Arquivos da categoria: Literatura

Literatura

Um fuzilado está vivo

27 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Rodolfo Walsh, reconhecido como um dos escritores latino-americanos mais importantes da atualidade, nasceu em 1927 na Argentina e foi barbaramente assassinado pela ditadura nas ruas de Buenos Aires, em 1977. Vigoroso militante político da esquerda revolucionária peronista, Walsh chegou à liderança do movimento Montoneros, em resistência à ditadura militar. Para várias gerações de intelectuais, sua contundente “Carta aberta à Junta Militar“, em que denunciou os crimes da ditadura instaurada em 1976, tornou-se um modelo de resistência aos regimes autoritários e de fé na força da palavra contra os desmandos do poder. Seu assassinato brutal – crivado de balas a tal ponto, seu peito se abriu devido a tantos ferimentos e seu corpo, depois, nunca mais foi encontrado –, seguiu a postagem de cópias da Carta a amigos e colaboradores ao redor do mundo.  Continue lendo

Send to Kindle
cinema

Multifacetada metáfora analítica

26 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O recente mistério em torno do avião desaparecido da Malaysia Airlines retomou uma questão: que segredos pode conter a caixa preta de um avião que caiu? Os últimos “sinais vitais” do voo, antes de sua queda, os vestígios da catástrofe. O israelense Amós Oz aproveitou a forte imagem para usá-la como impactante metáfora – sua caixa preta não se refere a um avião, mas ao rompimento de uma relação amorosa em um divórcio escandaloso, permeado por paixões que beiram a loucura e cujos rastros prolongam-se presente adentro. A caixa-preta, porém, não é um livro a respeito do romance em torno do qual estrutura-se: este é, na realidade, somente o meio através do qual Amós Oz reflete sobre conflitos mais amplos e profundos: o complexo panorama social, religioso e político da vida em Israel nos últimos anos. A maneira astuciosa pela qual a história é construída permite com que ambos pontos de vista sejam explorados simultaneamente. Um romance político, desenvolvido como uma proposta polifônica. Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Princípios

24 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Chegado a esse ponto, de onde não mais se vê o lugar de partida, resta apenas tocar para a frente. Não ter para onde voltar e saber que não é a partir daqui que inicio”.

 

Rodrigo Naves, conhecido como um dos críticos de arte mais relevantes e atuantes do cenário brasileiro, é também um surpreendente escritor. Seus contos caracterizam-se por um aspecto seco, em que a linguagem desdobra-se, sobrepujando o enredo, as personagens, a narrativa, seu espaço e seu tempo. Seu trabalho analítico como crítico espelha-se nos breves textos de O filantropo pela captação instantânea daquilo que é narrado. Seus contos, construídos sobre poucas e precisas palavras, ficam num rico limiar entre ensaios e poemas em prosa e, ali muito bem equilibrados, criam um “sólido chão prosaico” e debruçam-se sobre temas éticos. Ao longo do livro, de história em história, o “filantropo” que dá nome à obra vai sendo paulatinamente construído. Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Ironia filosófica

20 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Em que está trabalhando?”, perguntaram ao sr. K. Ele respondeu: ” Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”.

 Escritos ao longo de trinta anos, de 1926 a 1956, ano da morte de Brecht, os textos aqui reunidos, são todos relacionados à personagem do sr. Keuner – uma figura inusitada, misto de filósofo, professor e homem de ação, considerado por muitos como um alter ego do autor, combina em doses iguais Karl e Groucho Marx, empregando a dialética e o humor para afinar sua ironia.

A edição da Editora 34, traduzida por Paulo César de Souza, é a mais completa coletânea das Histórias do sr. Keuner de que se tem notícia em qualquer língua, pois é a única que integrou, aos 87 textos comumente conhecidos, mais 58 textos descobertos apenas em 2002 pelo pesquisador Werner Wüthrich em meio aos manuscritos originais deixados por Brecht na Suíça – país em que viveu por cerca de um ano antes de ir para Berlim oriental, onde viveu seus últimos dias.  Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Partitura literária

14 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Frans Krajcberg, Sem Título.

a pedra lisa tem

escamas

 

O interessante livro Totens, de Sérgio Medeiros, foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, na categoria Poesia. Seu trabalho desenvolve-se a partir de um inusitado entroncamento, que ele encontra entre a poesia e a antropologia.

Totens reúne dois dos trabalhos mais recentes de Sérgio Medeiros: “Enrique Flor”, que recria uma passagem do Ulysses de Joyce, em que aparece o músico português Flor, especialista em “música vegetal”; o segundo trabalho, “Os eletoesqus”, reinventa uma lenda da fronteira do Brasil com o Paraguai sobre um totem que é o bafo do verão, um sopro ardente.

Continue lendo

Send to Kindle
cinema

A enorme carga dos sonhos

13 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Um visionário cuja obsessão é construir uma casa de ópera no coração da floresta amazônica: a cena clássica é a transposição de um pequeno navio montanha acima. O cinema de Herzog é inconfundivelmente poético. Seu lirismo é metafórico, de maneira extravagante, porém precisa.

Fitzcarraldo é a história de um sonho, de sua impossibilidade e de sua realização. Drama que as próprias filmagens reverberaram, em si mesmas, na sua intimidade. A conquista do inútil é o diário que Werner Herzog manteve durante as filmagens, Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Humor magistral

6 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Obra-prima da literatura satírica, misto de realismo mágico, comédia de costumes, história de amor e crítica social e política, O Mestre e a Margarida foi escrito em segredo, nas sombras do período mais violento da repressão de Stálin. Bulgákov começou a trabalhar no romance em 1928 e, doze anos mais tarde, morreu sem ver a obra publicada. O livro só foi publicado duas décadas após a morte do autor. A complexa trama parte da aparição, num entardecer quente de primavera, do diabo em plena Moscou, a capital de uma suposta utopia racionalista que promovia o ateísmo. O demo, acompanhado de figuras esquisitas que incluem um imenso gato preto adepto do xadrez, da vodca e das armas de fogo, ingressa nos círculos literários locais e envolve-se com o mestre, um escritor perseguido pelo governo e pelos intelectuais por ter publicado um romance sobre os últimos dias da vida de Jesus.

Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

Minuciosas ressonâncias

5 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Sob o título Pelo prisma russo, esta coletânea de ensaios do historiador Joseph Frank desvela uma compreensão profunda da literatura e da história russas. Joseph Frank, que morreu em fevereiro do ano passado, foi professor emérito de Literatura Comparada da Universidade de Princeton e professor de Literatura Comparada e Língua e Literatura Eslava da Universidade de Stanford. Estudioso da obra de Dostoiévski, ficou famoso por ter escrito uma extensa biografia sobre o autor, para a qual foram necessários cerca de trinta anos de pesquisa, condensados em cinco grande tomos – no Brasil, publicados também pela Edusp; para Frank, a genialidade de Dostoiévski encontra-se na abordagem de grandes questões da humanidade enquanto acontecimentos da sua contemporaneidade, sem jamais reduzir seus personagens a “um fenômeno da realidade, dotado de traços típico-sociais”, mas, ao contrário, concentrando neles singularidades psicológicas, através de seu “incomparável dom para o retrato psicológico”.

Em Pelo prisma russo, o interesse de Joseph Frank pela obra de Dostoiévski forma o núcleo principal a partir do qual irradiam-se os ensaios da coletânea, como um filtro, Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Narrativas licenciosas

25 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Na alcova, livro concebido e organizado por Samuel Titan Jr., reúne três histórias de três autores franceses, Guilleragues e Crébillon e Denon, escritas entre o último terço do século XVII e o começo do século XIX, todas com temas licenciosos, não propriamente libertinos. As histórias foram traduzidas por Samuel Titan Jr. e o livro conta com um interessante posfácio analítico, escrito por ele.

São três histórias eróticas, intrigantes narrativas de amor proibido: “Cartas portuguesas”, de Guilleragues, traz a história de uma freira seduzida por um oficial francês; em “O silfo”, de Crébillon, a heroína procura a solidão do campo para satisfazer suas fantasias eróticas; em “Por uma noite”, de Denon, uma adúltera leva um de seus amantes para sua câmara secreta dos prazeres na propriedade rural do marido.

Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Imperdoável

24 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Rogério Pereira acaba de ter publicado seu primeiro romance, Na escuridão, amanhã. Segundo o autor, foi gestado durante mais de dez anos. “Mas o longo tempo de gestação não significa rigor, mas incapacidade de encontrar o ritmo adequado a uma história fragmentada de retirantes”, disse Rogério ao jornal Gazeta do Povo. O romance conta a história de uma família de retirantes que parte da roça para a cidade grande, que lhes parece assustadora. No mesmo artigo, Rogério diz: “[…] minhas intenções eram tratar do estranhamento que uma cidade pode causar numa família de retirantes, do silêncio que nos sufoca o tempo todo, da falta de comunicação, da fragilidade das relações familiares, de Deus, do demônio”. A narrativa principia no desvelamento de uma vida emocionalmente opressiva na roça, em que os protagonistas emaranham-se cada vez mais na ausência de comunicação, perseguidos pela ideia de um Deus punitivo e impiedoso; ao migrar para a cidade em busca de vida melhor, porém, a família encontra sua aniquilação. O enredo, pesado por si, marcado pelo misto de raiva e impotência que acompanha o narrador, toca ainda um aspecto perverso com as imagens de abuso sexual e violência doméstica retratadas. Surpreendentemente forte e claustrofóbico, o livro é marcado por uma prosa intimista, rica em detalhes e cadenciada pela cuidadosa construção dos personagens. Uma história densa, a um só tempo sensível e agressiva.

Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

não, você não entende, pelo menos agora

20 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O negócio do mundo é derrubar com o rodopio da vida aqueles que andam soltos… E a gente vai se virando com ele, fazendo força pra girar pro outro lado, torcendo pra tontura passar… Passar, não passa, mas Deus vai colocando as paredes no lugar certo pra apoiar, coloca uns postes… Bom, de vez em quando a gente se desequilibra e dá umas cabeçadas… Olha, parece que é mais difícil morrer do que viver, valha-nos Deus, todo poderoso!”

 

O interessante livro As visitas que hoje estamos, do mineiro Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, é composto por centenas de trechos, em sua maioria relatos em primeira pessoa, salvo o roteiro teatral protagonizado pelas personagens Cora e Naum, que interrompe as séries de discursos pessoais. Os fragmentos de discursos em primeira pessoa, espécies de monólogos interiores, aparentam repetições, pois tratam de situações parecidas, normalmente marcadas por questões religiosas e com tratamento linguístico muito similar.

Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Dos silêncios expressivos

19 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Cornélio Penna (1896 – 1958) foi romancista, além de pintor, gravador e desenhista. Na década de 1930, abandonou as artes plásticas para dedicar-se exclusivamente à literatura. Penna participou da Segunda Fase do Modernismo e criou o realismo psicológico brasileiro. A Menina Morta é considerado um dos romances primorosos da história da literatura no Brasil. O livro, que completa 60 anos em 2014, é composto por histórias caracterizadas por capítulos curtos, desenvolvidas em uma atmosfera de estranheza.

Uma obra que, entre outros temas, fala também da escravidão, escrita em pleno momento desenvolvimentista dos anos 50, no qual a tendência primordial era a de construir uma identidade nacional que fosse pautada pela modernidade e pelo progresso. A menina morta, enquanto interpretação do Brasil, é fragmentária: através sobretudo da voz do narrador, hesitante e escorregadia, pretende encontrar no passado respostas que justifiquem a formação de uma ideia diluída de nação, marcada pela linhagem escravocrata, pela lei patriarcal e pela interdição. Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

Como o brilho da chuva

14 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Essa coisa brilhante que é a chuva, livro de contos de Cíntia Moscovich, foi o vencedor do Prêmio Portugal Telecom na categoria contos/crônicas – na categoria poesia, o vencedor foi Eucanaã Ferraz e na categoria romance, José Luiz Passos. Essa coisa brilhante que é chuva também foi um dos vencedores do Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional em 2013 – prêmio em que, na categoria de romance, o vencedor foi Opisanie Swiata, de Veronica Stigger. Esse foi o sétimo livro de Cíntia Moscovich publicado. As narrativas giram em torno sobretudo de laços familiares instáveis, um tema recorrente em sua obra, e de personagens confrontados com as limitações de  seus próprios corpos, todos os contos permeados de maneira interessante por temas corriqueiros.

O livro é composto de uma maneira que lembra um longo poema Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

A antropofagia contra o arcabouço recalcado

13 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Em Oswald canibal Benedito Nunes apresenta o caráter específico da antropofagia oswaldiana como conceito de desmistificação da história escrita e de crítica à sociedade patriarcal a que deram origem os cânones da história; Benedito mostra como Oswald antecipou intuitivamente toda a dialética do Modernismo brasileiro.

Em seu Manifesto Antropofágico, Oswald defendia que o “instinto caraíba” devorasse todas as “consciências enlatadas”, as “escleroses urbanas” e supostas verdades missionárias (segundo a as palavras de Raul Bopp, em Vida e Morte da Antropofagia). Assim ele expôs a necessidade de um confronto que gerasse bases mais independentes para a identidade nacional, pois sua percepção era a que “a nossa independência ainda não foi proclamada”. O manifesto termina apontando a deglutição do bispo Sardinha como um evento-chave; Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

O tempo, a loucura: entrelaçamentos

10 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

 “Foi um grande desvio que me levou até esse ponto. E o que aconteceu depois é difícil de relatar numa linguagem mais ordenada. Espero que me entendam”.

 

O escritor pernambucano José Luiz Passos é o autor do elogiado romance O sonâmbulo amador, pelo qual venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa de 2013. Passos é professor na Universidade da Califórnia, onde fundou o Centro de Estudos Brasileiros. No Brasil, já tinha publicado um primeiro romance, Nosso grão mais fino, além de dois livros de crítica literária: Ruínas de Linhas Puras (publicado em 1998 pela Annablume), que reúne quatro ensaios sobre Macunaíma, e, mais recente, o ensaio Machado de Assis – O romance com pessoas (publicado em 2008 pela Edusp).

O sonâmbulo amador apresenta a história de um funcionário de uma indústria têxtil pernambucana, narrada depois de seu surto psicótico. Interessante desde o título – o inusitado “amador” qualificando um “sonâmbulo” cria uma imagem engenhosa –, o livro foi inspirado em uma visita de Passos a um armeiro húngaro, no Recife. O protagonista, Jurandir, apenas alguns dias antes de se aposentar como chefe de segurança, empreende uma viagem ao Recife para resolver um processo trabalhista. Sua jornada, porém, torna-se um pesadelo: sem motivos prévios ou aparentes, ele incendeia o carro da empresa e perde o controle de suas ações.

Continue lendo

Send to Kindle