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Guia de Leitura

Antropologia das religiões

5 outubro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Todos os sistemas, seja culturais, científicos, políticos, econômicos e até artísticos, que se apresentam como portadores exclusivos da verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos” – BOFF, Fundamentalismo – A globalização e o futuro da Humanidade.

Pensando amplamente nesta consideração de Leonardo Boff, levantamos alguns estudos antropológicos sobre religiões – ou que sirvam como apoio teórico para reflexões antropológicas.

O interesse pelos mitos, ritos de iniciação, pela religião e pela magia foi uma constante na antropologia francesa do século XX, e se mantém consideravelmente estável até hoje. Uma antropologia da religião, partindo de uma reflexão sobre a humanidade e sobre a cultura como realidades complexas, busca compreender como o ser humano foi e continua sendo visto, por ele próprio, através de uma das suas mais significativas manifestações, a religião. Não se trata de fazer uma análise de cada uma das religiões, mesmo aquelas mais conhecidas: a Antropologia da Religião desenvolve análises científicas do fenômeno religioso, enquanto experiência antropológica, essencialmente humana.

Para a antropologia, a religião não é um modo arcaico do pensamento científico; é, ao contrário, um espaço distintivo da prática e da crença humanas que não pode ser reduzido a nenhum outro. Disso parece seguir que a essência da religião não deve ser confundida com, digamos, a essência da política, ainda que em muitas sociedades as duas possam se sobrepor e se entrelaçar.

 

Mircea Eliade, “Imagens e símbolos”

Nosso guia de antropologia inicia-se com o livro de um historiador, ligado comumente à chamada fenomenologia da religião. O romeno Mircea Eleade, nas análises desenvolvidas ao longo de sua obra, desvenda os pontos de apoio que permitem ao indivíduo e aos grupos humanos equilibrarem-se e assegurarem seus pensamentos em meio aos movimentos da sua experiência. Em Imagens e Símbolos, o autor reivindica a função fundamental do imaginário e do simbólico para a vida e a cultura.

“O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta, do desequilibrado; ele é consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade –os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, o seu estudo nos permite conhecer o homem, o homem simplesmente”.

O símbolo cumpre sua função ao transmitir uma mensagem, mesmo que seu significado escape à consciência, ou seja modificado, camuflado, pois o símbolo, diz Eliade, dirige-se ao ser humano integral e não apenas à sua inteligência. A principal característica do símbolo é a simultaneidade de sentidos por ele revelados, que podem inclusive ser compreendidos em qualquer cultura. Os símbolos e as imagens têm valências universais porque são “aberturas para um mundo trans-histórico, conservando as culturas ‘abertas’. Ao mesmo tempo, apesar de serem produtos do inconsciente, são depurados no processo histórico e cultural em que estejam inseridos”. A história, diz, pode fazer com que sejam acumuladas novas significações à estrutura original do simbolismo, mas não a destrói. Ao tornarem-se símbolos, os objetos “anulam seus limites concretos, deixam de ser fragmentos isolados para se integrar num sistema, ou melhor, eles encarnam em si próprios, a despeito de sua precariedade e do seu caráter fragmentário, todo o sistema em questão”. Diante dessas considerações, é legítimo falar de uma “lógica dos símbolos, pois qualquer que seja a sua natureza e o plano em que se manifestem, são sempre coerentes e sistemáticos”. Continue lendo

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Consciência social da morte

29 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Frederik Ruysch, 1744 [National Library]

Originalmente publicado em 2007, Uma história social do morrer, do médico e sociólogo Allan Kellehear, foi recentemente lançado no Brasil, com tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, pela editora Unesp. O livro insere-se em uma zona híbrida de encontro entre ciências médicas e biológicas com história cultural e sociologia. Trata-se da maior revisão das ciências clínicas e humanas sobre a conduta humana da morte.

A abordagem histórica do livro perspectiva nossas recentes percepções de mortes por câncer ou doenças terminais em um contexto ampliado, histórica, epidemiologica e globalmente. Seu exame começa com o início da consciência da mortalidade, na Idade da Pedra. Passa pela preparação para a morte nas aldeias rurais das culturas de assentamento e pela gestão do processo da morte por profissionais terceirizados nas cidades. Por fim chega à Era Cosmopolita, nossa era globalizada, em que o morrer se configura cada vez mais como um ato vergonhoso, trágico e antissocial. Assim, para o autor, o comportamento que conhecemos e temos diante da morte atualmente vem sendo construído ao longo de milhares de anos.

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O homem sem doença

28 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Após o banho, senta-se no chão de pernas cruzadas, diante da janela, para olhar a vista da cidade. Já não sabe se deve estar satisfeito ou insatisfeito, se deve estar feliz ou se abandonar ao pressentimento de tristeza que se situa em algum ponto de seu íntimo. Como quando se sente uma forte vontade de fazer xixi, mas não sai nada: tal é a sua tristeza.”

gravura de Paul Klee [água-tinta]

O aclamado escritor holandês Arnon Grunberg encerrou neste domingo o ciclo de encontros e conversas com o público que realizou em São Paulo e Santos para o lançamento de O homem sem doença, agora publicado no Brasil pela editora Rádio Londres, com tradução de Mariângela Guimarães.

O romance é um impiedoso ato de acusação contra o idealismo e a hipocrisia do Ocidente. Característica comum nos romances de Arnon Grunberg, a um só tempo diverte e choca o leitor.

Como bem disse o escritor e crítico Carlos Schroeder, em sua coluna de literatura no jornal Diário Catarinense: O homem sem doença é uma crítica ao mesmo tempo trágica e cômica à época em que vivemos, com profundas reflexões sobre justiça, humilhação, falso senso de segurança e os excessos da arquitetura moderna. Mais um grande livro deste autor contundente e indispensável”.

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Guia de Leitura

Os sertões – as raízes continuam vivas

26 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Na primeira metade do século XX foi produzido um conjunto de obras fundamentais, formadoras da ideia de Brasil e do que é ser brasileiro, que até hoje reverberam na atualidade nosso pensamento contemporâneo.

Os sertões, publicado originalmente em 1902, Casa-grande & senzala, cuja primeira edição é de 1933, e Raízes do Brasil, publicado em 1936, permanecem como livros clássicos sobre a formação da sociedade brasileira – como “explicadores” do Brasil.

As edições comemorativas, que as três obras ganharam, nos fazem pensar a respeito de sua atualidade e perguntar qual a dimensão de sua influência e força retórica, a despeito das críticas e dos estereótipos por estas críticas criados. As três obras são retrato de lógicas sociais brasileiras, cujas profundas raízes alimentam frutos até hoje.

 

Euclides da Cunha, “O sertões -Edição crítica comemorativa”

Euclides da Cunha escreveu o clássico Os sertões a partir de um trabalho jornalístico sobre a rebelião de Canudos, liderada por Antonio Conselheiro e duramente reprimida pelo governo. Enviado ao sertão da Bahia pelo jornal O Estado de São Paulo, o autor defrontou-se com a realidade de famílias reunidas em torno de um líder messiânico, cujo movimento – vítima e crítico especialmente da precariedade da região – seria, eminentemente, massacrado. Parte da riqueza do livro reside na percepção da mudança de opinião do escritor que, a princípio, movido por um espírito patriótico e republicano, via com repulsa a revolta dos “fanáticos” defensores da monarquia – opinião compartilhada pelo restante da elite letrada, que não tolerava a insurgência do grupo, considerando-a uma ameaça ao projeto civilizatório do Brasil cujo ideal positivista de “ordem e progresso” era o lema. A experiência foi, para Euclides da Cunha, transformadora e teve como fruto um romance social que se tornou uma das maiores obras da literatura brasileira. Baseada em teorias deterministas em voga na época, a obra aborda cientificamente a influência do meio sobre o homem, como mostra a própria estrutura dos capítulos: “A terra”, “O homem”, “A luta”.

A recém criada editora Ubu acaba de publicar uma edição crítica: além do texto estabelecido pela edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, o volume traz a reprodução de páginas das cadernetas de campo de Euclides da Cunha e um conjunto de imagens de Flávio de Barros, único registro fotográfico conhecido do conflito. Esta edição comemorativa foi publicada por ocasião dos 150 anos de nascimento de Euclides da Cunha e conta com uma extensa fortuna ensaística sobre a obra euclidiana, trazendo textos de Walnice Nogueira Galvão, José Veríssimo, Araripe Junior, Sílvio Romero, Gilberto Freyre, Antonio Candido, Olímpio de Souza Andrade, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Duglas Teixeira Monteiro, Franklin de Oliveira, José Calasans, Antônio Houaiss, Luiz Costa Lima, Roberto Ventura. Continue lendo

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O ateísmo não é tão fácil como parece

22 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] a religião segue a trajetória da arte e da sexualidade, dois outros principais elementos do que poderíamos chamar esfera simbólica. Também tendem a passar da propriedade pública para mãos privadas à medida que avança a Idade Moderna. A arte que outrora louvava Deus, lisonjeava um senhor, entretinha um monarca ou celebrava as proezas militares da tribo passa a ser basicamente uma questão de autoexpressão individual”.

Salvador Dalí, da série de gravuras feitas para ilustração de “A Divina Comédia”, de Dante [c. 1960]

Acaba de ser publicado no Brasil o livro A morte de Deus na cultura, de Terry Eagleton, com tradução de Clóvis Marques, pela editora Record. Eagleton investiga as contradições, dificuldades e significados do desaparecimento de Deus na era moderna; de acordo com sua apresentação ao volume: “Este livro fala menos de Deus que da crise gerada por seu aparente desaparecimento. Com isso em mente, parto do iluminismo para no fim chegar à ascensão do Islã radical e à chamada guerra ao terror. Começo mostrando de que maneira Deus sobreviveu ao racionalismo do século XVIII e concluo com seu dramático ressurgimento em nossa época supostamente sem fé. Entre outras coisas, esta narrativa tem a ver com o fato de que o ateísmo de modo algum é tão fácil quanto parece”.

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Conversações com Goethe

19 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

– Só nos causa espanto – replicou Goethe – porque nosso ponto de vista é demasiado estreito para nos permitir compreendê-lo. Se ele nos fosse ampliado, talvez constatássemos que também esse aparente desvio provavelmente se encontra no âmbito da lei. Mas continue, conte-me mais. Sabe-se, por acaso, quantos ovos o cuco pode pôr?

Leonardo da Vinci, Estudo preliminar para a pintura “Battaglia di Anghiari” (1503-1504)

Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida – 1823-1832, de Johann Peter Eckermann (1792-1835), acaba de ganhar uma edição primorosa no Brasil pela Editora Unesp, com tradução de Mario Luiz Frungillo, professor de Teoria Literária na Unicamp. Trata-se, como disse Otto Maria Carpeaux, de um testemunho da universalidade de interesses, da lucidez de julgamento e da sabedoria octagenária do grande poeta. Para Benjamin, as Conversações tornaram-se “um dos melhores livros em prosa do século XIX”.
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Guia de Leitura

Sociedade do cansaço

16 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Já não vivemos em uma sociedade imunológica: a violência imanente ao sistema é neuronal e, portanto, não desenvolve uma reação de rejeição no corpo social.

 

Byung-Chul Han, “Sociedade do cansaço”

“A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são sociedades livres. Elas geram novas coerções. A dialética do senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva, ao contrário, a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é possível mesmo sem senhorio”.

O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, professor universitário de filosofia e estudos culturais na Universidade de Artes em Berlim, Byung-Chul Han, teve o livro Sociedade do cansaço publicado no Brasil em 2015, com tradução de Enio Paulo Gianchini, pela editora Vozes.

Han tem atualizado os temas da filosofia alemã de maneira simples e original: analisando o homem contemporâneo, a subjetividade, as novas formas de dominação, a depressão e as esperanças, seus escritos parecem definir diretamente o que somos, no mundo em que vivemos.

A sociedade do cansaço que Han problamatiza é efeito de uma sociedade do desempenho. “A sociedade de hoje é uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI é uma sociedade de desempenho”. Nela, o discurso motivacional e seus efeitos colaterais estão crescendo desde o início do século XXI e este discurso não mostra sinais de desaquecimento. Religiões tradicionais estão perdendo adeptos para novas igrejas que trocam o discurso do pecado pelo encorajamento e autoajuda. As instituições políticas e empresariais mudaram o sistema de punição, hierarquia e combate ao concorrente pelas positividades do estímulo, eficiência e reconhecimento social pela superação das próprias limitações. Byung-Chul Han mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX, descrita por Michel Foucault na década de 1970, perde espaço para uma nova forma de organização coercitiva: a violência neuronal. “A violência neuronal não parte mais de uma negatividade estranha ao sistema. É antes uma violência sistêmica, isto é, uma violência imanente ao sistema”. As pessoas  cobram-se cada vez mais para apresentarem melhores resultados, tornando-se, elas próprias, vigilantes, e carrascas, de suas ações. A ideologia da positividade é perversa, nos faz submetermos-nos a trabalhar mais e a receber menos.

Uma das principais consequências é um aumento significativo de doenças como depressão, transtornos de personalidade, síndromes como hiperatividade. Na sociedade do desempenho todas as atividades humanas decaem para o nível do trabalho e o homem se torna “hiperativo e hiperneurótico”. Continue lendo

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Entre letras e números

8 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“A matemática, como utilizada na ficção por Borges e Perec, permite ampliar potencialmente essa multiplicidade de mundos possíveis”.

Geraldo de Barros

Jacques Fux arrebatou a crítica literária com seu premiado Antiterapias. Com o lançamento de Literatura e matemática, pela editora Perspectiva, mostra que sua prosa ensaística é tão intensa e arguta quanto a literária.

Questionando, como indica desde o título, que relações a literatura pode estabelecer com a matemática, Fux analisa o papel do conhecimento matemático nas obras de Jorge Luis Borges e Georges Perec e, entre elas, estabelece diálogos e relações nunca desta forma equacionadas, relações em que a disposição dos elementos os reverbera uns nos outros, de forma reciprocamente potencial. Para embasar algumas destas relações, Fux investiga de maneira minuciosa o grupo literário francês OuLiPo, do qual Borges, diz, é espécie de “plagiário por antecipação”.

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lançamentos

Sátiras e subversões

24 agosto, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Morro Agudo

Noticiam os jornais que os moradores de ‘morro Agudo’, localidade situada à margem da Estrada de Ferro Auxiliar à Central, protestaram contra a mudança de nome da respectiva estação, mudança imposta pela diretoria da Estrada que precedeu à atual.

Vem a pelo lembrar de que forma horrorosa os mesmos engenheiros vão denominando as estações das estradas que constroem.

Podemos ver mesmo nos nossos subúrbios o espírito que preside tal nomenclatura.

É ele em geral da mais baixa adulação ou senão denuncia um tolo esforço para adquirir imortalidade à custa de uma placa de gare”.

Xilogravura de Lívio Abramo

Célebre por grandes obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha ou Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto é, no entanto, autor praticamente desconhecido pelo público brasileiro, se levarmos em conta os 164 textos, inéditos em livro, reunidos neste formidável Sátiras e subversões, organizado por Felipe Botelho Corrêa, lançado no início do mês pela Companhia das Letras.

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Literatura

A exposição luminosa do lodo não é retórica

18 agosto, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Gustave Doré [1832-1883], ilustração para o “Paraíso perdido”, de Milton.

Vencedor do Prêmio Rio de Literatura, o romance Anatomia do paraíso traz a lume mais uma vez a singular expressividade literária da escritora Beatriz Bracher, através de uma narrativa densa e profunda.

O romance acompanha a história de um jovem estudante de classe média que escreve uma dissertação de mestrado sobre o Paraíso perdido (1667), poema épico de John Milton que narra a queda do homem e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Sua história, porém, desdobra-se em simultâneos planos, que se encontram, imbricam-se, ressoam-se, amalgamando em si a articulação de suas reflexões sobre a obra de Milton, de sua observação da dura vida de sua vizinha Vanda, que se divide entre trabalho, estudo e os cuidados com a irmã mais nova, de sua percepção do delicado processo de amadurecimento desta última.

A narrativa, por vezes vertiginosa, é dramática na medida em que as trajetórias dos personagens cruzam-se com os temas do Paraíso perdido – sexo, violência, pecado, culpa, traição, morte e redenção. Continue lendo

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lançamentos

O interregno em que vivemos

15 agosto, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] No fim das contas, entre a Babilônia imaginada por Borges e o mundo que a modernidade outrora nos prometeu – que JeanPaul Sartre captou na frase sublime ‘le choix que je suis’ (‘a escolha que eu sou’) – jaz o interregno no qual estamos vivendo agora: um espaço e um tempo estendidos, móveis, imateriais, sobre os quais reina o princípio da heterogenia de fins, talvez como nunca antes. Uma desordem que é nova, mas ainda assim babélica”.

gravura de Evandro Carlos Jardim

Babel – Entre a incerteza e a esperança, novo livro do grande sociólogo polonês Zygmunt Bauman, escrito em co-autoria com o jornalista italiano Ezio Mauro, acaba de ser lançado no Brasil pela Zahar, com tradução de Renato Aguiar.

Sob a forma de um amplo diálogo, os autores discutem os impasses do capitalismo globalizado, os perigos do enfraquecimento da democracia e o papel da esperança que resiste, ainda que no meio movediço que abarca as relações incertas de nosso tempo.  Continue lendo

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Literatura

A exposição das rosas

20 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] eu não morrerei uma vez, mas duas. Que diabo você fica olhando? É uma coisa simples. Agora mesmo poderei interpretar para você uma agonia que deixaria até o Ularik satisfeito. Depois, se necessário, você poderá filmar a agonia verdadeira também. Você terá duas mortes e poderá aproveitar no documentário aquela que estiver melhor”.

Gravura do húngaro Gabor Peterdi [Jane Haslem Gallery]

A Editora 34 reeditou a obra inaugural de sua ótima coleção Leste, publicada originalmente no Brasil em 1993.

A exposição das rosas, do escritor húngaro István Örkény (1912-1979), reúne duas novelas que, exemplares da notória da sátira e humor negro do autor, abordam com ironia a história recente da Hungria – sobretudo satirizando o militarismo e os frágeis valores da classe média. Ambas foram traduzidas diretamente do húngaro por Aleksandar Jovanovic. O volume conta também com prefácio de Nelson Ascher.

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matraca

A oleira ciumenta

14 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Há milênios, sob todas as suas formas – barro esmaltado ou não, faiança, porcelana – a cerâmica está presente em todos os lares, humildes ou aristocráticos. Tanto que os antigos egípcios diziam “meu pote” para dizer “meu bem”, e nós mesmos, quando falamos em reparar danos de qualquer espécie, ainda dizemos ‘pagar os vasos quebrados’ [payer les pots cusses].”

Cerâmica tapajônica

Um percurso por entre os meandros do complexo terreno dos mitos ameríndios, cujos passos foram registrados neste profundamente interessante A oleira ciumenta. Lévi-Strauss põe em relação a figura da oleira, da ceramista, com o sentimento do ciúme, estabelecendo a partir dela uma ramificação de analogias com as mais diversos tribos e povos.

O último capítulo do volume, “‘Totem e Tabu’ Versão Jivaro”, é inteiro dedicado ao diálogo crítico entre o estruturalismo e a psicanálise. Lévi-Strauss combate, em Freud, sua suposição de afinidade entre neuróticos, crianças e primitivos. O antropólogo também põe em questão a primazia do “código sexual” na interpretação dos símbolos míticos e oníricos.

Ao longo do livro, pode-se saber o que há de comum entre um pássaro insectívoro, a arte da olaria e o ciúme conjugal, ou entre o pensamento especulativo dos índios e o dos psicanalistas, ou mesmo entre uma tragédia de Sófocles e uma comédia de Labiche. Continue lendo

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matraca

Luzes e sombras

11 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“Este livro é uma discussão a respeito das sombras e de seu papel em nossa experiência visual. Mais especificamente, justapõe as noções modernas sobre as sombras às do século XVIII, com a finalidade de tirar proveito de uma tensão entre elas. Naturalmente, outros períodos históricos também tiveram ideias interessantes a respeito das sombras, mas não é deles que trata esse livro”.

Anotações de Leonardo da Vinci sobre a percepção visual

Recuperando as teorias oitocentistas da percepção visual, com o apoio da ciência cognitiva contemporânea, da história da arte e de vasta bibliografia especializada, o professor de história da arte Michael Baxandall, em Sombras e luzes, discute o papel das sombras na representação que se tem das formas, assim como os significados diversos que elas podem assumir.

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Guia de Leitura

Boris Schnaiderman e suas belas traduções

8 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Escritor, professor, tradutor: Boris Schnaiderman, intelectual generoso, foi certamente o maior responsável pelo acesso e divulgação da literatura russa no Brasil, fundador de uma nova era na tradução brasileira – uma tradição de traduções cuidadosas diretas do russo para o português.

Boris juntou à prática acadêmica o exercício de jornalismo literário, o culto aos clássicos e o interesse pelos novos escritores. Como tradutor, realizou um trabalho que esteve associada à docência e à produção incessante de artigos e livros, mas que combinou, a este, outros trabalhos, como os desenvolvidos em equipe (com os poetas Augusto e Haroldo de Campos, posteriormente com Nelson Ascher) e trabalhos independentes.

Suas traduções sempre foram caracterizadas pela autonomia e pelo extremo cuidado no tratamento com o texto. Autores tão diferentes como Górki e Tchekhov merecem, a cada reedição das traduções, um reexame detalhado e importantes melhoramentos.

Em entrevista, Boris certa feita disse não gostar da expressão “texto intraduzível”: trata-se apenas de um dos grandes desafios que uma tradução apresenta.

 

A. P. Tchekhov, “A dama do cachorrinho – E outros contos”

A primeira tradução assinada por Boris Schnaiderman [fizera algumas amadoras antes, sob o nome de um pseudônimo] foi A dama do cachorrinho, em 1959, quando ele tinha 42 anos. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 06 de maio de 2001, Schnaiderman conta: “Minhas traduções anteriores eu havia publicado com pseudônimo. Não as reconheço. Eu não tinha experiência. Mesmo com a tradução de ‘A Dama do Cachorrinho’ não fiquei satisfeito e a refiz várias vezes. Aliás, faço isso com todas as minhas traduções”.

Os contos breves, precisos e tocantes de Anton Tchekhov (1860-1904) revolucionaram a maneira de escrever narrativas curtas, tornaram-se mundialmente conhecidos e influenciaram os principais escritores que posteriormente dedicaram-se ao gênero. Grande parte da originalidade de Tchekhov reside no papel fundamental que desempenham, em suas histórias, a sugestão e o silêncio, a ponto de, muitas vezes, o mais importante ser justamente o que não é dito. Continue lendo

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