Novo lançamento de Giorgio Agamben no Brasil, O mistério do mal reflete sobre a renúncia do papa Bento XVI, interpretando-a através de uma articulação teológica e política, ao mesmo tempo que escatológica e histórica. O filósofo italiano encontra, sob sua análise, a problematização da crise da sociedade e das instituições contemporâneas, na qual é ponto crucial uma confusão entre legalidade e legitimidade. Sua reflexão também recai sobre o atual papel da Igreja. Continue lendo
Arquivo do autor:Isabela Gaglianone
Contemporâneo
“Os primeiros historiadores do cinema escreviam com a emoção de contemporâneos do nascimento de uma nova arte. Não somos propriamente testemunhas de sua morte, mas assistimos ao fim da conjuntura que acondicionou. Estamos na situação privilegiada de espectadores e personagens de um encerramento. Houve nascimento, desenvolvimento e morte de um cinema e seu público”.
O cinema no século, de Paulo Emílio Sales Gomes, traz uma coletânea de artigos sobre clássicos do cinema. Muitos dos textos aqui reunidos foram escritos para uma possível programação da então inciante Cinemateca Brasileira, cuja implantação foi fruto da concepção e do trabalho de Paulo Emílio.
O último capítulo traz reflexões gerais sobre o encantamento que o cinema exerceu no século XX e sobre sua tão inevitável quanto libertadora decadência. Ao longo dos outros ensaios, alguns dos cineastas que tem nesses seus trabalhos analisados são Sergei Eisenstein, Charles Chaplin, D. W. Griffith, Orson Welles, Federico Fellini e Jean Renoir. Os textos de Paulo Emílio são dotados de interpretações lúcidas e não só interessantes, como verdadeiramente esclarecedoras. Continue lendo
De paixões mesquinhas
Vida e destino, do russo Vassili Grossman (1905-1964), é considerado um épico moderno e uma análise profunda do mosaico, social e histórico, formado durante a Segunda Guerra Mundial. O autor, que esteve no campo de batalha e acompanhou os soldados russos em Stalingrado, descreve os campos de prisioneiros militares e os campos de concentração, os altos-comandos, com Hitler de um lado e Stálin de outro, a disputa insensata dos soldados por uma única casa na cidade em ruínas, e os dramas familiares daqueles que ficaram, e que tem que enfrentar o medo político e incerteza de toda sorte. Grossman retrata a sociedade soviética como um todo a partir da batalha.
O romance foi finalizado em 1960 e, então, confiscado pela KGB. Continuou, pois, inédito até a metade de década de 1980. Quando enfim conhecido pelo grande público, tornou-se celebrado como um dos romances mais importantes do século XX. Uma narrativa magistral sobre a Segunda Guerra, uma prosa de força dramática e histórica impactante.
Prosa alegórica
Nos pampas, em meio ao calor sufocante de fevereiro, sob a latente pressão do regime militar, um acontecimento inusitado desperta a narrativa: vários cavalos são assassinados, sem motivos aparentes ou explicações plausíveis, os corpos dos animais são encontrados, vítimas impotentes de tiros à queima-roupa.
Em Ninguém nada nunca, o argentino Juan José Saer narra de maneira oblíqua, reconhecível, mas não realista. Traça uma reflexão literária contundente sobre o mal-estar do homem no mundo, que perpassa a tensão e o mistério dos enigmáticos, e sobretudo alegóricos, abates dos cavalos.
Numa tradução inventiva do real, avessa à pura representatividade, a prosa de Saer aumenta a perceptividade simbólica do mundo e conserva no vazio as incompreensões milenares, irradiando-as, porém, ao infinito. Continue lendo
Eu, estranho, alheio
“Eu devia pouco a pouco mostrar-me o contrário daquilo que era ou supunha ser para esse ou aquele meu conhecido, depois de ter me esforçado para entender a realidade que me havia dado: necessariamente mesquinha, instável, volúvel e quase inconsistente”.
A Cosac Naify está repaginando parte de sua ótima coleção “Prosa do mundo”, sob o nome “Nova prosa do mundo”. Um dos livros reeditados é o primoroso Um, nenhum, cem mil, do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), que esteve esgotado durante algum tempo após sua quarta reimpressão, feita em 2010.
O romance foi a última obra publicada por Pirandello, notabilizado como grande dramaturgo, romancista e contista. É considerado o romance mais complexo do autor, uma especulação metafísica, que une, à sua prosa, poesia e humor. Seu protagonista, Vitangelo Moscarda, questiona sua identidade por um comentário de sua mulher, sobre seu nariz pender um pouco para a direita, coisa da qual Moscarda nunca havia se dado conta e que o leva a refletir de maneira alucinada: Continue lendo
Mundo escrito e mundo não escrito
“Escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós” – Italo Calvino.
A coletânea de artigos, enrevistas e conferências Mundo escrito e mundo não escrito, de Italo Calvino, acaba de ser lançada no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Maurício Santana Dias. Seus temas giram em torno de questões levantadas pelas relações entre vanguarda e tradição, de reflexões sobre a leitura, a escrita e a tradução, de comentários sobre a forma do romance: em suma, investigações sobre os significados da experiência literária. A delimitação movediça entre o mundo escrito e o não escrito marca um limite, tênue, entre o real e o que é possível através da linguagem.
Para Calvino, o mundo escrito, o texto, é em si um universo próprio. Relaciona-se com o mundo não-escrito, mas não de maneira espelhada. Continue lendo
Solilóquios eternos da lembrança
O legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai, revive o denso espaço de um dia, o mais importante da vida de Eszter, uma senhora que espera já muito pouco da vida. Ela e a criada, Nunu, ao receberem um telegrama de Lajos, anunciando que retornará à pacata aldeia depois de uma ausência de vinte anos, alarmam-se, com a forte presença da iminência de perigo. Sedutor, Lajos fizera promessas de amor que Eszter verdadeiramente correspondera, porém ele desposou sua irmã mais nova; falsificador de promissórias, fugitivo, capaz de mentir com lágrimas de verdade, ludibriara também aos pais e irmãos de Eszter, que entregaram-lhe quase tudo o que tinham.
Traduzido diretamente do húngaro por Paulo Schiller, o livro foi publicado em 2001 pela Companhia das Letras.
Crítica, história e literatura
Em Dois letrados e o Brasil nação – A obra crítica de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Arnoni Prado desenvolve uma interessante contraposição entre as trajetórias dos críticos e historiadores Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).
O livro, cuja publicação havia sido anunciada alguns anos atrás, acaba de ser lançado pela Editora 34. Nele, Arnoni Prado, para analisar os momentos e processos fundamentais na formação e consolidação da crítica literária brasileira, examina as vertentes lógicas mais atuantes na dinâmica cultural do Brasil: de um lado, arranjos retóricos conservadores, de outro, os movimentos críticos libertários.
Para a composição da reflexão que encaminha o livro, o autor imergiu na vida e na obra dos dois autores, acompanhando seus percursos intelectuais. Continue lendo
Insólito desconcertante
O cubano Virgilio Piñera (1912-1979) é considerado um dos mais autênticos escritores do continente americano. Sua prosa é marcada por um humor sarcástico, porém melancólico. Contos frios, publicado originalmente em 1956, reúne os temas que orientam sua obra literária, o absurdo, a angústia existencial, o humor negro.
Publicado no Brasil em 1989, o livro acaba de ser reeditado pela Editora Iluminuras, mantendo a tradução feita pela crítica e especialista na obra do cubano, Teresa Cristófani Barreto, professora do Departamento de Letras Modernas da USP. Continue lendo
Livros que tratam da história do riso e da história das reflexões sobre os seus desdobramentos intelectuais, morais e sociais
Ao longo dos séculos o homem tem teorizado de maneiras diferentes a função e as motivações do riso. Escárnio, zombaria, caricaturas, bufonaria tem sentidos críticos ácidos e profundos: o homem reflete enquanto ri, portanto a história do riso é também uma história das ideias.
O historiador Georges Minois em História do riso e do escárnio perpassa as diferentes utilizações, ao longo dos séculos, do riso e do humor pela humanidade. O autor pesquisa, assim, a relação entre o desenvolvimento humano social e psicológico e as formas de humor. Para ele, a exaltação ou condenação de formas de humor por determinadas épocas são indicativos de suas respectivas visões de mundo. Continue lendo
Textos para o nada
“Para onde eu iria, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, o que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu?”. O narrador de Textos para o nada, de Samuel Backett, relembra fragmentos de histórias e de lugares pelos quais passou, parado num charco, de onde consegue olhar para o céu: narra sem ter mesmo ao certo nada o que narrar.
Publicado em 1955, este livro radicaliza os experimentos feitos por Beckett na trilogia formada por Molloy (1951), Malone morre (1951) e O inominável (1953). Com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro e posfácio de Lívia Bueloni Gonçalves, o livro acaba de chegar às livrarias brasileiras, em edição cuidadosa da Cosac Naify. Continue lendo
O mundo é como o homem
“A cada febre benigna, cada náusea, cada acesso de tosse, eles o velavam como a um moribundo, acolhendo cada cura como um milagre que não haveria de se repetir, pois nada se esgota mais rápido que a improvável misericórdia de Deus.”
O sermão sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari, vencedor do Prêmio Goncourt 2012, é um romance cuja prosa, através de uma linguagem torturada – profundamente trabalhada –, desenvolve-se sobre reflexões filosóficas. Permeada pelos Sermões de Santo Agostinho (354-430), a obra é também histórica, criando um contraponto entre as catástrofes do século XX à decadência do Império Romano.
A narrativa tematiza a ausência e a decadência, através da história das escolhas e questionamentos pessoais de dois amigos, Continue lendo
Revoluções
“Estou convencido de que as fotos de revoluções – sobretudo se foram interrompidas ou vencidas – possuem uma poderosa carga utópica” – Michael Löwy.
Revoluções é uma compilação de fôlego, desenvolvida por Michael Löwy, dos principais registros fotográficos de processos revolucionários, do final do século XIX até a segunda metade do século XX. Além da documentação iconográfica, este interessante livro traz textos que narram os acontecimentos, escritos por intelectuais como Gilbert Achcar, Rebecca Houzel, Enzo Traverso, Bernard Oudin, Pierre Rousset, Jeanette Habel e o próprio Löwy. Continue lendo
Reportagem literária
“Seres humanos, com a ajuda de mulas, trabalhavam essa terra para que pudessem viver. A esfera de poder de uma só família humana e uma mula é pequena; e dentro dos limites de cada uma dessas pequenas esferas a essencial fragilidade humana, a chaga finalmente morta que é viver e a força indignada para não perecer, ergueram contra suas circunstâncias hostis esta casca de ferida, este abrigo para uma família e seus animais”.
Para a realização de uma longa reportagem para a revista Fortune, o repórter, ficcionista, poeta, roteirista e critico de cinema James Agee e o fotógrafo Walker Evans perpassaram as entranhas do sul dos Estados Unidos, em 1936, com o intuito de retratar os efeitos da Grande Depressão que devastava o país. Ao longo de quatro semanas, os dois conviveram intimamente com três famílias de trabalhadores rurais das fazendas de algodão do Alabama, para retratar suas condições de vida brutais e miseráveis.
A matéria nunca chegou a ser publicada na imprensa: tornou-se de uma vez livro. O texto foi reescrito, repensado e refinado ao longo dos anos seguintes e finalmente lançado em 1941 sob o título Elogiemos os homens ilustres. Continue lendo
Textos de intelectuais do séc. XX, sobre a fotografia como símbolo, signo, conceito
Levantamos aqui significativos ensaios sobre a fotografia, que a desdobram enquanto símbolos e signos de conceitos: aprofundamento em sua significância, artística e filosófica. O que define um intelectual, entre outros, é o caráter contemporâneo e abrangente de seu pensamento. Trata-se de uma constante renovação do interesse, pela qual a atualidade se reconhece em um passado longínquo, recupera-se no interior de ordem inusitada à vista desarmada. Pensamento que expande os horizontes da especialização e desdobra os elementos de suas análises em ricas metáforas conceituais, criando ramificações profundas, aptas a inaugurar questões, apontar problemas latentes, identificar percursos, iluminar relações.
Walter Benjamin é autor de dois dos mais citados ensaios sobre fotografia. “Pequena história da fotografia” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” encontram-se ambos no volume Magia e técnica, arte e política. As reflexões sobre a fotografia permitiram ao filósofo problematizar a noção de aura, bem como traçar a história das transformações irreversíveis da reprodutibilidade, responsáveis por transformar a obra de arte. A aura traduz a essência transcendente, inesgotável e distante da obra de arte, a distância intransponível do objeto artístico. A análise sobre a fotografia encaminha o desenvolvimento do conceito; a imagem fotográfica, como imagem técnica, suficientemente verossímil, feita a partir da realidade e apta à reprodutibilidade, inaugurou possibilidades interpretativas históricas, sociológicas e filosóficas. “Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho” [“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”]. Continue lendo