Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

Literatura

Em determinadas profundezas da alma

9 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“O momento supremo da crise se consumava numa flutuação agradável e dolorosa, que não era deste mundo. Ao menor ruído de passos, o quarto rapidamente voltava ao seu aspecto inicial. Ocorria então entre as suas paredes uma redução instantânea, uma diminuição extremamente pequena de sua exaltação, quase imperceptível; isso me convencia de que uma finíssima crosta separava a certeza em que eu vivia do mundo das incertezas” – Max Blecher.

fotografia de Joseph Sudek

fotografia de Joseph Sudek

Acontecimentos na irrealidade imediata, do romeno Max Blecher, é uma ficção autobiográfica experimental. Narrado na primeira pessoa, o romance perpassa uma história de amadurecimento, do agravamento das “crises de irrealidade” juvenis, exacerbados pela subjetividade de um narrador hipersensível e que sofre de uma grave enfermidade. O protagonista é um alter ego de Blecher, que morreu em 1938, antes de completar 29 anos, após ter passado dez anos internado, em sanatórios e em sua casa, para o tratamento do mal de Plott, uma doença degenerativa, espécie de tuberculose que afeta a coluna vertebral.

O livro é profundo, denso, inquieto, agudo, assombroso.  Continue lendo

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matraca

Lógicas de situação

8 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“As crises políticas e os fenômenos críticos contíguos que se observam nos sistemas sociais complexos tornam-se inteligíveis em seus traços essenciais desde que a pensemos em termos de dessetorização tendencial do espaço social desse sistema” – Michel Dobry.

Renina Katz

Renina Katz

O clássico estudo Sociologia das crises políticas, do sociólogo francês Michel Dobry, ganhou tradução para o português pelas mãos de Dalila Ribeiro, na edição lançada no final do ano passado pela Editora Unesp. Dobry propõe uma nova abordagem para o estudo das crises políticas, interpretando-as não como imprevistos ou patologias, mas como a norma das relações sociais. Na visão do autor, tais crises resultam das relações sociais e não devem ser compreendidas apenas como factuais. Embora o sociólogo não desconsidere os aspectos históricos e factuais, sua análise propõe que a reflexão sobre as crises políticas deve concentrar-se na idealização de métodos que formem um esquema teórico capaz de ultrapassar as particularidades e revelar as suas dinâmicas características gerais. Seu método abre a possibilidade de estudo dos aspectos constitucionais das crises, sem perder de vista as racionalidades de situações específicas que constrangem as percepções, os cálculos e as táticas dos atores.  Continue lendo

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Literatura

De fatos e cálculos

7 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”.

pintura de José de Ribera

pintura de José de Ribera

Tempos difíceis, de Charles Dickens, escrito em 1854, é um clássico cuja atualidade permanece vívida. O romance tece uma crítica profunda à sociedade inglesa da Revolução Industrial através da narrativa da vida dos habitantes da cinzenta cidade de Coketown. A miserável condição de vida dos trabalhadores ingleses no final do século XIX, em contraste drástico à riqueza em que vivia a classe mais rica da Inglaterra vitoriana, é, pelo romance, mostrado através de um olhar arguto e irônico. O desenrolar de sua prosa constrói uma crítica aguda à garantia que a educação infantil proporciona à manutenção do quadro de dominação e desigualdade social, por moldar desde cedo a inteligência à obediência, à submissão e subserviência, incontestabilidade e irrecuperável massificação de corpo e espírito.  Continue lendo

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Literatura

P.

6 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Paulo Emílio Sales Gomes

Paulo Emílio Sales Gomes

Três mulheres de três PPPês foi publicado originalmente em 1977, ano da morte de seu autor. Paulo Emílio Sales Gomes, até então conhecido pelo profundo trabalho como crítico de cinema, cria, nas três novelas que compõem este volume, uma prosa original e despretensiosa, satírica e bem-humorada, imaginativa e imediatamente familiar.

“Duas vezes com Helena”, “Ermengarda com H” e “Duas vezes Ela” são todas narradas Polydoro, uma figura abastada da elite paulistana que detesta seu nome e que exige de suas parceiras a omissão, abreviação ou variação na pronúncia. Cada novela acompanha o narrador em uma fase da vida, cada qual envolvida por uma das mulheres que lhe dá título.

O livro tem uma dimensão sociológica e tece uma crítica pontiaguda à burguesia paulista.  Continue lendo

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matraca

Desumanização

2 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Matisse

Matisse

“A ‘realidade’ assedia constantemente o artista visando impedir a sua evasão. Que astúcia não supor a fuga genial! Terá de ser a de um Ulisses às avessas, que se liberta da sua Penélope quotidiana e navega, entre escolhos, rumo ao bruxedo de Circe. Quando consegue escapar por um momento à perpétua cilada, não levemos a mal ao artista um gesto de soberba, um breve gesto à maneira de São Jorge, com o dragão jugulado aos seus pés”. 

 

No ensaio A desumanização da arte o filósofo espanhol Ortega y Gasset traça uma análise crítica sobre a estética e a história da arte desde o período romântico até às vanguardas do século XX, buscando as razões para a impopularidade das novas artes.

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Guia de Leitura

Livros que desdobram conceitualmente o ato de ver

1 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O que se vê; como interpretamos o que vemos; o que a intermediação visual-cognitiva implica no modo de conhecimento.

Sociologia, fenomenologia, semiologia, história, teoria da arte: uma série de ciências desdobraram o ato de ver para questionarem o que, enquanto relação do homem com o mundo e condição de seus enunciados, ele pode revelar.

 

Jacques Derrida, “Pensar em não ver”

O livro Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível, do filósofo francês Jacques Derrida, reúne textos que foram produzidos ao longo de vinte e cinco anos, de 1979 a 2004, que configuram-se como testemunhos da reflexão sobre o primado filosófico do visível na arte, deslocada para questões de língua.

Ao colocar em questão a inteligibilidade da arte, Derrida a inscreve, junto com o visível de maneira geral, no centro de suas preocupações sobre a escrita, tematizando a idiomaticidade da arte. São, pois, mais do que reflexões sobre as artes visuais, investigações sobre a própria questão do que é visível que Derrida tece ao longo destes ensaios. O filósofo trata o visível como suporte de contrapontos entre o sensível e o inteligível, o luminoso e o obscuro.

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história

Um povo fora da história

31 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Josef Koudelka, do livro "Gypsies"

fotografia de Josef Koudelka, do livro “Gypsies”

Alvo de preconceito e estigma canonizados, os ciganos, porém, mantém sua marginalidade por entenderem-na como necessária para evitar a contaminação com a impureza – mahrime – daqueles que não são ciganos, para manterem seus costumes e suas tradições. A pátria dos ciganos é a sua língua –romani – e, seu lugar, é a extensão da memória dos ancestrais. A história dos ciganos é repassada pela oralidade. Em Enterrem-me de pé, estudo sociológico e histórico sensível e interessante, a jornalista Isabel Fonseca desvela um mundo escondido, a um só tempo ignorado e secreto, perseguido e oculto, resgatando a presença cigana na Europa centro-oriental – sobretudo Romênia, Albânia e Bulgária – e sua rica cultura.

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Literatura

Um passeio

30 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

nievski 19

Avenida Niévski, do russo Nikolai Gógol, é um dos contos mais representativos de sua série de histórias petesburguesas, escritas entre 1832 e 1842. No Brasil, o conto ganhou em 2012 edição cuidadosa individualizada, com tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify. Trata-se de uma publicação primorosa.

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Literatura

Dentro dos gritos

27 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

[…] O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. […] É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. É muitas vezes o repouso de um escritor, e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do cinema, o contrário do teatro, e de outros espetáculos. É o contrário de todas as leituras. É o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança nas direções que se supõem exploradas, que avança para o seu próprio destino e do seu autor, agora aniquilado pela sua publicação: a separação entre os dois, o livro sonhado, como a criança recém-nascida, sempre a mais amada. Um livro aberto é também a noite. Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar. Escrever apesar do desespero. Não: com desespero” – Marguerite Duras.

cena de "Hiroshima mon amour"

cena de “Hiroshima mon amour”

Os Cadernos de guerra de Marguerite Duras são uma espécie de campo arqueológico literário. Continue lendo

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lançamentos

A alma do corpo

26 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Wesley Duke Lee

Wesley Duke Lee

Corpo, de Carlos Drummond de Andrade, foi lançado originalmente em 1984. Estava esgotado e acaba de ganhar nova edição, agora pela Companhia das Letras, com posfácio da crítica e escritora Maria Esther Maciel. Trata-se de um dos mais esplêndidos livros da última fase do poeta; publicado aos 82 anos do poeta, três anos antes de seu falecimento, revela um olhar poético preciso, profundo e inesgotável.

Os poemas tematizam o amor, a morte, a relação entre pessoas e das pessoas com o meio ambiente. O corpo a que refere-se o título, diz respeito não só ao corpo humano físico, mas ao corpo das cidades, corpo geográfico e urbano, histórico: degradado, devastado, violentado. Em seus versos, Drummond denuncia, ainda que resguarde seu olhar generoso em relação à vida.

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matraca

A produção é destrutiva

25 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

cartaz

O filósofo húngaro István Mészáros, interpreta, em O desafio e o fardo do tempo hitórico, o significado histórico da crise estrutural do capital, que, como “ordem estabelecida”, produz destruição – do tempo livre, da educação, das pessoas, da cultura, da natureza, da vida. Articulando argumentos de filosofia, economia política e teoria social, Mészáros mostra que capital atua somente na destruição e reafirma a necessidade do socialismo no século XXI.

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Arquitetura

Arte tectônica

24 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Frank Gehry, Museu Guggenheim Bilbao

Frank Gehry, Museu Guggenheim Bilbao

O crítico de arte Hal Foster identifica no conceito de “complexo” e na condição de inerência da arte e da arquitetura elementos que definem a cultura contemporânea. Em O complexo arte-arquitetura, lançamento no Brasil pela Cosac Naify, ele aponta que a arquitetura e a arte estão intrinsecamente unidas, desde o final do século passado, até o início deste século XXI. A arte, com suas instalações e obras em larguíssima escala, remete à arquitetura; obras de arquitetos, vendidas como de artistas a colecionadores, lembram que parte fundamental da arte é o chamado projeto.

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Literatura

Sons de água

23 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“São eles próprios mundo, realidade, destinados a segregar, em cada um de seus atos, mais mundo, mais realidade, são, mais ainda, o próprio presente, que à medida que se desloca vai criando mais presente, e ao mesmo tempo, sem perceber, afundando-nos no passado”.

Evandro Carlos Jardim

Evandro Carlos Jardim

Quando faleceu, em junho de 2005, vítima de um câncer de pulmão, o argentino Juan José Saer terminava de escrever os últimos capítulos de sua novela mais extensa, O grande. Nem por isso o romance é considerado inacabado. Composta por sete capítulos, cada qual correspondente a um dia da semana, a narrativa começa numa terça-feira e acaba na segunda-feira posterior à esperada grande reunião de domingo. O último capítulo, interrompido pela morte do autor, é um arremate para os encadeamentos de indagações de longo fôlego do encontro de seu dia anterior: a frase que o inicia e o conclui, retumba significados de um tema recorrente neste grande escritor – a poesia do tempo que passa, que dá o ritmo próprio à sua literatura: “Com a chuva chegou o outono e, com o outono, o tempo do vinho”.

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Últimas

Cinema como expressão sociológica

20 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
cena de "Viramundo". filme de Geraldo Sarno

cena de “Viramundo”. filme de Geraldo Sarno

O documentário, como qualquer forma de cinema, adapta-se por um lado à concepção do diretor e, por outro, à captação da realidade, posicionando-se como articulação entre ambas as forças. A subjetividade intrínseca à forma documental é uma das questões levantadas por Jean-Claude Bernardet no interessante Cineastas e imagens do povo.

O livro foi publicado originalmente em 1985 e, em 2003, reeditado em forma ampliada pela Companhia das Letras. Sua análise abrange a interpretação de mais de trinta documentários de curta-metragem brasileiros produzidos das décadas de 1960 a 1980. Seu foco são as questões ideológicas e estéticas enfrentadas pelos cineastas citados ao abordarem o tema popular, a imagem do povo.

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Guia de Leitura

Livros que usam passagens ou personagens da Odisseia como argumento  

19 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada [i].

 

adorno e horkheimer

Adorno e Horkheimer, “Dialética do esclarecimento”

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer tomam a Odisseia como paradigma das buscas e errâncias humanas, uma vez que, grosso modo, a  figura de Ulisses é compreendida como prototípica do movimento mito-esclarecimento-mito, cuja problematização articula a crítica desenvolvida pelos dois filósofos ao longo do livro: eles descobrem, na história de Ulisses e de seu retorno a Ítaca, a primeira alegoria da constituição do sujeito. Assim, a Odisseia é interpretada, por um lado, como história da razão desencantada dos artifícios míticos; por outro lado, mostra como a emancipação do mito que leva à idade da razão é resultado de uma gênese violenta. Continue lendo

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