibrar-me completamente. Aliás, não estou muito longe disso”.

Essas palavras, escritas por Kafka ao pai de sua noiva, Felice Bauer, ilustram a leitura de sua obra enquanto retrato da literatura e do pensamento judaicos, ligada ao desenraizamento e à perseguição. Deleuze e Guatarri, entretanto, neste seu estudo interpretativo, deslocam os problemas tradicionais, do trágico e da culpabilidade, para os da alegria e da política: a política que atravessa o gênio e a alegria que o comunica. Segundo os autores, “nunca houve autor mais cósmico e alegre do ponto de vista do desejo; nunca houve autor mais político e social do ponto de vista do enunciado”. Kafka cria um espaço literário, utilizando critérios totalmente novos.  Continue lendo

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matraca

Poesia delirante

8 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Gravura original de Hans Bellmer – Les Chant de Maldoror,1971.

Isidore Lucien Ducasse, sob o pesudônimo Conde de Lautréamont, tornou-se conhecido como um dos poetas mais instigantes do século XIX. Nascido em Montevidéu, “nas costas da América, na foz do La Plata”, como diz o Canto I da sua obra-prima Os Cantos de Maldoror, ao final da infância mudou-se com o pai para a França. Ali, desenvolveu uma poesia que, por André Breton, foi considerada um dos precursores do surrealismo, e que fascinou autores tão diversos como Malraux, Gide, Neruda e Ungaretti. Lautréamont, porém, morreu aos 24 anos, em 1870, desconhecido. Somente dezesste anos depois de sua morte começou a tornar-se o mito que é hoje em dia, graças a sua extraordinária ousadia e à criatividade completamente livre de seu texto. O filósofo Gaston Bachelard foi um dos primeiros a formular em um livro seu comentário à obra de Lautréamont, em 1939. Octavio Paz, por exemplo, com a linguagem de um Maldoror, disse: “A história da poesia moderna é a de um descomedimento. […] O astro negro de Lautréamont preside o destino de nossos maiores poetas”.

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Literatura

Crônicas ladeira-abaixo

7 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O Cristo empalado, de Marcelo Mirisola, é uma compilação de quase 40 textos – entre contos, crônicas e ensaios –, publicados originalmente no site Congresso em foco. No prefácio, Aldir Blanc observa: “Mirisola não economiza ofensas, não poupa os bem-pensantes tão em voga, mija nos que se julgam puros, esmerdalha os himmlers que se autoiçaram. Os textos, como o autor, são paradoxais: nos iluminam por suas sombras, nos redimem lançando maldições, nos lavam a alma ao enfiá-la de cabeça no pântano em que vivemos”.

Escrachado, sucinto e direto, Mirisola, na crônica que dá título ao volume, apresenta a tese de que é a cruz que carrega Cristo nas costas, e não o contrário: se ele tivesse sido empalado, “a Igreja e os seus subprodutos mais sórdidos simplesmente não existiriam”.  Continue lendo

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Literatura

De Michael Jackson a Pietá

4 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Em A Calma dos Dias, lançado em março pela Companhia das Letras, Rodrigo Naves mantém aspectos elogiados do seu trabalho ficcional em O filantropo, como a prosa concisa aliada a conclusões ácidas e lúcidas. A multiplicidade de gêneros, aqui, é trabalhada de maneira ainda mais rica. Poesia, conto e ensaio se entrelaçam formando um tecido que busca sentido comum no inusitado, de maneira ao mesmo tempo crítica e lírica, permeada por uma aspereza nova, que aqui invade a prosa de Naves. A calma dos dias coloca em confronto a resistência e a fluidez da matéria num mundo desencantado.

O livro interpõe ensaios sobre a situação cultural contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — a pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas. Continue lendo

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Crítica Literária

A arte como procedimento

3 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Em Teoria da literatura – Textos dos formalistas russos, Tzvetan Todorov revelou aos leitores franceses a existência da escola de análise literária que prosperara em São Petersburgo e Moscou entre 1915 e 1930. Esta coletânea é uma das poucas publicadas no Ocidente que apresentam textos escritos pelos chamados formalistas russos, cuja escola formalista revolucionou a crítica literária, originou a lingüística estrutural e influencia até hoje o pensamento científico. Sua metodologia, original e teoricamente bem estrturada, de análise literária, é considerada pioneira na fundamentação da teoria literária contemporânea.

Segundo Boris Scnaiderman, “numa época de grandes discussões, na época em que o suprematismo de Maliévitch, o construtivismo, a poesia de Kliébnikov e Maiakóvski subverteram todas as noções de consagrado, na época das transformações do palco cênico por Meyehold e da sucessão de imagens até então conhecida no cinema, realizada por Eisenstein, o assim chamado formalismo russo procurou na literatura viva e não apenas nos monumentos do passado aquilo que podia caracterizar a linguagem da obra literária”.  Continue lendo

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Literatura

A origem da origem

2 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Eu te amo, diz o texto. Talvez entre o eu te amo e o amor propriamente dito haja um espaço intransponível. Talvez o tempo que passa. Mas não apenas. Talvez um inevitável desencontro. Essa incoerência. Leio o texto como se fosse parte de um romance. Talvez seja isso, e quando o amor acaba resta apenas a ficção”.

 

Carola Saavedra está colocada entre os vinte melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Naturalizada brasileira aos três anos de idade, considera a língua portuguesa como sua pátria.

Tendo já publicados, no Brasil, três romances – Toda terça (2007), Flores azuis (2008) e Paisagem com dromedário (2010), todos também publicados pela Companhia das Letras – em O inventário das coisas ausentes, ela manteve a forma de fazer literatura exploradas nos trabalhos anteriores: “Quando conto uma história, com ela vem outra”, diz a autora. Aqui, há duas histórias, ligadas pela questão que é tema do livro: a conjugação da vida e da narrativa ao longo da escrita de um romance.  Continue lendo

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matraca

Aos espíritos livres

1 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

obra-incompleta-nietzsche

Mais que uma coletânea panorâmica do pensamento de Friedrich Nietzsche, este volume abarca uma compreensão da obra do filósofo. Os textos, selecionados por Gérard Lebrun, saudoso professor do Departamento de Filosofia da USP, respondem a duas questões: por que e como ler Nietzsche. Há, afinal, uma maneira “lebruniana” de trabalhar a filosofia de Nietzsche, como bem analisou o professor Ivo da Silva Júnior em artigo publicado nos Cadernos Nietzsche: para Lebrun, “não se tratava de pensar a partir de Nietzsche ou com ele as questões da contemporaneidade. Tratava-se de avaliar os tempos atuais por meio da História da filosofia. Nada mais indicado então que a filosofia de Nietzsche para fornecer os “instrumentos” para esse trabalho avaliativo”. Este volume das Obras incompletas, além da cuidadosa seleção de textos, conta com a precisa tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, prefácio e revisão técnica de Márcio Suzuki, além de posfácio de Antonio Candido. Um time de peso intelectual incomparável faz, desta edição, portanto, uma pequena joia editorial.

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Crítica Literária

Agradável melancolia

31 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

9788573265521

Fruto de aulas proferidas no Collège de France, o ensaio A melancolia diante do espelho esmiúça a potencialidade intelectual – filosófica e poética –, do estado de espírito melancólico. Starobinski examina, com erudição e sensibilidade, três poemas de As flores do mal, de Baudelaire. Para ele, o poeta seguiu caminhos que renovaram o tema da melancolia na arte ocidental. A melancolia, nesse sentido, seria um meio pelo qual os signos verbais são também sintomas de uma condição humana, complexa, percebida pela riqueza da figuração da melancolia. O interessante livro acaba de ser publicado pela Editora 34, com tradução de Samuel Titan Jr.

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história

Entre a história e a poesia

28 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O tema deste livro é a tradição moderna da poesia. A expressão não só significa que há uma poesia moderna, como que o moderno é uma tradição. Uma tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo. Entende-se por tradição a transmissão, de uma geração a outra, de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes, formas literárias e artísticas, idéias, estilos; por conseguinte, qualquer interrupção na transmissão equivale a quebrantar a tradição. Se a ruptura é destruição do vínculo que nos une ao passado, negação da continuidade entre uma geração e outra, pode chamar-se de tradição àquilo que rompe o vínculo e interrompe a continuidade?

 

Octavio Paz, poeta, crítico e ensaísta dos mais relevantes do século XX, tem no Brasil parte de sua obra crítica relançada pela Cosacnaify, em parceria com a editora mexicana Fondo de Cultura Económica. Continue lendo

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Literatura

Um fuzilado está vivo

27 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Rodolfo Walsh, reconhecido como um dos escritores latino-americanos mais importantes da atualidade, nasceu em 1927 na Argentina e foi barbaramente assassinado pela ditadura nas ruas de Buenos Aires, em 1977. Vigoroso militante político da esquerda revolucionária peronista, Walsh chegou à liderança do movimento Montoneros, em resistência à ditadura militar. Para várias gerações de intelectuais, sua contundente “Carta aberta à Junta Militar“, em que denunciou os crimes da ditadura instaurada em 1976, tornou-se um modelo de resistência aos regimes autoritários e de fé na força da palavra contra os desmandos do poder. Seu assassinato brutal – crivado de balas a tal ponto, seu peito se abriu devido a tantos ferimentos e seu corpo, depois, nunca mais foi encontrado –, seguiu a postagem de cópias da Carta a amigos e colaboradores ao redor do mundo.  Continue lendo

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cinema

Multifacetada metáfora analítica

26 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O recente mistério em torno do avião desaparecido da Malaysia Airlines retomou uma questão: que segredos pode conter a caixa preta de um avião que caiu? Os últimos “sinais vitais” do voo, antes de sua queda, os vestígios da catástrofe. O israelense Amós Oz aproveitou a forte imagem para usá-la como impactante metáfora – sua caixa preta não se refere a um avião, mas ao rompimento de uma relação amorosa em um divórcio escandaloso, permeado por paixões que beiram a loucura e cujos rastros prolongam-se presente adentro. A caixa-preta, porém, não é um livro a respeito do romance em torno do qual estrutura-se: este é, na realidade, somente o meio através do qual Amós Oz reflete sobre conflitos mais amplos e profundos: o complexo panorama social, religioso e político da vida em Israel nos últimos anos. A maneira astuciosa pela qual a história é construída permite com que ambos pontos de vista sejam explorados simultaneamente. Um romance político, desenvolvido como uma proposta polifônica. Continue lendo

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matraca

A bordo

25 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“As velas representam para mim o mundo mais sincero da vida. O mundo da sabedoria da obediência aos sinais da natureza”. 

 

Desfazer-se de uma vida citadina para ser um cidadão cosmopolita de outra maneira: pelo mundo, a bordo de um veleiro.

Essa é uma decisão cada vez mais tomada ao redor do mundo. E comum, entre as pessoas que tomam essa decisão, é manter um diário, o famoso diário de bordo, que recebe aquilo que vai tornar-se lembrança como a promessa impressa de tornar possível seu resgate. O diário deste casal, em especial, que vive no veleiro Avoante, pode ser acompanhada semanalmente através da coluna que Nelson mantém no jornal Tribuna do Norte. Sua vida a bordo tornou-se, em suas mãos, material para crônicas semanais. Os textos partem de pequenos detalhes e curiosidades sobre a vida náutica e desembocam em reflexões gerais, numa fluente prosa serena.

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Literatura

Princípios

24 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Chegado a esse ponto, de onde não mais se vê o lugar de partida, resta apenas tocar para a frente. Não ter para onde voltar e saber que não é a partir daqui que inicio”.

 

Rodrigo Naves, conhecido como um dos críticos de arte mais relevantes e atuantes do cenário brasileiro, é também um surpreendente escritor. Seus contos caracterizam-se por um aspecto seco, em que a linguagem desdobra-se, sobrepujando o enredo, as personagens, a narrativa, seu espaço e seu tempo. Seu trabalho analítico como crítico espelha-se nos breves textos de O filantropo pela captação instantânea daquilo que é narrado. Seus contos, construídos sobre poucas e precisas palavras, ficam num rico limiar entre ensaios e poemas em prosa e, ali muito bem equilibrados, criam um “sólido chão prosaico” e debruçam-se sobre temas éticos. Ao longo do livro, de história em história, o “filantropo” que dá nome à obra vai sendo paulatinamente construído. Continue lendo

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O alcance da visada de Hermann Broch

21 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Hermann Broch

Grandioso lançamento deste mês, o livro Espírito e espírito de época – Ensaios sobre a cultura da modernidade [Geist und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne), reúne seis ensaios do austríaco Hermann Broch, um dos mais relevantes escritores do século XX.

Traduzidos por Marcelo Backes, os ensaios foram escritos entre os anos de 1933 e 1949 e versam sobre arte, mito e direitos humanos, contextualizados pela decadência dos valores, característica do fin-de-siècle – época marcada pelo fim do império dos Habsburgo –, cujo ápice foram os horrores do nazismo.

Unindo diversas frentes intelectuais, pensando a literatura em relação à filosofia, à história, à política, Broch, por exemplo, foi um dos primeiros intelectuais a reconhecer o trabalho de James Joyce, a respeito de quem escreveu o ensaio “James Joyce e o presente”, incluído neste volume.  Continue lendo

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Literatura

Ironia filosófica

20 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Em que está trabalhando?”, perguntaram ao sr. K. Ele respondeu: ” Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”.

 Escritos ao longo de trinta anos, de 1926 a 1956, ano da morte de Brecht, os textos aqui reunidos, são todos relacionados à personagem do sr. Keuner – uma figura inusitada, misto de filósofo, professor e homem de ação, considerado por muitos como um alter ego do autor, combina em doses iguais Karl e Groucho Marx, empregando a dialética e o humor para afinar sua ironia.

A edição da Editora 34, traduzida por Paulo César de Souza, é a mais completa coletânea das Histórias do sr. Keuner de que se tem notícia em qualquer língua, pois é a única que integrou, aos 87 textos comumente conhecidos, mais 58 textos descobertos apenas em 2002 pelo pesquisador Werner Wüthrich em meio aos manuscritos originais deixados por Brecht na Suíça – país em que viveu por cerca de um ano antes de ir para Berlim oriental, onde viveu seus últimos dias.  Continue lendo

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