Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

Literatura

O cronista das cidades e das memórias

22 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura deste ano, o francês Patrick Modiano, é conhecido como o “arqueólogo da memória”. De acordo com a Academia Sueca, o prêmio foi dado a ele “pela arte da memória com a qual evocou os destinos humanos mais inatingíveis e revelou o mundo da ocupação nazista da França”. Sua prosa, ao longo de mais de trinta romances, concentra-se na cidade de Paris durante a Segunda Guerra Mundial, revivendo a vida francesa sob invasão alemã, a partir de personagens comuns.

Do mais longe do esquecimento atravessa a história de amor do protagonista narrador com uma mulher, Jacqueline, que, casada, porém reciprocamente apaixonada, com ele fugiu de Paris para Londres e, algum, tempo depois, desapareceu.

O livro é exemplar de uma das grandes características da prosa de Modiano: a vida que confere às grandes cidades, tornando-as, talvez mais que qualquer outro personagem, em suas verdadeiras protagonistas. São as próprias cidades que, em seus romances, articulam-se em movimento narrativo, enquanto as personagens são sombrias e enigmáticas.

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Literatura

Uma história ou uma bala na cabeça

21 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Flávio de Carvalho

Um dos convidados mais esperados da FLIP deste ano foi Etgar Keret, celebrado como a principal voz de sua geração e o grande renovador da literatura israelense neste início de século. Em junho deste ano pela primeira vez um de seus livros foi traduzido e publicado no Brasil. De repente, uma batida na porta confere um toque absurdo a uma prosa coloquial.

Keret é conhecido também como cineasta e autor de quadrinhos. Como escritor, tornou-se mundialmente renomado por seus característicos contos bem-humorados, desenrolados por situações próximas tanto ao fantástico quanto ao nonsense. Seu humor é lúdico e absurdo. Sua narrativa é direta, política sem ser partidária, moralista ou ideológica.

“Uma história ou uma bala na cabeça”, ameaça um homem barbudo a um escritor no conto que abre o volume. Sua exigência é clara: uma história curta, que não despeje, abrupto como um caminhão de lixo, realidade pura sobre pessoas que enfrentam dias difíceis e que desejam algo mais. O escritor, porém, mantém-se em plena paralisia criativa, pois justamente quando obrigado pelos homens armados a inventar uma história, ele é continuamente interrompido por batidas na porta. Cada uma vem acompanhada pela aparição de uma visita indesejada, cada qual com sugestões e exigências para a história. “Aposto que coisas como esta nunca aconteceriam com Amós Oz ou David Grossman”Continue lendo

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Literatura

Politicamente irônico

20 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Honoré Daumier

Vencedor do Prêmio Jabuti deste ano, o romance Reprodução, de Bernardo Carvalho, é uma crítica ácida e contundente à reprodutibilidade de informações inócuas e à superficialidade do prestígio pessoal que são possibilitadas pela internet. Uma narrativa forte, ácida e instigante, que traz à tona profundas questões morais, latentes no mundo contemporâneo.

O protagonista é o estandarte da questão: trata-se de um homem, “o estudante de chinês”, totalmente preconceituoso, que, dono de um um ethos reacionário, é leitor de revistas fúteis e esbanja um conhecimento enciclopédico – melhor dizendo, wikipédico. Cada qual das outras personagens, todas muito bem construídas, buscam suas identidade e sentido de vida. Ao estudante de chinês, o mundo, submerso no que lhe parece um delírio – envolvido repentinamente com a Polícia Federal ao tentar embarcar para a China -, deixa de ter um sentido maior. É o próprio conflito das versões de realidade que entra em questão.

Entremeadas, as “reproduções” contemporâneas – do discurso da imprensa aos sites da internet, da reprodução sexual à própria imitação da vida.  Continue lendo

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lançamentos

Un coup de dés

17 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Mallarmé, por Gauguin.

O poema Um lance de dados, de Mallarmé, ganhou nova tradução, realizada por Álvaro Faleiros e publicada pela Ateliê Editorial. O tradutor procurou estabelecer um diálogo com a miríade de trabalhos dedicados ao poema, em especial a consagrada tradução feita anteriormente por Haroldo de Campos [Perspectiva, 1977], que apresentou de maneira especial Mallarmé ao público leitor brasileiro. A cuidadosa edição, bilíngue, conta com um texto de apresentação da proposta de tradução, escrito por Faleiros – seu percurso concentra-se no aspecto tipográfico do poema, o que desconsidera, em parte, áreas das subdivisões prismáticas que permeiam o texto. O volume traz também uma leitura crítica do poema realizada por Marcos Siscar, bem como o prefácio, que acompanha o poema desde sua primeira edição, introduzido por Mallarmé e seguido do pedido do autor para que, logo após sua “inútil leitura”, fosse pelos leitores esquecido. Paradoxalmente, o prefácio é um verdadeiro programa da “nova arte” poética inaugurado pelo poema. Nesse prefácio, Mallarmé avisa: a diferença “de caracteres de impressão entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita a importância de sua emissão oral”.

Um lance de dados, longo poema de versos livres e tipografia revolucionária, desempenhou um papel fundamental na evolução da literatura no século XX.

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Literatura

Entre imigrantes e forasteiros, uma fuga lúdica

16 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Hanói, desenho de Manolo Lopez Carrillo

Hanói, romance de Adriana Lisboa, é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano. Trata-se de uma narrativa tocante sobre deslocamentos, sobre o transitório, sobre a miscigenação cultural. A história desenvolve-se no encontro inusitado entre duas personagens díspares, porém com uma história comum: ambos imigrantes lutando cotidianamente por sua sobrevivência nos Estados Unidos, contornando as adversidades culturais e a sutil xenofobia que permeia suas vidas, vivendo em meio a uma mescla de hábitos e culturas, num mosaico de identidades. A narrativa de Adriana Lisboa tece uma história de amor, de renúncia, de escolhas que calam profundamente nas vidas daqueles que as envolvem.

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matraca

Forma-de-vida

15 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Nós jamais chegaremos a perceber o que se passa hoje em dia sem compreender o fato de que o capitalismo é na verdade uma religião” – G. Agamben.

São Francisco de Assis, por Giotto.

Altíssima pobreza, de Giorgio Agamben, dá prosseguimento e às reflexões e análises iniciadas em obras anteriores e debruça-se sobre o universo sacerdotal, reconstruindo a genealogia de uma forma-de-vida, “uma vida que se vincule tão estreitamente a sua forma a ponto de ser inseparável dela”. Sua argumentação funda-se na ampla análise do legado mais precioso do franciscanismo – ao qual a história ocidental inúmeras vezes voltou-se como sua tarefa indeferível –, a concepção de vida que não se encaixa em vínculos de propriedade, que não é sujeita à posse, somente ao uso comum. Agamben parte de uma leitura profunda do monasticismo ocidental, de Pachomius a São Francisco, reconstruindo em detalhe a vida dos monges. O filósofo defende a tese de que a verdadeira novidade do monasticismo não encontra-se na indistinção entre vida e norma, mas na descoberta desta concepção, em que “vida”, talvez pela primeira vez, foi afirmada em sua autonomia; convepção a partir da qual a alegação da “altíssima pobreza” e do “uso” desafiam e emancipam-se da lei.

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fotografia

Filósofos, historiadores da filosofia, comentadores filosóficos franceses do século XX que pensaram a fotografia conceitualmente

15 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A fotografia tomada como objeto de reflexão ou como argumento desdobra-se: como índice, como símbolo, como dispositivo, como representação de valores, como formadora de padrões de gosto e de beleza.

Enquanto conceito, ideia, ou mesmo argumento, a fotografia é rica questão propulsora para problematizações de cunho não só estético, mas também moral, social, ético e político.

 

Jean-Marie Schaeffer, “A imagem precária” [livro raro, disponível apenas em sebo e em espanhol]

Jean-Marie Schaeffer, em A imagem precária: Sobre o dispositivo fotográfico, investiga as modificações, decorrentes do advento das imagens fotográficas, das relações epistemológicas do homem com o mundo e com a realidade. Segundo ele, o signo fotográfico é resultado de uma inversão conceitual: dividida entre sua vocação documental e sua expressão ficcional, a fotografia é um ícone, nunca destituída da subjetividade autoral. Ela não se resume, portanto, à captação do real, mas é atualização e transformação do real, concilia documentação e expressão. É, a um só tempo, artefato e objeto que desempenha uma função estética enquanto obra de arte, intencionalmente ou não.

Em seu conteúdo icônico, a fotografia representa o objeto intermediando sua própria objetividade entre as inclinações culturais do receptor e a intencionalidade do fotógrafo: “Se o conhecimento e o objetivo podem com efeito motivar a tomada da impressão, mesmo assim jamais são transferidos na imagem: esta não é sua “ilustração” nem sua “codificação comunicacional”. O interpretante, mesmo se quisesse, não conseguiria “reencontrar” o conhecimento lateral e a intencionalidade do fotógrafo, não importa quanto se esforçasse para perscrutar a imagem”. Schaeffer portanto retoma a velha noção da fotografia como imagem análoga ao mundo visível, semelhante ao ícone peirceano, para investigar a relação direta entre a imagem e seu referente real. Segundo ele, a imagem é ficcional, estabelece uma fantasia lúdica por meio da qual passa a funcionar. Sua ficcionalidade baseia-se em um tripé composto por similitude – expressão de uma relação de identidade com o que é representado –, imitação – sua relação parcial com o que representa – e fantasia – relação de modificação com o representado, através da criação de um universo imaginário.

 

Jean Baudrillard, “O paroxista indiferente”

Jean Baudrillard é conhecido sobretudo pela ironia de seus textos e pelo desenvolvimento da noção de hiper-realidade. Segundo ele, a compreensão contemporânea de realidade é permeada por símbolos e simulacros, que tornam a realidade uma simulação de si mesma, uma hiper-realidade. As simulações e os simulacros não são apenas abstrações fictícias, mas representações da realidade, feitas a partir de vestígios imaginários desta mesma realidade. Partindo de uma reflexão sobre os sentidos da imagem, da fotografia à publicidade, Baudrillard chega à crítica da sociedade de consumo, constatando a perda da relação do sujeito com o objeto. O real, segundo ele, desapareceu, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes, as imagens tornaram-se paulatinamente tão repletas de conteúdo, que passaram de símbolos a coisas reais. A fotografia, neste processo, ao lado da televisão, tem, como função primordial, a produção de imagens que invertem os valores de realidade, passando de representações à substiuição do próprio real. A fotografia, enquanto produtora de imagens, especulariza o real. Sua imagem, como simulacro de simulação, a imagem de alta definição absorve o real e o assume, fazendo coincidir em si a realidade e a sua representação.

Suas reflexões sobre fotografia enquanto imagem especular encontram-se em muitos de seus livros. Segundo sua indicação, em entrevista, parte fundamental delas está reunida em O paroxista indiferente, livro que é quase um enigma do real e do irreal; um de seus capítulos, intitula-se, ironicamente, “A fotografia é muito bela, mas não se deve dizer isso”.

 

Lyotard, “A condição pós-moderna”

Lyotard foi um dos primeiros intelectuais a desenvolver o conceito de pós-modernidade, que, para ele, caracteriza-se pelo fim de um discurso universal, substituído pela construção do saber a partir de vários discursos, ou relatos, em jogos de argumentos e contra-argumentos, “o saber pós-moderno não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguça nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável”. É neste sentido que ele também compreende as técnicas mecânicas e industriais de comunicação, as artes e as novas tecnologias de imagens. No livro A condição pós-moderna, Lyotard analisa as relações da pintura com a fotografia e encontra, sob a problematização do realismo, a própria arte colocada em questão. A arte enquanto documentação não pode alcançar o realismo que consegue a fotografia. Para o filósofo, o advento da fotografia significou ao mesmo tempo a realização e a clausura em relação ao programa metapolítico de ordenação do visual e do social. Lyotard, partindo da ideia kantiana do juízo de gosto como um sentimento comum, juízo, este, livre e desinteressado. Porém, ele ressalta que a fotografia, bem como os objetos estéticos estabelecidos pela dinâmica de produção e consumo do mundo capitalista, opõem-se a essa liberdade. Os próprios processos de fabricação produzem imagens belas, sem, contudo, corresponderem ao critério de liberdade de juízo, sujeitos a uma programação, estabelecida por conceitos determinados. A fotografia, enquanto produtora de imagens belas – demasiadamente belas, segundo ele – está submetida a uma dialética negativa. Lyotard não desvincula a fotografia da pesquisa industrial que produz seus equipamentos e suas respectivas qualidades técnicas, resultado de uma massa de fatos.

 

Philippe Dubois, “O ato fotográfico”

O ato fotográfico, de Philippe Dubois, no Brasil é um dos mais citados livros entre os interessados em pensar a fotografia. Define a fotografia não apenas como uma imagem, mas como um ato indicial, utilizando o conceito de índice conforme formulado pela semiótica peirciana. Segundo ele, a fotografia é substancialmente uma imagem-ato, um ato irônico, que, através de um meio mecânico óptico-químico, implica ontologicamente os sujeitos produtores e receptores da imagem final.

Ao longo do livro, Dubois reconhece a fotografia como espelho transformador do real e, dele, interpretativo. A fotografia seria um fragmento espaço-temporal da realidade, “eminentemente codificada (sob todos os tipos de ponto de vista: técnico,cultural, sociológico, estético etc)”. Indicial, a fotografia resguarda em si traços da realidade, por sua condição de contigüidade, mesmo fisicamente, pois plasma em testemunho o instante ínfimo, no ato fotográfico, em que não mais o olho humano atua, sobreposto momentaneamente sobre efeito da luz que é refletida pelo objeto e toca a película sensível.

Trata-se da investigação sobre a nova relação entre representação e real, que foi inaugurada pela fotografia. Dubois analisa a lógica do índice enquanto expressão artística, sugerindo sua ambivalência, pois que tanto conseqüente como propulsora.

 

Jean Galard, “Beleza exorbitante”

Jean Galard diz que as reflexões desenvolvidas em Beleza exorbitante foram-lhe despertadas após ter visto a exposição de fotografias de Sebastião Salgado “Êxodos”. Galard pensa sobre a estética da arte, questionando a possibilidade de beleza no horror, na violência e na miséria e, também, as consequências de sua exibição, se combativas ou complacentes. Ele analisa, assim, os códigos da imagem no mundo contemporâneo, pontuando historicamente as sutilezas da relação entre beleza e horror. À época da exposição de “Êxodos” em Paris, em 2000, Salgado foi alvo de críticas pela “excessiva beleza” de suas fotos, que documentam pessoas fugindo da miséria, percurso em que arriscam suas vidas; entre povos fotografados há sudaneses, bósnios, afegãos, curdos do Iraque, ruandeses, entre outros. Segundo Galard, “a ampliação do campo da percepção estética normalmente suscita reprovação. Em alguns lugares, diante de certas cenas, a atenção estética, por parecer sem propósito, é tida como um abuso escandaloso”. Essa questão irradia outras; Galard tece uma reconstituição histórica da fotografia na arte e da definição e retratos, da qual exclui as fotografias em questão. Ele cita outro artista brasileiro, Glauber Rocha, e seu manifesto “Estética da fome”, em que o cineasta põe em questão a contextualização cultural da recepção da obra – o cinema novo, para um espectador europeu seria “um estranho surrealismo tropical”, ao passo que, para a maioria dos brasileiros, “miserabilismo e uma vergonha nacional”. A recepção crítica não é desvinculada do ponto de vista. Especialmente quando se trata de interpretar um suposto abuso estético, uma “espetacularização” da beleza nas catástrofes humanas.

Galard escreve desenvolve uma reflexão complexa de maneira extremamente clara, problematizando, no tênue limite entre beleza e desgraça, o sentido ético da representação. Seu livro não é sobre a fotografia, mas a utiliza como meio reflexivo irradiador estético e moral.

 

 

Em meio à semiótica e a relação entre símbolos, ícones e índices; à moral latente à estética; à produção cultural inserida em uma lógica mercantil-industrial como exemplar da dinâmica capitalista pós-moderna; à especulação e a espetacularização. A fotografia, como diria Bourdieu, no texto capital ao assunto – Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie [Ed. de Minuit, 1981], sem tradução para o português – cria as funções que cumpre enquanto agente social multiplamente simbólico, ainda que sejam ilusões, devaneios, ou meras ficções.

 

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lançamentos

O difícil acomodar-se à condição humana

14 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Sei que neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de driblar entre aspas desintegração contínua das minhas entranhas”.

pintura de Nikiforos Lytras, Antígona frente ao falecido Polinices (1865)

Os piores dias de minha vida foram todos, novo livro de Evandro Affonso Ferreira, fecha a sua trilogia do desespero, iniciada por Minha mãe se matou sem dizer adeus [Record, 2010] e O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam [Record, 2013].

A forte narrativa do livro é conduzida pelo diálogo imaginário da narradora: uma mulher que, em um leito de UTI, delira que caminha nua pelas ruas da metrópole e cita Antígona, de Sófocles. Em meio ao seu alucinante solilóquio, a desesperançada personagem observa a vaidade humana enquanto relembra suas perdas e a relação com o amigo escritor falecido.

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Literatura

Ainda, o mais complexo romancista da Amazônia

13 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Eu digo tão simplesmente: é a farinha d’água dos meus beijus (sic). Sou um também daqueles de lá, sempre fiz questão de não arredar pé de minha origem e para isso, ou melhor, para arredar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. A esse pessoal miúdo que tento representar nos meus romances chamo de aristocracia de pé no chão” – Dalcídio Jurandir.

Fotografia de Pedro Martinelli

Chove no campos de Cachoeira foi publicado a primeira vez em 1940. O romance de Dalcídio Jurandir (1909-1979) é marcado pela expressiva força narrativa. Influenciado pela segunda geração do romance modernista brasileiro, reconstitui o universo amazônico, através da descrição de vivências regionais, apropriando-se da oralidade cotidiana para explorar aspectos singulares da articulação entre os contextos humano e geográfico. As elaborações linguísticas típicas e suas imagens, bem como os aspectos culturais e mesmo as concepções sociopolíticas que resguardam, atravessam toda a prosa de Dalcídio Jurandir.

É pena que seja atualmente um autor esquecido. O conjunto de sua obra, contendo títulos como Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), ganhou, em 1972, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.

Segundo Benedito Nunes, no ensaio “Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco”, o chamado “Ciclo do extremo norte” de Dalcídio, é “enxerto da introspecção proustiana na árvore frondosa do realismo” e “afasta-se, graças à força de auto-análise do personagem e à poetização da paisagem, das práticas narrativas do romance dos anos 30, com uma certa constrição do meio ambiente e da tendência objetivista documental, afinadas com a herança naturalista”Continue lendo

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Guia de Leitura

Artistas plásticos brasileiros contemporâneos que escrevem romances, prosa em contos, versos em prosa.

11 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A literatura dialoga naturalmente com as artes plásticas, ao passo que ambas criam imagens e narrativas que desenham diferentes sentidos, desvendam e suscitam inusitadas relações. As imagens, entre economia verbal e objetividade, criam correspondências ricas entres o que as palavras dizem e o que os olhos vêem. Um artista plástico que escreve literatura tem à mão a possibilidade de intercalar ambos os trabalhos.  

 

Nuno Ramos, “Ó”

Nuno Ramos, principal referência contemporânea brasileira quando se pensa em artista plástico escritor, cria uma fantasia rapsódica com seu Ó. Vertiginosamente, seus capítulos compõem um labirinto em torno desta letra palavra tão ambivalente, por vezes quase material, num dedo que aponta, ou substantivada, para expressar desdém, ou como prelúdio a uma resposta inesperada e não convencional. Ó: uma palavra quase corpórea, quase sempre indicial. Encabeçado por ela – que mesmo só é palavra na medida em que compreendida num contexto cultural popular –, o livro de Nuno Ramos é sensorial.

 

Alberto Martins, “Lívia e o cemitério africano”

No livro Lívia e o cemitério africano, o artista Alberto Martins criou uma composição de capítulos curtos que tanto se completam quanto se contrapõem bruscamente, criando, na passagem e no confronto entre eles, novas possibilidades de leitura e, entre eles, inseriu dezesseis páginas de xilogravuras, em momentos cruciais da narrativa, que desempenham a mesma função ambivalente.  A movimentação das histórias reverberam nos passeios das personagens, uma metalinguagem da própria dificuldade de estabelecer verdades internas. Em seus trabalhos, Alberto Martins consegue que as expressões literária e plástica preservem suas autonomias, apesar de se impregnarem mutuamente. Nos poemas, nas gravuras e nos romances – e principalmente nos seus encontros – Alberto Martins trabalha quase no limite da sugestão.

 

Giselda Leirner, “Naufrágios”

Giselda Leirner, em Naufrágios, constrói um livro de fragmentos e destroços de história. Nesta coletânea de contos, fragmentos de vida escritos na primeira pessoa, autora, narradora e protagonistas muitas vezes se confundem, amalgamam-se ao mesmo tempo que são estranhas a si mesmas, sombras de sombras: simbolizam o esquecido e recalcado e encaminham ficção e realidade a mostrarem-se inextricáveis. A escritura e a vida duplicam-se mutuamente, e somos lembrados disso ao longo do livro, uma metaliteratura, a movimentar sentidos de existência. A escrita é uma roupa mortuária, que conserva a existência; de uma vida que naufraga, restam as palavras, concretudes de nostalgias.

 

Fernando Vilela, “Lampião e Lancelote”

 

O pintor e xilogravurista Fernando Vilela é também autor de contos infantis, como o belíssimo Lampião e Lancelote, publicado pela CosacNaify, vencedor do prestigioso prêmio Bologna Ragazzi, menção honrosa conferida na Feira do Livro de Bolonha. Esta obra extremamente original mescla linguagens diversas: verso, na sextilha do cordel sertanejo; prosa, no tom das narrativas épicas da cultura medieval; carimbo e xilogravura.

 

 

Livros polimórficos, que desdobram o caráter mágico da linguagem e resguardam em si o reino dos simulacros e dos reflexos – enquanto simulacro, a linguagem é o próprio símbolo da materialização da ideia, plasticidade que interioriza as condições de realidade vivida, ou como diria Deleuze, “é a instância que compreende uma diferença em si”.

 

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fotografia

Fotógrafos que escreveram livros sobre fotografia.

10 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O fotógrafo que escreve sobre fotografia nos revela parte da intimidade intelectual que o movimenta. Sua proximidade com aquilo sobre o que disserta parte de uma autonomia singela do autor à autoridade formal do produtor, resguardando um conhecimento empírico e que encontra em si mesmo sua finalidade.

É como se suas afirmações fossem provadas – positiva ou negativamente – pois despertadas no seio de um processo produtivo. Como disse Cartier-Bresson, “é necessário alcançar, trabalhando, a consciência do que se faz”.

 

Gisèle Freund, “La fotografía como documento social”

La fotografía como documento social, da fotógrafa e estudiosa da fotografia Gisèle Freund, é um trabalho profundo que, publicado originalmente em 1974 – sob o título Photographie et Societé –, foi base para o desenvolvimento da reflexão sobre fotografia como conceito. Freund pensa a fotografia à luz de sua história sociológica, política e artística. Mais do que simples técnica, a fotografia é aqui interpretada como elemento singular de conhecimento, localizada no entroncamento entre informação e arte.

“Cada momento histórico presencia el nacimiento de unos particulares modos de expresión artística, que corresponden al carácter político, a las maneras de pensar y a los gustos de la época. El gusto no es una manifestación inexplicable de la naturaleza humana, sino que se forma en función de unos de unas condiciones de vida muy definidas que caracterizan la estructura social en cada etapa de su evolución”.

 

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Pierre Verger, “50 anos de fotografia”

As fotografias de Pierre Verger são narrativas condensadas, que de certa forma pairam: nelas, há um movimento infinito plasmado, pois ecoam, em si, a captação profunda e imediata do âmago das culturas que registram, culturas inteiras encarnadas em olhares, gestos, cenas – precisos e líricos. 50 anos de fotografia é um livro que traz o rico texto de Verger: as culturas captadas em imagens traduzidas em palavras como um testemunho de vida, um diário de viagem e um documento histórico, simbolicamente arqueológico e profundamente antropológico.

Rememorando sua trajetória, ele contextualiza as fotos e, com a vantagem da distância de anos, analisa seus momentos de amadurecimento fotográfico. Ele conta, por exemplo, que, apesar de inicialmente seduzido “pela extraordinária nitidez dos detalhes que sobressaíam nas fotos tiradas de tão curta distância” que lhe permitiam “valorizar o contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de uma onda vindo morrer na areia granulosa de uma praia”, entre outros detalhes, nas primeiras páginas do livro lembra: “Só tirei esse tipo de fotografia durante a minha primeira excursão, na qual percorri mil e quinhentos quilômetros a pé na Córsega. Felzmente, meu gosto evoluiu e passei a dirigir um olhar menos míope sobre o mundo nos anos que se seguiram”.

 

Boris Kossoy, “Realidade e ficções na trama fotográfica”

Realidades e ficções na trama fotográfica, do fotógrafo Boris Kossoy, reúne interessantes ensaios sobre os mecanismos intelectuais que orquestram a construção da representação, do signo e da interpretação. Há, segundo o autor, uma qualidade inerente à imagem fotográfica: a materialização documental, que embasa sua ambigüidade enquanto documentação e representação.

Um tema encaminha sua movimentação argumentativa: o papel da intencionalidade ideológica na fotografia e no documento fotográfico, reflexão pela qual ele desenvolve questões sobre arquivos, memória e reconstituição histórica, questionando o caráter de credibilidade e veracidade que a fotografia possui enquanto registro do real e mostrando o que o olhar fotográfico é necessariamente interessado.

“O signo, por um lado, é produto de uma construção/invenção, enquanto que a interpretação, não raro, desliza entre a realidade e a ficção. Tratam de processos de construção de realidades”.

 

Milton Guran, “Linguagem fotográfica e informação”

O fotógrafo e antropólogo Milton Guran, no livro Linguagem fotográfica e informação, investiga o que faz a contundência de uma imagem fotográfica. Ao desenvolver o conceito de “foto eficiente”, situa sua reflexão em um entroncamento ético e estético. Pensando a evolução técnica da fotografia e dos equipamentos fotográficos, bem como seus usos, quer artísticos, quer documentais tanto informativos como midiáticos, ele baseia sua argumentação na análise dos processos de significação da própria linguagem fotográfica, deduzindo-os a partir da identificação dos meandros simbólicos da composição da imagem.

Para Guran, “fotografar é efetivar um reconhecimento antecipado: aquilo que é visto não pode mais ser fotografado, porque já passou”. Os desdobramentos formam uma rede discursiva, que inclui funções estratégicas, engajamento político, relações de poder, proposições filosóficas. A problemática temporal é intrínseca à concentração de potencialidades lingüísticas e significativas encerrada em uma imagem fotográfica. De acordo com o autor, a própria “composição fotográfica tem como finalidade dispor os elementos plásticos percebidos através do visor para conferir significado a uma cena”.

 

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Henri Cartier-Bresson, “O imaginário segundo a natureza”

Henri Cartier-Bresson escreveu alguns significativos textos sobre fotografia. O imaginário segundo a natureza é a primeira publicação que reúne os mais conhecidos e comentados deles em um único volume. Figuram, entre os textos selecionados, o certeiro “O instante decisivo” e o belo “Os europeus”. Há também artigos em que Bresson discorre sobre suas viagens a Moscou e China, textos que carregam a intensidade dos trabalhos fotográficos decorrentes. Outros artigos são dedicados a artistas que foram seus amigos, como André Breton, Alberto Giacometti e Jean Renoir.

Bresson aponta uma ambiguidade essencial na fotografia, despertada pela concepção de que fotografar “é, num mesmo instante e numa fração de segundos reconhecer o fato e a organização rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem e significam este fato”.

“O aparelho fotográfico é para mim um caderno de croquis, instrumento da intuição e da espontaneidade, o mestre do instante, que em termos visuais, questiona e decide ao mesmo tempo. Para “revelar” o mundo, é preciso sentir-se implicado no que se enquadra através do visor”.

 

 

Não tratamos aqui de livros técnicos sobre fotografia, mas de textos que exploram suas dimensões sociais, investigativas, lúdicas.

As reflexões dos fotógrafos sobre a fotografia situam-se dentro das relações históricas, estéticas e políticas que o objeto fotográfico estabelece com o mundo – que lhe é alteridade espelhada.

O trabalho escrito sobre fotografia dá ao fotógrafo um tempo diferente de desenvolvimento reflexivo, que não busca o instante decisivo, senão seus múltiplos desdobramentos.

 

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Literatura

Abomino a verdade da vida, a cópia da vida

10 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Odilon Redon

Segundo Macedonio Fernández, não há dúvidas de que as coisas não começam. Ao menos, não começam quando são inventadas: o mundo foi inventado antigo. O fabuloso Museu do Romance da Eterna parte desta ideia como premissa.

No Brasil, o livro foi lançado em 2011. Fora publicado na Argentina em 1967, apenas após quinze anos da morte do autor. Desprestígio literário de compreensão inconcebível: Borges o chamava “meu mestre” e a prosa argentina do século XX, como um todo, teve na originalidade de Macedonio Fernández, sua maior referência.

O romance começou a ser escrito em 1904 – Macedonio tinha então trinta anos de idade – e continuou até o final da vida do autor, em 1952. A narrativa desenrola-se a partir de uma série de prólogos, precedentes a uma história que parece nunca chegar: trata-se da história de um homem que, ao ficar viúvo, decide deixar a cidade e refugiar-se no campo, em uma estância de nome “O Romance”.

O inacabado, nesta obra inclassificável, é a chave que abre a literatura à modernidade.

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fotografia

Ficção documental

9 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O signo, por um lado, é produto de uma construção/invenção, enquanto que a interpretação, não raro, desliza entre a realidade e a ficção. Tratam de processos de construção de realidades”.

fotografia de Boris Kossoy

Realidades e ficções na trama fotográfica, do fotógrafo Boris Kossoy, reúne interessantes ensaios sobre os mecanismos intelectuais que orquestram a construção da representação, do signo e da interpretação. Há, segundo o autor, uma qualidade inerente à imagem fotográfica: a materialização documental, que embasa sua ambigüidade enquanto documentação e representação. Esta é a primeira obra da trilogia de Kossoy publicada pela Ateliê Editorial – composta também por Fotografia e História e  Os tempos da fotografia – O efêmero e o perpétuo. Em seu conjunto, os três livros são representativos de diferentes linhas de pesquisa desenvolvidas pelo autor, pelas quais analisa os fundamentos estéticos próprios da fotografia.

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Literatura

Pequenos episódios, um bocado bizarros

8 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Paul Klee

Matteo perdeu o emprego, romance do português Gonçalo M. Tavares, é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano. A narrativa, fragmentada, é ao mesmo tempo uma ficção e um ensaio sobre esta ficção, com notas explicativas a respeito dos temas apresentados. O livro é, assim, dividido em duas partes: uma, a reunião de vinte e seis fragmentos, nomeados de acordo com o nome de cada personagem que os protagoniza, organizados em ordem alfabética: Aaronson é um homem que diariamente, durante anos, caminha por meia hora passando por uma rotatória, até o dia em que muda o sentido de seu trajeto e é atropelado; a narrativa passa para Ashley, o homem que o atropelou, deste para Baumann, e assim sucessivamente até o Matteo que perde o emprego que dá nome ao título, cuja história, por sua vez, encontra-se com a de outra personagem, Nedermayer, que remete ao princípio do romance, embora não chegue a fechar um círculo com o Aaronson inicial. A segunda parte do livro, intitulada “Notas sobre Matteo Perdeu o Emprego”, faz as vezes de um posfácio crítico, em que o autor reflete sobre temas e recursos usados  na narrativa, como, por exemplo, a arbitrariedade da ordem alfabética.

Um livro engenhoso, reflexivo. Encadeado por inusitados pormenores comuns, é profundamente lúdico.  Continue lendo

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matraca

avança o tempo pelas têmporas?/

7 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Juan Gelman

O argentino Juan Gelman é considerado um dos mais importantes poetas de língua espanhola. Faleceu em janeiro deste ano, com 83 anos de idade, deixando uma poesia excepcional. Ganhou o Prêmio Cervantes, o mais importante da literatura em língua espanhola, em 2007, pelo “compromisso com a realidade” que sua obra honra, integrando, em seu pensamento poético, a “sua terrível história pessoal”.

Isso é uma das raras publicações de sua poesia no Brasil, livro traduzido por Leonardo Gonçalves e Andityas Soares de Moura e publicado há dez anos pela editora da UNB, como parte integrante da boa coleção Poetas do mundo. Não se trata de uma coletânea; o autor o havia publicado sob o título Interrupciones II, reunião, além deste, também dos livros Bajo la lluvia ajena (notas al pie de una derrota)Hacia el sur e Com/posicionesContinue lendo

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