Arquivos da categoria: matraca

Breves resenhas diárias.

Literatura

A ilha do Pavão

28 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Samico.

O feitiço da ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro, foi publicado originalmente em 1997, após um silêncio editorial de oito anos – dois anos depois, ele lançaria o polêmico A casa dos budas ditosos.

O romance narra uma epopeia, da qual participam os habitantes de uma ilha imaginária no recôncavo bahiano, no Brasil colonial. A ilha do Pavão, geografia fantástica, é o microcosmo de uma sociedade composta por colonizadores portugueses, índios e negros – mundo ficcional que é também a representação de um povo, com suas peculiaridades de formação, seus pontos de tensão, suas glórias.

Uma utopia, mistura de crítica histórica e farsa de costumes, povoada por arquétipos caracterizados por variações linguísticas.

“Na verdade, não se fala na ilha do Pavão. Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela não a menciona a ninguém. […] É sabido, porém, que a ilha frequenta os sonhos e pesadelos da gente do Recôncavo, que muitas vezes desperta no meio da noite entre suores caudalosos e outras vezes para entrar em delírios que perseveram semanas a fio. […] E muitos desaparecidos que nunca mais foram vistos podem bem estar na ilha do Pavão, embora certeza não haja, nem se converse ou escreva sobre o assunto”. Continue lendo

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Georges Perec

24 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

La Disparition” foi publicado na França em 1969. A fantástica engenhoca metalinguística e literária de Georges Perec ganhou este ano sua primeira tradução para o português, sob o título O sumiço.

O tradutor, Zéfere, no posfácio, conta os truques que criou para transpor a trama policial do enredo: o sumiço da vogal “e”, a mais frequente da língua francesa. O livro não restringe-se, porém, ao lipograma – nome dado a textos que suprimem um ou mais tipo. Sua inovação ultrapassa o sumiço da vogal e faz, do próprio desaparecimento, o tema do romance e norte de sua história: Perec cria um mundo de letras, povoado por seres de letras, cujo destino depende também das letras e, sobretudo, do sumiço de uma delas. O resultado é uma mirabolante história de investigação policial, entremeada aos jogos de linguagem que desdobram-se sobre a própria língua, mutilada, porém.

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Reconhecimento e violência ética

21 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

pintura de Paul Klee

Em Relatar a si mesmo – Crítica da violência ética, a filósofa estadunidense Judith Butler analisa o problema da autotransparência e autonarratividade, crucial para um entendimento ético do ser humano.

Trata-se de um brilhante diálogo com filósofos como Adorno, Lévinas, Foucault, entre outros, através do qual a autora realiza uma crítica do sujeito moral, mostrando que o sujeito ético transparente e racional é um construto impossível que busca negar a especificidade da essência humana.

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Arqueologia da política

18 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Arthur Briscoe, “O orador”, 1926

Arqueologia da política, de Paulo Butti de Lima, acaba de ser lançado no Brasil pela editora Perspectiva. O livro é uma leitura profundamente interessante da República platônica. Foi originalmente escrito em italiano, sob o título Archeologia della politica: letture della “Repubblica” di Platone, em 2012, pois Butti é professor da Univerisdade de Bari e responsável científico da Scuola Superiore di Studi Storici da Univerisdade de San Marino.

Butti indica, no início de sua introdução, que o argumento deste estudo “é a ‘natureza’ da política”, conforme compreendida por Platão. Sua reflexão desenvolve-se sobre a análise do poder e do conhecimento que a ele se dedica.

O discurso político é, neste argumento, central e, junto com sua teoria, “devem ser considerados segundo um processo que é, ao mesmo tempo, formal e temporal”: é nesse sentido que o autor pode falar de uma “arqueologia” da política, enquanto viés investigativo tanto das formas revestidas pelo discurso político, quanto do reconhecimento do momento inicial deste discurso como fundador de toda a tradição política vindoura.

Butti mostra o problema que surge quando Platão recorre ao vocabulário da cidade [pólis], pois, diz o professor, entre ela e o cidadão [polítes], “o termo politikós não se explica facilmente, quer atribuindo-o a formas de conhecimento (arte ou ciência política), quer a alguns cidadãos (homem ‘político’)”.   Continue lendo

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Natureza inquietante

14 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

retrato de Ivan Búnin, por Leonard Turzhansky

A editora 34 acaba de lançar O amor de Mítia, do russo Ivan Búnin (1870-1953), sob a primorosa tradução de Boris Schnaiderman, que beira os cem anos de idade.

Búnin, em 1933, foi o primeiro escritor russo a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Sua obra, por uma lado, é grande herdeira da prosa realista russa do século XIX, sobretudo a de Tolstói. Porém, sua sua ficção conhece de perto as fraturas abertas pela modernidade.

Segundo Boris Schnaiderman, este é um dos textos mais vigorosos por ele já traduzidos.

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Frágil experiência do indivíduo

10 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um novo lar”.

Fotografia de Roger-Viollet, da entrada de Auschwitz [janeiro de 1945]

A língua exilada, do húngaro Imre Kertész (1929), reúne ensaios, discursos e conferências, inclusive o texto proferido pelo autor quando do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em 2002. A Academia Sueca, ao anunciá-lo vencedor, definiu sua escrita como sustentáculo da “vivência frágil do indivíduo contra a arbitrariedade bárbara da história”.

Entre as narrativas marcantes da segunda metade do século XX figuram seus relatos e reflexões, enquanto sobrevivente dos campos de extermínio nazistas. Imre Kertész transforma a experiência da deportação em reflexão sobre os valores éticos e morais da nossa sociedade.

A língua exilada é uma coleção de ensaios permeados pela idéia de que o Holocausto não é um acontecimento restrito aos nazistas e aos judeus: é uma experiência universal. Se Theodor Adorno disse ser impossível escrever versos após Auschwitz, Kertész afirma que o campo de concentração é um marco zero e que, portanto, nada mais poderia ser escrito sem fazer menção a ele. Segundo o autor húngaro, em todas as produções artísticas pós-Segunda Guerra Mundial estão evidentes as marcas da aniquilação dos valores que sustentavam a civilização antes do Holocausto. Passada a euforia inicial da queda do Muro de Berlim, em 1989, renasceram os velhos nacionalismos e, com eles, a sombra do anti-semitismo. Continue lendo

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Literatura

O baile de Lygia

7 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Era o círculo eterno sem começo nem fim. […] A perplexidade do moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito: hábito de rir sem vontade, de chorar sem vontade, de falar sem vontade, de fazer amor sem vontade… O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil”

– trecho de “Eu era mudo e só” [Telles, Antes do baile verde]

 

Renina Katz

Reunião de narrativas escritas entre 1949 e 1969, publicada em originalmente em 1970, Antes do baile verde, de Lygia Fagundes Telles, é uma das obras mais marcantes da carreira da autora, pontuada por uma sensibilidade singular.

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Literatura

A estrada

3 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone
foto_grossman

fotografia de vilarejo russo destruído.

Coletânea de prosa curta do grande escritor russo contemporâneo Vassili Grossman, A estrada traz textos de diversos gêneros, traduzidos diretamente do russo por Irineu Franco Perpétuo. O livro foi publicado no final do ano passado, pela Alfaguara, que também já havia publicado o notável Vida e destino.

Conhecido como o autor responsável por alguns dos mais impactantes relatos sobre a participação soviética na Segunda Guerra Mundial e sobre o Holocausto, Grossman, através desta reunião de reportagens intensas, contos esclarescedores e cartas comoventes, mostra mais um pouco do motivo pelo qual sua obra, reprimida na época stalinista, tem hoje tamanha ressonância internacional. Os textos aqui reunidos são devastadores, brutais e completamente atuais. Uma coletânea de escritos precedidos por introduções que, além de apresentar o contexto em que foram produzidos, trazem informações sobre a vida do autor e o recorrente eco da expressão “vida e destino” que, mais tarde, daria nome à sua obra-prima. Continue lendo

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Fantasmas antropológicos e literários

29 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Michel Leiris.

A África fantasma, do antropólogo, poeta e escritor Michel Leiris (1901-1990), foi publicado originalmente em 1934. Trata-se de um extraordinário diário, no qual Leiris registrou o cotidiano da Missão Etnográfica e Linguística Dacar-Djibuti. A missão ocorreu entre 1931 e 1933 e atravessou a África, de sua costa atlântica até o Mar Vermelho; foi a primeira iniciativa francesa de investigação etnográfica no continente africano.

Pode-se dizer que o livro sintetiza a marcante pluralidade de interesses do autor. Sua leitura, pessoal, dos acontecimentos ao longo do trajeto e da pesquisa, interpenetra, ao estudo antropológico, a escrita autobiográfica – experiência levada ao limite, no final da década de 1930, com Espelho Da Tauromaquia [Cosacanaify, 2002, esgotado]. O texto, dessa maneira, não é um caderno de campo antropológico strito sensu, tampouco mero relato de viagem; reúne em si ambos gêneros, alinhando-os, ainda, a esboços de ficção, comentários políticos, registro de sonhos, obssessões confessionais. Leiris definiu-o como um “simples diário íntimo”. Seu texto, porém, denso, é inclassificável. Segundo o tradutor,  André Pinto Pacheco, “a prosa de Leiris mistura o literário e o coloquial, o impessoal e o íntimo”. Continue lendo

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A biografia velada de Cabrera Infante

25 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
1965

1965

Corpos Divinos, do cubano Guillermo Cabrera Infante, acaba de ganhar uma edição brasileira. Trata-se de suas memórias, romanceadas; ou, nas palavras do autor, de uma “biografia velada”. A singularidade do olhar autobiográfico reconstitui de maneira vívida os dois anos narrados, do início de 1957 aos primeiros meses de 1959, decisivos tanto na vida de Cabrera Infante, como na história de seu país. O livro, inacabado, foi objeto de trabalho do autor por toda a sua vida.

Entre o período narrado, a vida do autor passa por diversas reviravoltas, ao mesmo tempo em que Cuba experimenta sua mais profunda revolução. Com uma elegância na escrita que o tornou admirado mundo afora, Cabrera Infante passeia por entre a história e a autonarrativa, ao mesmo tempo em que por entre a dicção refinada e o registro popular, através de saborosos jogos de palavras, de referências literárias, musicais e cinematográficas, de um singular humor irônico e, sobretudo, de um onipresente erotismo.

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Cosmopolítica do sonho

22 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
Rosie Tasman Napurrurla, Warlpiri 2002, Ngurlu Jukurrpa (‘Semente de grama; grão de arbusto em sonho"’). Warnayaka Art Centre, Lajamanu, and Aboriginal Art Prints Network, Sydney

Rosie Tasman Napurrurla, Warlpiri 2002, Ngurlu Jukurrpa (“Semente de grama; grão de arbusto em sonho”). Warnayaka Art Centre, Lajamanu, and Aboriginal Art Prints Network, Sydney

O interessante pensamento antropológico de Barbara Glowczewski pôde ser conhecido pelo leitor brasileiro no ano passado, com Devires totêmicos— Cosmopolítica do Sonho. O livro percorre sua trajetória intelectual e reúne onze textos de sua autoria, dentre os quais inclusive as profícuas e estimulantes discussões que travou com o psicanalista Félix Guattari, em seus seminários[i] no início da década de 1980.

Parte do livro perpassa as instigantes análises baseadas na observação do povo Warlpiri do deserto central australiano – objeto de estudo da antropóloga há mais de trinta anos – e a sua cartografia totêmica que, baseada nos sonhos, constitui seus territórios existenciais nômades através de desenhos corporais ou danças rituais. Em um dos ensaios, sugere relações entre suas análises e narrativas com as linhas de errância de Deligny. Há ainda textos que dialogam com conceitos abrangentes da antropologia e da filosofia, como o perspectivismo de Viveiros de Castro e a ecosofia de Guattari, abrindo seu leque de discussão para questões cosmopolíticas extremamente atuais.  Continue lendo

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A menina-flor

17 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Durante o dia mantinham-na o tempo todo a céu aberto, expondo-a o quanto possível diretamente ao sol. O lado vegetal de sua pessoa afastava qualquer perigo de insolação”.

Odilon Redon

Odilon Redon

Bertha, a menina-flor é uma das partes suprimidas do romance Locus Solus, do vanguardista Raymond Roussel (1877 – 1933).

A cuidadosa publicação, feliz ganho para o leitor brasileiro, veio a lume através do selo Armazém – comandado por Juliana Crispe e Marina Moros –, da editora Cultura e Barbárie. A ótima editora, sediada em Santa Catarina, publicou, em edições caprichosas, alguns livros de Roussel, entre eles o supracitado Locus Solus, Como escrevi alguns dos meus livros [edição bilíngue] e Piparote.

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A viagem como vocação

15 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de W.B. Seabrook, analisada por Michel Leiris em Documents, n. 8, 1930, p.461

fotografia de W.B. Seabrook, analisada por Michel Leiris em Documents, n. 8, 1930, p.461

Fernanda Arêas Peixoto, em A viagem como vocação – Itinerários, Parcerias e Formas de Conhecimento, propõe um tema que aproxima diferentes autores – Leiris, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Oliveira Lima e Pierre Verger: as viagens, realizadas entre as décadas de 1930 e 1960 pelo Brasil, pela América Hispânica e pela África.

A análise é guiada pela revisão dos textos dos autores à luz das viagens que realizaram em contextos muito precisos. Mais do que teorizar sobre as viagens, o livro mostra o grande interesse despertado pelas produções que as viagens geram, entre correspondências, diários, fotografias etc, que são valiosos instrumentos para a recuperação de processos de confecção de conhecimento. Fernanda Peixoto mostra um verdadeiro “ateliê” do criador, que passa a ser entrevisto através das análises, um espaço de experimentações, que tende a ser excluído quando da apresentação pública das obras.

Para a autora, a viagem é forma de acesso à produção das ideias e do conhecimento, ela própria aparece como uma forma de estar – e ser – no mundo, definindo um espaço próprio, provisório, como o são os percursos e as ideias.

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Folclore brasileiro

11 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“aos cantadores e violeiros, analfabetos e geniais; às velhas cantadeiras de estórias maravilhosas, fontes perpétuas de literatura oral do Brasil, ofereço e consagro este livro que jamais hão de ler.”

gravura de Gilvan Samico

gravura de Gilvan Samico

Os dois volumes da Antologia do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, são uma referência única a aspectos do folclore e da etnografia brasileira.

Publicado originalmente em 1943, estimula, no leitor brasileiro atual, indagações sobre o paradeiro de tantas tradições da cultura popular. Há alguma nostalgia em relação a aspectos histórico culturais que a discrepância secular torna perceptíveis de uma maneira por demais abstrata, indiferenciando-nos em relação a tantos aspectos de nossos personagens formadores de cultura, a nosso passado, à nossa história? O que há em nós, enquanto povo, do chamado povo brasileiro de outros séculos? O que de nosso folclore já não é senão poético?  Continue lendo

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A chamada política da identidade

4 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
Renina Katz, litografia [Sem título], 1977

Renina Katz, litografia [Sem título], 1977

O economista e escritor indiano Amartya Sem, professor da Universidade de Harvard, Prêmio Nobel de Economia em 1998, neste abrangente e agudo Identidade e violência, sustenta que a “violência assassina” que envolve o mundo é decorrência, por um lado, de infelizes confusões conceituais e, por outro, de ódios ancestrais. Lembrando que a identidade reconforta tanto quanto mata, o autor revê temas incontornáveis como a falsa oposição entre o Ocidente e o “Antiocidente”, o confinamento civilizacional e a liberdade de pensar e manifestar-se sem o temor de represálias, físicas e morais.

Na exacerbação das fronteiras, que gera a sempre crescente violência, está imiscuída a questão da degradação da identidade. Trata-se de uma ilusão identitária.

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