A cidade ilhada, de Milton Hatoum, foi o primeiro livro de contos do autor manauense. As histórias são compostas por relances de sua experiência vivida, através de tramas brevíssimas, marcadas por uma dicção enxuta que lhes permite ter completa nitidez e poder de iluminação. As histórias nascem dos temas mais diversos: a primeira visita a um bordel em “Varandas da Eva”; uma passagem de Euclides da Cunha em “Uma carta de Bancroft”; a vida de exilados em “Bárbara no inverno” e em “Encontros na península”; o amor platônico por uma inglesa em “Uma estrangeira da nossa rua”. Hatoum trabalha esses fragmentos da memória até que adquiram outro caráter e então, adventos ao mesmo tempo do acaso e da biografia pessoal, eles afinal possam apresentar-se como imagens exemplares do curso geral dos desejos e fracassos. Sob esse curso, a fatalidade do centro imóvel do autor: “para onde vou, Manaus me persegue”. Continue lendo
Arquivo do autor:Isabela Gaglianone
Algo sério para ser cômico
Ótimo lançamento da CosacNaify, a coletânea O valor do riso e outros ensaios, de Virginia Woolf, chega às livrarias, cuidadosamente traduzido pelo crítico e poeta Leonardo Fróes, também responsável pela organização e pelas notas do livro. O volume reúne 28 ensaios, a maioria com tradução inédita no Brasil.
Os ensaios foram escritos entre 1905 e 1940 e originalmente publicados como artigos para jornais e revistas com os quais Virginia colaborava. É possível notar nestes textos a escrita precisa, mesmo talento da ficcionista que, aplicado ao gênero ensaístico, mostra um olhar mais mundano, de um observador atento, ou que, investido nas resenhas, revela uma crítica perspicaz e militante. Continue lendo
Sob o nome tonitruante de Stálin
O russo Óssip E. Mandelstam (1891-1938) é um dos maiores escritores do período soviético e do século XX. No Brasil, de sua autoria, há apenas o volume que reúne O rumor do tempo e Viagem à Armênia (respectivamente, de 1925 e 1932-33), publicado pela Editora 34 e traduzido por Paulo Bezerra. Ambas narrativas, de caráter memorialístico e reflexivo, representam com amplitude intelectual o cruzamento de culturas, vozes e estilos que povoam o universo deste tão singular autor.
Óssip E. Mandelstam faleceu tragicamente em uma prisão na Sibéria durante a era de terror stalinista. Após escrever um poema anti-stalinista, “Epigrama de Stalin” – em que o ditador aparece com enormes bigodões de barata –, foi preso, em 1934. Morreu por inanição. Continue lendo
Morte da tragédia, crise da cultura
“O que eu identifico como ‘tragédia’ em sentido radical é a representação dramática ou, mais precisamente, a prova dramática de uma visão da realidade na qual o homem é levado a ser um visitante indesejável no mundo”.
Composto de início como tese de doutoramento a ser defendida na Universidade de Oxford, A Morte da Tragédia, de George Steiner, trabalho foi a princípio, tragicomicamente, condenado, pois sua redação não atendia às exigências de uma boa dissertação acadêmica. Mais tarde, não só o ensaísta tornou-se professor na referida universidade, como este escrito transformou-se em obra de referência na crítica e nos estudos sobre o destino da tragédia
Steiner, notório por seu humor e ironia, apura neste ensaio os sentidos para ler e escutar inclusive os detalhes lexicais e tonais e identificá-los como sintomas do declínio que busca descrever. Assim, na esfera da linguagem, ele interpreta o fenômeno trágico como expressão determinada não pela vida, mas sim por uma ideia que resume uma visão de mundo. A tragédia é, nos termos do próprio autor, uma “metafísica do desespero”. Continue lendo
O raio que caiu duas vezes no mesmo lugar
A CosacNaify lança hoje o livro A ovelha negra e outras fábulas, do escritor Augusto Monterroso, traduzido por Millôr Fernandes. A mesma tradução havia sido publicada pela editora Record em 1983, mas aquela edição, que contava também com ilustrações de Jaguar, estava há muito esgotada no Brasil. Esta nova edição, muito bem vinda ao mercado brasileiro, reelaborou completamente o projeto gráfico, obtendo um bonito resultado.
Augusto Monterroso nasceu em Honduras, foi criado na Guatemala e escolheu o México para viver. É conhecido por suas coleções de relatos breves e hiperbreves, marcados por uma singular inventividade. Em 2000, ganhou o prestigioso Prêmio Príncipe de Astúrias de Letras pelo conjunto de sua obra. “O dinossauro”, uma de suas obras mais célebres, é considerado o menor conto da literatura mundial: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.
Obra testamento
“[…] A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”. – Glauber Rocha, “Eztetyka da fome”.
Da coleção Glauberiana, preparada pela CosacNaify há exata década, só resta disponível este fascinante Revolução do cinema novo. A proposta da coleção foi reeditar toda a obra crítica e literária de Glauber Rocha (1939-1981). Com coordenação editorial de Augusto Massi e Ismail Xavier, foram publicados três volumes: Revisão crítica do cinema brasileiro, Revolução do cinema novo, O século do cinema.
Revolução do cinema novo, escrito pelo diretor após a finalização de A idade da Terra, seu último longa-metragem, em 1980, é considerado uma obra testamento. O livro é dividido em duas partes distintas. A primeira reúne artigos publicados ao longo dos anos anteriores e retoma debates e entrevistas. Nela, estão incluídos textos fundamentais como o célebre artigo “Eztetyka da fome”, síntese sobre o cinema novo aos europeus, apresentado na Retrospectiva do Cinema Latino-Americano, em Gênova, em 1965 e “Eztetyka do Sonho”, de 1971. Continue lendo
Simplesmente, sua vida tinha um fundo trágico.
– Vá embora – disse Sandra, mas deixou a porta aberta.
Arrecife, de Juan Villoro, conta a história de Tony Góngora, que, tendo perdido boa parte da memória em consequência do abuso de todo tipo de drogas na juventude, aceita o convite de seu melhor amigo, Mario Müller, para trabalhar num resort no Caribe mexicano. Lá, tornou-se conhecido por oferecer aos clientes uma experiência extrema: o perigo controlado. Os turistas passam a ir ao luxuoso hotel dispostos a encarar situações-limite e violência em pequenas doses, numa programação recreativa que inclui sequestros-relâmpago e encontros com guerrilheiros. Até que um mergulhador do hotel aparece morto com um arpão atravessado nas costas. Uma história de crime, de amizade, amor e redenção.
A narrativa acontece em dois planos: um, o México dos anos 60, 70, da contracultura; outro, nos dias de hoje, no país em que o turismo rompe limites. O livro é político e questiona o turismo narcótico que, em última instância, Villoro entende como uma busca por perigo.
В озере моих слов – Nas águas das minhas palavras
O poeta russo Velimir Khlébnikov (1885-1922), foi, segundo Roman Jakobson, um dos mais inventivos autores do século XX. Khlébnikov foi mentor da vanguarda cubo-futurista e criou a linguagem zaúm, ou transmental, que é formada por sons abstratos. Seu trabalho exerceu forte influência na obra de Vladimir Maiákovski e em todo o movimento vanguardista da poesia russa.
A editora Bem-te-vi acaba de lançou recentemente a coletânea Eu e a Rússia, com textos escritos entre 1908 e 1922, selecionados e traduzidos por Marco Lucchesi, poeta, romancista, tradutor e professor de Literatura da UFRJ. A publicação é uma versão revista e ampliada de um pequeno livro independente lançado nos anos 1980.
O volume traz poemas que abordam os principais temas do autor: a curiosidade pelo espaço geográfico, o encanto com a cultura do Oriente, a paixão pela língua – expressa na exploração das raízes das palavras e de sua etimologia e na criação de neologismos. Continue lendo
Um estudo da tradução é um estudo da linguagem
“Deveria uma boa tradução amoldar sua língua em direção daquela do original, criando assim uma aura deliberada de estranhamento, de opacidade periférica? Ou deveria naturalizar o caráter da importação linguística de modo a torná-la familiar na língua do tradutor e de seus leitores?”
Publicado pela primeira vez em 1975, Depois de Babel mantém sua relevância intacta. Uma das mais importantes obras de George Steiner, marcada pelo manejo preciso da erudição que marca sua produção, discute, a partir dos problemas levantados por questões da tradução, a linguagem humana e o fenômeno literário de maneira geral. Um livro cuja contribuição atinge não apenas estudiosos da tradução, mas todos os que se interessam por literatura, linguística e filosofia, do qual pode-se dizer que é uma das grandes obras de nosso tempo.
Honestidade implacável
A Companhia das Letras lançou em março Um outro amor, segundo volume de Minha luta, o monumental projeto autobiográfico do escritor norueguês Karl Ove Knausgård – projeto que, ao todo, é composto por seis romances divididos em mais de seis mil páginas que revelam os detalhes mais íntimos da vida do autor e de seus familiares. No ano passado, a editora publicou A morte do pai, em que o leitor acompanha a infância do autor e o processo destrutivo que levou seu pai a beber até a morte. Neste segundo volume, Knausgård narra o início turbulento de seu segundo casamento e a descoberta da paternidade, conflituosa com suas ambições literárias. No livro, ele conta como, depois de se separar da primeira mulher, deixou Oslo e mudou-se para Estocolmo, onde começou uma nova vida, experimentando a perspectiva de estrangeiro.
Uma conversa com amigos durante o jantar pode se estender por cem páginas; saltos no tempo e lembranças revividas demonstram o pleno domínio do autor, cuja prosa concilia narrativas de episódios pontuais a longas digressões ao tempo interno das personagens. Na construção narrativa de Knausgård, as fronteiras entre memória e invenção são diluídas a tal ponto que a sua vida é recriada e ressignificada. Continue lendo
Eneida
A editora 34 acaba de lançar uma edição bilíngue de Eneida [Aeneis], clássico de Virgílio. A edição conta com a tradução de Carlos Alberto Nunes e foi organizada por João Angelo Oliva Neto.
A obra começou a ser escrita por Virgílio em 29 a.C. e foi publicada dez anos depois, logo após a morte do autor. É notória a comparação que indica sua relevância em termos de exata equivalência, para o mundo romano, em relação à Ilíada e à Odisseia, para o mundo grego; pois faz um inventário de seus mitos, dá a medida das paixões e dos deveres humanos que tinham àquela civilização, aponta o padrão ético estabelecido para as relações sociais, inventa um passado coletivo e avança concepções de mundo, de tempo, de afetos e de história, que perduraram por mais de mil e quinhentos anos.
Quando escreveu a Eneida, no século I a.C., Virgilio já era famoso por suas Bucólicas, poema escrito em 37 a.C., e pelas Geórgicas, escrito em 30 a.C. A Eneida é um poema épico que narra a saga de Eneias, troiano salvo dos gregos em Troia e que, errante, atravessa pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica e tornar-se o ancestral de todos os romanos. A obra foi encomendada pelo imperador Augusto, para que cantasse sua grandeza e exortasse a origem e o espírito romanos.
Não por acaso Dante elegeu o poeta como seu guia na Divina Comédia. Outro escritor ilustre, T. S. Eliot, certa vez resumiu: “Virgílio tem a centralidade do clássico único; está no centro da civilização europeia, numa posição que nenhum outro poeta pode compartilhar”.
Atento à excepcionalidade de Virgílio e às características da métrica latina, Carlos Alberto Nunes traduziu a gesta de Eneias de forma rigorosa, inventiva e pioneira: preservou as 9.826 linhas do poema e elegeu um verso de dezesseis sílabas para fazer jus à força épica do original.
Texturas, figuras, horizontes fluviais
Lançado paralelamente à exposição Marcel Gautherot – Norte, que foi realizada nos centros culturais do Instituto Moreira Sales em 2009 e 2010, o livro homônimo apresenta 72 fotografias de Gautherot, com textos de apresentação de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., que foram curadores da mostra.
A catá-la acatá-la casá-la acamá-la e encarná-la
Finn’s Hotel, ótimo lançamento da Companhia das Letras, reúne textos desconhecidos do irlandês James Joyce. O livro é composto por onze fábulas em cerca de cem páginas. A tradução brasileira foi feita por Caetano Galindo, especialista na obra do autor, responsável também pela tradução de Ulysses, publicado pela Penguin-Companhia em 2012. De acordo com Galindo, Finn’s Hotel é um interessante texto, que funciona como um “elo perdido” entre a linguagem de Ulysses e Finnegan’s Wake.
O manuscrito, descoberto no início dos anos 1990, causou alvoroço entre os estudiosos de James Joyce. Encontrado em meio aos papéis e anotações do escritor, Finn’s Hotel foi anunciado como embrião daquele que seria o mais enigmático dos livros do irlandês, o caudaloso Finnegans Wake. Uma longa briga judicial privou os leitores de acesso ao texto até agora, mais de duas décadas depois de sua aparição.
“A imagem tem mais memória e porvir do que o ente que a olha”
No livro Diante da imagem – Questão colocada aos fins de uma história da arte, o historiador da arte Georges Didi-Huberman – professor da École des Hautes Études, em Sciences Sociales, em Paris – pergunta: o que ocorre quando nos colocamos diante da imagem?
O autor, no ensaio “Diante do tempo” – conforme publicado na revista Polichinelo – , apresenta a discussão que guia a argumentação desenvolvida em Diante da imagem: “Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo. Como o pobre iletrado da narrativa de Kafka, estamos diante da imagem como Diante da Lei: como diante do vão de uma porta aberta. Ela não nos esconde nada, bastaria entrar nela, sua luz quase nos cega, ela nos impõe respeito. Sua própria abertura – não falo do guardião – nos faz parar: olhá-la é desejar, é estar à espera, é estar diante do tempo. Mas de que gênero de tempo? Que plasticidades e que fraturas, que ritmos e que choques do tempo podem estar em questão nesta abertura da imagem?”. Continue lendo
O foco do diabo
O livro Um coração de cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov, apresenta quatro narrativas, traduzidas diretamente do russo pelo professor Homero Freitas de Andrade, também responsável pela seleção dos textos e pelas notas. Além das quatro novelas – “As aventuras de Tchítchikov”, “Diabolíada”, “Os ovos fatais” e “Um coração de cachorro” – o volume traz também um erudito ensaio de Andrade, “Apontamentos sobre a Prosa Satírica de Mikhail Bulgákov”, em que analisa aspectos da prosa satírica do autor e apresenta uma visão geral do gênero nos primeiros anos da literatura russo-soviética, destacando a contribuição de Bulgákov e de Maiakóvski para a renovação do gênero. Para Bulgákov, a sátira é criada naturalmente, cada vez que um escritor repara na imperfeição da vida corrente e, indignado, trabalha seu desmascaramento artístico.