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Guia de Leitura

Utopia

21 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Utopia política: será, esta expressão, pleonástica?

O alicerce ideológico fundamental da utopia é bem representado pela figura mitológica de Prometeu – a ideia humanista da formação de si e, consequentemente, formação de seu entorno, de sua polis, sua sociedade, sua política.

As ficções e os comentários filosóficos aqui reunidos tem em comum partirem de críticas ao sistema econômico mercantil e suas decorrências sociais, morais, estéticas, propondo-lhe um espelhamento negativo.

“[…] assim, pouco a pouco, para onde quer que olhemos, tudo no mundo torna-se uma versão de certa figura primordial, uma manifestação daquele movimento em direção ao futuro e à identidade derradeira com um mundo transfigurado que é a Utopia, cuja presença vital, por trás de qualquer distorção, sob qualquer nível de repressão, pode ser sempre detectada, não importa quão fragilmente, pelos instrumentos e dispositivos da esperança” – Fredric Jameson, Marxismo e Forma Teorias dialéticas da literatura no séc XX [Hucitec, 1985].

 

 

Tommaso Campanella, "A cidade do sol"

Tommaso Campanella, “A cidade do sol” [disponível apenas em sebos]

Tommaso Campanella escreveu A cidade do sol em 1602, enquanto encontrava-se preso, em Nápoles. É sua mais conhecida obra política, na qual ele desenvolve a ideia de uma república ideal, baseada numa interpretação da filosofia da natureza de Bernardino Telésio, teocrática e ao mesmo tempo aristocraticamente comunista. Em 1607 um exemplar manuscrito da obra foi entregue a Caspar Schoppe, que a divulgou, realizando várias cópias, na Itália e na Alemanha.

O texto completo, “Appendice della politica detta La Città del Sole di fra’ Tommaso Campanella – Dialogo poetico”, ainda é inédito em português – a tradução está sendo desenvolvida por Carlos Eduardo Ornelas Berriel, professor de Teoria Literária da Unicamp. Em tempo: também é de Berriel a organização da “coleção Mundus Alter”, publicada pela editora da Unicamp, dedicada a traduções de utopias literárias que, diz o professor, são “essenciais para a compreensão do imaginário político moderno. […] Longe de servirem para o escapismo político, as utopias são, comumente, retratos irônicos, cáusticos e satíricos da época de seus autores”. A tradução publicada na coleção Os pensadores tem como texto de base a séria transcrição de Norberto Bobbio, feita em 1941, texto confiável e bem representativo, fundamentado na leitura de dez dos onze manuscritos então conhecidos.

A cidade do sol teria seu Estado regido por um príncipe sacerdote, o “Sol” – um “Vigário do Sol” ou Metafísico. A cidade é uma criação racional, hiper-ordenada, em que cada coisa tem seu lugar. Para manter sua ordem, o príncipe teria à sua disposição a ajuda de três sacerdotes e sábios, a Potência, a Sapiência e o Amor: o poder é a potência, o saber é a sabedoria, o querer é o amor que passou pela sabedoria – três virtudes fundamentais. A ordem e a hierarquia sociais, rígidas e eclesiais, tem toda sua organização inspirada na astrologia e devem servir à harmonia e êxito na produção coletiva.

Baseado na ideia de ordem e desígnio naturais, possivelmente de inspiração humanista e representada sobretudo pelas ideias filosóficas de Giordano Bruno – mas também de filósofos renascentistas como Marsílio Ficino, Pico de la Mirandola, Telesio e Patrizzi –, responsável pela existência coesa dos objetos – que não se deixam vencer pelo nada e a dispersão –, Campanella concebe sua Cidade de modo que nela todos aspirem ao “sol”, ou seja, ao centro do sistema.  A utopia camapanelliana é ordenada portanto por uma ideia de “religião”, no sentido de uma corrente intelectual que une todas as coisas, porém, como uma “Igreja da Natureza”, regida pelo “Sol”. De acordo com o comentário de Ernst Bloch: o pathos da ordem é o que constitui a unidade da utopia de Campanella.  Continue lendo

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lançamentos

“Pesquiso a forma no caos”

20 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Nossa medida de humanos

-Medida desmesurada-

Em Selinunte se exprime:

Para a catástrofe, em busca

Da sobrevivência, nascemos”

– Murilo Mendes, “As Ruínas de Selinunte”.

escadaSiciliana e Tempo espanhol foram publicados separadamente por Murilo Mendes em 1959. A editora Cosac Naify acaba de reeditá-los num volume único, com posfácio de Eduardo Sterzi. A publicação acompanha a tendência editorial a apostar em autores consagrados.

Os dois livros foram escritos pelo poeta ao longo das quase duas décadas em que viveu na Europa. Em ambos, sua poesia faz alusão a obras, monumentos e cidades do velho mundo. Por sua forma, tem em comum a concisão e um tom mais seco, distanciando-se do surrealismo que vinha inspirando sua poesia.  Continue lendo

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história

Aqui todos viramos bárbaros

17 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Araquém Alcântara

fotografia de Araquém Alcântara

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[…] Fizemos renascer o projeto de 1870, quando o otimismo brasileiro parecia exigir o impossível. E procuramos desempenhar a nossa tarefa com o afinco de uma guerra contra o crime que lesava as possibilidades do lucro cada vez maior. Derrubamos árvores seculares, enfrentamos e civilizamos selvagens que mourejavam na idade da pedra, aqui estamos trabalhando com a disposição de dar até a nossa própria vida porque é assim o gênio americano“.

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O escritor amazonense Márcio Souza é autor de mais de 20 livros. Mad Maria, um dos mais notórios dentre eles, escrito em 1980, é de atualidade metafórica desconcertante.

No final da primeira década do século XX, o governo brasileiro decide construir uma ferrovia na selva amazônica, obra mirabolante com o intuito de criar um caminho que contornasse as dezenove corredeiras mortais do rio Madeira, região de relevante passagem para os produtos importados e exportados pelos bolivianos – a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), que integraria uma região rica em látex na Bolívia com a Amazônia. Antes de terminadas as obras, 3,6 mil homens estavam mortos, 30 mil hospitalizados e uma fortuna em dólares desperdiçada na selva.

“[…] a ferrovia estava sendo construída num silêncio de certo modo planejado, ele já tinha sofrido muitos ataques através da imprensa devido à falta de lisura na concorrência pública, um deslize grosseiro de seu testa de ferro, o engenheiro Joaquim Catambri, homem um tanto autoritário e corrompido que realizara as transações sem esconder os detalhes escusos”. Na realidade, a região era tão inóspita que a construção ligaria nada a parte alguma. O romance narra um dos tantos absurdos lucrativos patrocinados pela história brasileira, contrapondo a construção da estrada em plena selva às negociatas envolvendo a relação político-econômica entre o construtor e concessionário, Percival Farquhar, com o novo governo do presidente Hermes da Fonseca e seu ministro da Viação e Obras Públicas, J. J. Seabra.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Correspondências

14 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Correspondência trocada [ao menos remetida] por escritores da primeira fase do modernismo brasileiro:

A possibilidade de acompanhar a leitura da troca de cartas entre dois escritores é de uma riqueza que ultrapassa a mera curiosidade, o fetichismo sobre suas personalidades, o voyeurismo intelectual – ainda que também as contemple. As cartas pulsam, testemunhas históricas – eternamente – vivas.

Mais do que formas de comunicação à distância, o tempo epistolar abriu possibilidades únicas de desenvolvimento de discussões, interpretações, compartilhamento de ideias literárias, culturais, intelectuais. Compuseram, entremeado à realidade, um universo de ideias, atualizado pela concretização não apenas em palavras, mas em sua sobreposição enquanto respostas a respostas.

 

Renato Caldas, “Fulô do mato”

Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo e jornalista, conhecido pelo trabalho que desenvolveu como pesquisador do folclore. Correspondeu-se com Drummond e com Lêdo Ivo e essas cartas são um caso curioso na historiografia de publicação epistolar, pois foram publicadas como prefácios ao livro Fulô do Mato, do poeta matuto Renato Caldas. Este, potiguar muito estimado por Câmara Cascudo, pode publicar, na segunda edição de seu livro, cartas escritas pelo folclorista a Lêdo Ivo e Drummond. As cartas foram transcritas para as edições seguintes da obra e, então, tomadas definitivamente como prefácios.

Através de sua correspondência, Câmara Cascudo pode ser o articulador do movimento modernista no Rio Grande do Norte. Através de suas cartas a memória cultural e literária presentifica-se. Entusiasta da poesia matuta, ele dizia nas cartas sobre o que se produzia em seu estado aos amigos escritores. Ao dissertar sobre o amigo Caldas, ele diz: “Renato é miolo de arueira, não esquecendo ponta de prego que o riscou nem cheiro de flor roçando nas folhas”.

O folclorista foi muito estimado por Mário de Andrade e com ele também se correspondeu durante longo período, cartas que estão reunidas no volume Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944 Continue lendo

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lançamentos

Biocapitalismo

13 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone
gravura de Iberê Camargo

gravura de Iberê Camargo

O filósofo italiano Antonio Negri, em Biocapitalismo, analisa a crescente onda de ocupações do espaço público, fruto do que chama, com Espinosa, manifestações da “multidão” – tida como fonte de articulação de desejos represados e díspares, unidos na ocupação e construção de um espaço de resistência e de emancipação, balizando os termos da biopolítica.

O livro, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, acaba de ser lançada no Brasil pela editora Iluminuras.

Segundo o professor Márcio Seligmann-Silva, o pensamento de Negri dialoga com a história política da América Latina e, portanto, faz-se imprescindível para pensarmos nosso presente:“Antonio Negri tem tentado reinventar a política, sobretudo a prática das esquerdas, introduzindo e repaginando uma série de conceitos. Não por acaso, este livro, editado por Adrián Cangi e Ariel Pennisi, vem de uma obra compilada na Argentina: a escuta que Negri encontra na América Latina é particularmente grande. Temos muito a dialogar com sua obra”.

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Literatura

Lias, Rosinhas, Giselles, Cecílias, Odette

10 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

lapa

Luis Martins foi um grande cronista da vida boêmia do Rio de Janeiro. O bairro carioca da Lapa, com seus arcos e prostitutas, povoado por escritores e bebedores, tornou-se, sob sua letra, um universo literário vivo.

O romance de estréia de Martins, Lapa, publicado originalmente em 1936, mostra o bairro e a cidade de maneira crítica, escancara os meandros de sua miséria. Noturno da Lapa, lançado quase três décadas depois e vencedor do Prêmio Jabuti em 1965, contemporiza e retrata o cenário sob uma perspectiva mais amena.

Ambos títulos foram reeditados pela editora José Olympio e voltam às livrarias, integrando os títulos escolhidos como parte do projeto Biblioteca Rio 450, criado pela Prefeitura do Rio de Janeiro neste ano de data redonda para relançar títulos importantes para a história da cidade. As duas obras, indissociáveis, são vendidas em conjunto.   Continue lendo

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Guia de Leitura

Reflexões filosóficas sobre o riso, o humor, o cômico ou o ridículo

7 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Após o lançamento de Graça Infinita, de David Foster Wallace, e as discussões a respeito da ironia de seu título, bem como da dificuldade de sua tradução para o português – Infinite Jest –, reunimos alguns textos interessantes sobre a galhofa, a bufonaria, a risada, a piada, a ironia.

 

Shaftesbury, “Characteristics os men, manners, opinions and times”

Shaftesbury – Anthony Ashley Cooper, III Conde de Shaftesbury – é um daqueles filósofos cujas ideias tornaram-se freáticas; pouco comentado atualmente, desenvolveu reflexões que foram base para o desenvolvimento da filosofia moderna. O seu muito irônico Sensus communis, or na Essay on the freedom of wit and humor ainda não tem tradução para o português, porém, é fundamental para pensar as dimensões políticas, morais e estéticas do riso, do ridículo, da zombaria, do humor fino e engenhoso.

O texto é escrito em forma de carta, a um suposto amigo que ficara atônito e perturbado com a defesa, expressa por parte do autor, da zombaria. Shaftesbury explica que a zombaria pode ser justa, pois apenas pode ser considerado verdadeiro aquilo que suporta todas as luzes da verdade, inclusive o crivo do ridículo. Seguindo a tradução de Márcio Suzuki, no artigo “Quem ri por último, ri melhor”: “de acordo com a noção que tenho de razão, nem os tratados escritos do erudito, nem os discursos do orador são capazes, por si sós, de ensinar o uso dela. Somente o hábito de raciocinar pode fazer o arrazoador. E não se pode convidar melhor os homens a esse hábito do que quando têm prazer nele. Uma liberdade de zombaria, uma liberdade de questionar tudo em linguagem conveniente e uma permissão de desembaraçar e refutar cada argumento sem ofender o argüidor, são os únicos termos que de algum modo podem tornar agradáveis as conversas especulativas”. Somente uma conversa desimpedida pode proporcionar o uso pleno da razão. E o “wit”, palavra e difícil tradução para o português que significa algo como um dito espirituoso, um chiste, junto com o humor, permite uma conversa agradável e polida, na qual, Shaftesbury diz: “Em matéria de razão, mais se dá em um minuto ou dois, por meio de questão e resposta, do que por um discurso corrido de horas inteiras”. Inclusive, para o filósofo, “sem wit e humour, a razão dificilmente pode pôr-se à prova [take its proof] ou ser distinguida”Continue lendo

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lançamentos

Prosa precisa

6 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Odilon Redon

O vento que arrasa, da argentina Selva Almada, vem sendo aclamado como a última grande revelação literária da América Latina.

O romance é ambientado no Chaco argentino e transcorre-se ao longo de somente um dia e meio na vida de Leni, uma moça de dezesseis anos, e de seu pai, um pastor que vive a percorrer o país em busca de sinais de Deus. Com problemas no carro, eles fazem uma parada na oficina mecânica do Gringo, onde conhecem o jovem Tapioca, rapaz que o pastor vê como uma alma iluminada e a quem, por isso, quer levar consigo na peregrinação.

Com tradução de Samuel Titan Jr., o livro acaba de ser lançado no Brasil pela CosacNaify. O volume conta com quarta capa de Beatriz Sarlo, para quem Selva Almada destaca-se no mapa da ficção por ser, não literatura urbana, nem sobre jovens, nem sobre marginais, mas uma literatura de província, regional frente às culturas globais, mas não uma literatura de costumes – ao contrário da literatura urbana que, diz Sarlo, tantas vezes é literatura de costumes sem ser regional.  Continue lendo

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matraca

Mundus Alter

3 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Leonilson

La Città Felice, ou A Cidade Feliz, é uma das primeiras utopias italianas, escrita em 1551 por Francesco Patrizi da Cherso (1529-1597), um dos protagonistas da fase de opúsculo do Renascimento italiano. A operetta foi escrita em Pádua, em 1551, e publicada em Veneza dois anos depois, reunida com outros escritos da fase de primeiros estudos do autor.

O autor foi incontestavelmente um dos maiores intelectuais do século XVI. Nascido em Cres, na atual Croácia, escreveu diversas obras, das quais se destacam o Trattato della Poetica, publicado em 1582, e o Della Retorica, em 1562.

Em sua cidade ideal, a cidade feliz, o amor reina e a reciprocidade, propaga-se. Diz o autor: […] a nossa cidade não deve ser infinitamente plena de pessoas, mas numa soma tal que, entre elas possam todas se conhecer, e feito melhor ainda, serão de várias sanguinidades e casais distintos. E de modo que o amor radical cresça e atinja uma perfeição tal, que faça fruto perfeito, quero que os convencidos públicos se nutram; os quais do público e no público se celebrem a cada mês pelo menos uma como era costume antigo do rei da Itália Italo, que antes de todos colocou este hábito em uso”Continue lendo

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Resenhas

Reflexões sobre o abuso estético

1 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Jean Galard, Beleza Exorbitante

[Editora Fap-Unifesp, 2012. Tradução de Iraci D. Poleti]

fotografia de Sebastião Salgado, de "Êxodos"

fotografia de Sebastião Salgado, de “Êxodos”

A partir da crítica que a exposição Êxodos, do renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, suscitou na França, o filósofo Jean Galard perpassa a história da arte para encontrar o cerne estético dos desdobramentos morais da obra de arte em geral, do ensaio-documentário fotográfico, em particular.

Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Que se insere na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção discutida no cenário filosófico francês contemporâneo por autores como Gilles Lipovetsky, Jean Serroy[1], Yves Michaud, Baudrillard.

O texto parte de um levantamento empírico – “Diante da realidade brutal” – e então retoma exemplos da história e da teoria da arte para introduzir a questão propriamente estética, e primeira, sobre a própria representação. Ao pensar sobre a estetização da dor, Galard põe em questão o papel da arte e de sua relação com a sociedade e seus valores. A reflexão que seu texto tece extrapola a questão fotográfica e a utiliza como base para abordar de maneira crítica a relação estética entre realidade e representação, mas tomada enquanto princípio de uma dinâmica sociológica da arte. A apreensão “sensacionalista” de uma “estética da fome”[2] caminha junto com a espetacularização da sociedade.

A própria intencionalidade do olhar é analisada de maneira crítica. O estatuto da imagem no mundo contemporâneo, negativo de um questionamento sobre o belo, embate-se necessariamente com uma discussão moral e ética.  Continue lendo

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Guia de Leitura

As ilhas

31 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A ilha tem sentidos metafóricos que vão da interiorização subjetiva mais profunda, à possibilidade de alcançar com a vista a totalidade dada a uma distância suficientemente grande.

Destino trágico dos resquícios de naufrágios, reduto de isolamento, lugar terrestre de intensa onipresença marinha e daquilo que ela tem de lúdica, inebriante e misteriosa.

 

Gilles Deleuze, "A ilha deserta"

Gilles Deleuze, “A ilha deserta”

O livro A ilha deserta é composto por uma sequência heterogênea de textos de Gilles Deleuze. São vários textos esparsos, publicados entre 1953 e 1974; pequenas pérolas, entre textos raros, resenhas, entrevistas, textos circunstanciais, depoimentos e conferências, há artigos luminosos sobre Bergson, Kant, Nietzsche, Hume, uma comovente homenagem a Sartre – “Ele foi meu mestre” –, uma conversa ensandecida sobre pintura –“Faces e Superfícies” – e o enigmático e belíssimo texto, inédito, que dá título ao volume, “Causas e Razões da Ilha Deserta”, que assim se inicia:

“Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranquilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe, distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem”. Continue lendo

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lançamentos

Remixes visuais

30 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

augusto de campos_outro

O poeta Augusto de Campos acaba de lançar um novo livro, Outro.

“Eu mordo o que posso”, diz o poeta. O livro traz, segundo sua introdução, “novos poemas, intraduções e outraduções (remixes visuais). Achei curioso e ao mesmo tempo estranho o uso dessa palavra em discos americanos e custei a me dar conta de que se tratava de um termo musical, uma palavra-valise que sai do ‘in’ para o ‘out’, revertendo o sentido de INTRO. E que indica a diferente performance de uma faixa anterior ou algum outro ‘bonus’ – um ‘extro’. Outro outro. Outradução, extradução? Seja o que for, gostei da palavra ambígua.”

Há, ao fim do livro, indicações de clip-poemas, que podem ser vistos na internet.

Tendo passado doze anos sem publicar seus poemas em livro, Augusto de Campos declarou:

“E é com este OUTRO, que pode ser também o último bônus de meu trabalho  poético, que ouso ex-pôr estes novos poemas. Sobrevivente, para o bem ou para o mal, não posso deixar de completar o que comecei, o quanto me for possível”.  Continue lendo

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Literatura

Por entre minúcias

27 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
garvura de Evandro Carlos Jardim

garvura de Evandro Carlos Jardim

Uma parte interessante dos méritos da literatura de Beatriz Bracher repousa no cuidado com os detalhes. No romance Antonio, a narrativa é tecida dos encontros de minúcias. A mesma história é contada por diferentes personagens ao protagonista, pontuada, assim, pelas nuances narrativas, desdobrada ao longo da coerência das personalidades das personagens, através de suas maneira de ver e contar suas versões. Detalhes de trejeitos de fala, de tempo de raciocínio. As personagens ganham realidade através da construção de seus raciocínios, numa narrativa polifônica, pontuada como que por tensões musicais.

Benjamim, o protagonista, na iminência de ser pai, descobre um segredo familiar e resolve inquerir os envolvidos, para saber como foi que tudo aconteceu. Três deles, sua avó, Isabel, Haroldo, amigo de seu avô, e Raul, amigo de seu pai, contam-lhe, então, suas versões dos fatos. Unindo estes fragmentos de memórias alheias, Benjamin reconstitui a história de sua família.  Continue lendo

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Guia de Leitura

Civilização e barbárie

24 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

São mesmo, estes termos, opostos e excludentes, ou complementares e, mesmo, necessários?

A discordância envolve profundas questões ideológicas e políticas, concernentes a distintas interpretações críticas da história e das dinâmicas sociológicas desenvolvidas em torno de uma ideia de civilidade que abarca valores morais, culturais e sociais.

A bárbarie é intrínseca, paralela ou anterior à civilização? Parte do próprio metabolismo da sociedade, ou seu avesso imprescindível?

 

Domingo Faustino Sarmiento, "Facundo ou civilização e barbárie"

Domingo Faustino Sarmiento, “Facundo ou civilização e barbárie”

Facundo foi escrito em 1845 por Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888). A obra é considerada fundadora da literatura argentina pelo pioneirismo na ruptura com a padronização europeia das letras. O livro, uma mistura de biografia, romance e ensaio político, tematiza a formação nacional, entre a civilização e a barbárie.

O autor parte da análise da peculiar natureza do pampa e das relações do homem com este meio para construir seu argumento. A natureza, para Sarmiento, ganha roupagem política: é um fator que condiciona significativamente o destino dos homens, a formação de seu caráter moral e as possibilidades da vida em sociedade. O cenário desértico do pampa opõe-se ao das cidades na medida e que a barbárie opõe-se à civilização.

Segundo ele, havia, antes do início do processo de independência argentina, duas formas de vida social diferentes, “rivais e incompatíveis”: “uma espanhola, europeia, civilizada, e a outra bárbara, americana, quase indígena”. Sem misturarem-se, os homens da cidade – locus por excelência da civilidade – conservaram e cultivaram os hábitos europeus, enquanto os homens do campo desenvolveram costumes e tradições próprios a uma vida defrontada com os desafios de sobrevivência próprios ao convívio com a natureza selvagem.

Porém, segundo Sarmiento, a barbárie do deserto, com a Revolução de 1810 e as guerras de independência, foi levada a penetrar as cidades e arrasar a “civilização”.

A expressão como colocada no título, civilização “e” barbárie, portanto, retrata a simultânea existência de dois países, um civilizado – uma Argentina branca, ilustrada, integrada com a Europa – da ilustração, dos brancos, da integração com a Europa – e um bárbaro – a Argentina do analfabetismo, dos mestiços, do isolamento. A clássica antinomia coloca, portanto, em jogo uma definição dos sujeitos constituintes do corpo político da nação, em conformidade às concepções de um projeto homogeneizador de Estado, nação e sociedade.

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lançamentos

O homem e a natureza

23 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Isaak Ilyich Levitan, 1892

Isaak Ilyich Levitan, 1892

A Companhia das Letras acaba de lançar a tradução feita por Rubens Figueiredo da novela A estepe – História de uma viagem, de Tchekhov.

Trata-se da primeira narrativa mais extensa do russo, então com 28 anos de idade e já reconhecido colaborador de jornais e revistas literárias, com suas prosas curtas.

O texto acompanha a viagem de um menino que parte para estudar em outra cidade e, para tanto, percorre por alguns dias a vasta estepe russa. Múltiplo, traça, através da experiência do protagonista, e aliada à rica descrição da paisagem natural, uma precisa interpretação sobre tipos humanos, sobre atividades econômicas e as relações sociais delas decorrentes. Percorre, assim, um panorama que atravessa mudanças de comportamento, individuais e coletivas.  Continue lendo

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