Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

Artes Plásticas

Um livro que dança

18 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“[…] A vontade domina. Seu traço nunca está suficientemente perto do que ele quer. Não alcança nem a eloquência, nem a poesia da pintura; busca apenas a verdade no estilo e o estilo na verdade. Sua arte se compara à dos moralistas: uma prosa das mais límpidas que encerra ou articula com intensidade uma observação nova e verdadeira” – Paul Valéry, sobre Degas.

Degas dança desenho. Paul Valéry não enumerou com vírgulas as três palavras que dão título ao pequeno livro que dedicou ao caro amigo e pintor, Edgar Degas. Não o fez, para não distinguí-las em hierarquias categoriais sequenciadas em termos de relevância: o desenho dança em Degas, a dança desenha-se na maneira como ele vê as formas e as capta, ligeiramente fora de proporção, Degas dança o desenho; e no desenho Valéry encontra um conceito amplo, que abarca uma visão de época, uma visão de mundo e uma mediação entre o artista e essas duas visões. Mediação feita à maneira de uma tradução, de matriz hermenêutica: o desenho, livre enquanto dança, estruturador enquanto arte, é a própria arquitetura da imagem enquanto retórica da imaginação em relação à razão: através dele, a noção torna-se substância.

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história

Bastidores da guerra

17 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Marie Vassiltchikov

Marie Vassiltchikov

A princesa russa Marie Vassiltchikov (1917 – 1978) cresceu e viveu no exílio com sua família: seus pais, o príncipe Illarion e a princesa Lydia Vassiltchikov, deixaram a Rússia na primavera de 1919, e refugiaram-se, vivendo entre a Alemanha, a França e a Lituânia. Quando a Segunda Guerra Mundial começou, Marie estava na Alemanha com uma de suas irmãs, passando o verão na casa de campo de uma amiga. Em janeiro de 1940, as duas irmãs mudaram-se para a capital alemã, à procura de trabalho, e, assim, começam os Diários de Berlim (1940 – 1945), que narram os bastidores da Operação Valquíria e que a editora Boitempo acaba de lançar no Brasil, para marcar as comemorações de cinquenta anos do fim da guerra.

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matraca

Esmagado por seus atos inúteis

16 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Walter Sickert

Walter Sickert

Ivánov, peça de Tchékhov, foi encenada pela primeira vez em 1887. Trata, em quatro atos, do tédio sufocante que instaurou-se sobre os últimos anos da Rússia czarista. É praticamente a peça de estreia de Tchékhov como dramaturgo e já apresenta elementos que seriam característicos de todo seu teatro vindouro, como a presença latente de jogos psicológicos nos diálogos, as pausas e vazios súbitos, ricas significações nas entrelinhas.

Publicado pela Edusp, o texto foi traduzido para o português por Eduardo Tolentino de Araújo, que já foi diretor de montagem da peça quando encenda em 1998, e Arlete Cavaliere, professora da USP especialista em teatro russo.

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fotografia

Eu vim da Bahia

13 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
fotografia de Christian Cravo

fotografia de Christian Cravo

Christian Cravo, livro recentemente lançado pela Cosac Naify, reúne o trabalho de juventude do fotógrafo bahiano. Filho do lendário fotógrafo Mário Cravo Neto e neto do renomado artista Mário Cravo Jr., Christian reúne aqui belas fotografias de uma Bahia antiga, com suas tradições, religiosidades, espontaneidades. São fotos em branco e preto, que mostram um olhar a explorar a simbologia dos espaços e dos corpos. Algumas das fotografias são sensoriais, outras, reflexivas, porque históricas, inusitadas, ou simplesmente porque bonitas.

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história

Brasil “para além de si mesmo”

12 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes” – Manolo Florentino.

Hansen Bahia, gravura da série "Navio Negreiro"

Hansen Bahia, gravura da série “Navio Negreiro”

O estudo Em costas negras – Uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), de Manolo Florentino finalmente volta às livrarias brasileiras. Vencedor do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 1993, foi editado a primeira vez pela Companhia das Letras e esteve durante um tempo esgotado; agora, a Editora Unesp lança sua nova edição.

A obra apresenta uma significativa revisão da história do tráfico negreiro escravista, analisando as estruturas política, social e econômica tanto no Brasil quanto na África, que o deslocamento de cerca de 10 milhões de africanos entre os séculos XVI e XIX. Continue lendo

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Ensaios

Incerta memória

11 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens” – Borges.

Odilon Redon

Odilon Redon

Se questionássemos a história da literatura entendida como linha temporal dialógica de confrontos dos movimentos literários com movimentos antecedentes, veríamos que talvez o que esteja por trás desta concepção seja uma ideia de história linear. A ela poderíamos então sobrepor outra possibilidade, a ideia de história circular. Para precisar, um circular espiralado, com eixo móvel, em que a repetição[1] torna-se um conceito ontológico maior: a concepção de uma ontologia da própria literatura[2], considerando-a sujeito de si, encarnada no artista literário, no escritor. O artista percebe a mobilidade do eixo histórico, vive o paradoxo da repetição. Nas palavras de Deleuze, “não se pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mudança que ela introduz no espírito que contempla”, ou seja, “a não ser por uma diferença que o espírito extrai da repetição” (Deleuze, Diferença e repetição, p. 111): o eixo histórico é móvel, pois o presente constantemente imiscui-se ao passado e dele retorna, um espelho que reflete a diferença; o artista faz esse movimento, cria a si mesmo através da criação da forma a partir da contemplação daquilo que o precede, enquanto sujeito total ou parcial, de si ou da história: “Extrair da repetição algo novo, extrair-lhe a diferença, este é o papel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos ou fragmentados” (idem, p. 118). Para o artista o presente é simbólico, qualquer perturbação ocasionada ao real, carrega-a consigo. Provocando a forma literária, ele preenche a si mesmo, materializando a contemplação dos liames da representação da realidade em pontos complexos, confrontando e efetuando a originalidade de um presente a outro, do real ao mais profundo do próprio ser literário. Sempre em primeiro plano[3].

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Literatura

Retrato da moral burguesa

11 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Flávio de Carvalho

Flávio de Carvalho

A comédia humana, de Balzac, é monumental: composta por 89 volumes de romances, contos e novelas. Otto Maria Carpeaux já o dizia: dentre uma produção tão volumosa, parte foi feita “às pressas para ganhar dinheiro”. É o caso, segundo o crítico austro-brasileiro, de um dos romances balzaquianos mais famosos, A mulher de trinta anos. A crítica não é unânime, e o livro de Balzac, tão comentado, vale a pena ser lido, como comédia de costumes da burguesia francesa, como representante do realismo então recente na literatura.

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matraca

Sinto-me incapaz de pensar sem escrever

10 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
René Magritte. La clef des songes

René Magritte. La clef des songes

Para o olhar atento do sociólogo, antes de desdobrarem-se em eventos sociais, os acontecimentos cotidianos já revelam sinais do tempo. Zygmunt Bauman, em Isto não é um diário, parte de reflexões suscitadas por leituras de notícias de jornais, de lembranças, de análises tecidas ao longo do acompanhamento vivido do desenvolvimento da situação política e econômica mundial, observando acontecimentos rotineiros para pensar sobre os significados neles contidos e pontuar questões sobre o mundo contemporâneo: o significado da palavra democracia nos movimentos que levaram à Primavera Árabe, a impiedosa perseguição aos ciganos na França, a bolha imobiliária americana, o papel dos países emergentes na estratégia mundial de globalização, ou mesmo sua paixão então recém-descoberta pelo escritor José Saramago.

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Literatura

O que cabe no breve espaço de um conto

9 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Ulysses Boscolo

Segundo Antonio Tabucchi, Nove estórias de J. D. Salinger é “o livro de contos mais belo do século XX”. De fato, os contos, escritos originalmente para as revistas The New Yorker e Harper´s, mostram a versatilidade, irreverência e magistral cadência da prosa do autor de O apanhador no campo de centeio.

“Ele era um mestre dos contos de ficção, um excelente contador de histórias. […] Seu trabalho é atemporal. Geração após geração encontra novos significados em seus livros”, resume Will Hochman, professor doutor da Universidade Estadual do Sul de Connecticut.

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matraca

Diário de um luto

6 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

boris fausto

O luto do historiador Boris Fausto transformou-se em um belo livro: a princípio voltado a reflexões dolorosas sobre o falecimento de sua esposa, com quem foi casado por 49 anos, paulatinamente abre-se para questões despertadas pela observação cotidiana da vida marcada pela ausência.

O título O brilho do bronze remete às letras das lápides. Boris Fausto, um dos intelectuais mais respeitados do Brasil cujos últimos livros escritos foram de memórias – Negócios e Ócios [Companhia das Letras,1997] e Memórias de um Historiador de Domingo [Companhia das Letras, 2010] –, porém mantendo a objetividade do historiador, aqui tece reflexões subjetivas e sinceramente humanas através de um diário, pautado pelas visitas à lápide de Cynira Stocco Fausto: “Não consigo e nem quero pensar que há ali apenas um memorial. Prefiro pensar que, de algum modo, nos comunicamos com muito amor”, escreve. O diário iniciou-se um mês após o falecimento da educadora Cynira e foi mantido pelos quatro anos seguintes. Questões como o tempo verbal com o qual deve referir-se às evocações de memórias da mulher – “era” –, o uso do termo morte ou falecimento – “A morte é definitiva, o nunca mais, o never more. Falecimento lembra desfalecimento, saída de cena temporária”, diz –, a gravidade da finitude, o sentimento de amputação que fica ao que permanece vivo, são tematizadas ao longo dos textos.

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matraca

Autorretrato num espelho convexo

5 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

John Ashbery

John Ashbery é conhecido por uma poética do estranhamento, que explora o lirismo das incoerências e descontinuidades do fluxo da vida. A professora Viviana Bosi, no belo estudo John Ashbery – Um módulo para o vento, analisa essa poesia, que movimentando-se entre o padronizado e a impermanente, capta a experiência em sua velocidade e inapreensibilidade. A reflexão de Viviana fundamenta-se sobretudo na sua tradução para o português do longo poema “Autorretrato num Espelho Convexo”, escrito em 1975 e considerado texto emblemático da pós-modernidade.

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lançamentos

Já ouviu falar de Carmencita?

4 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Picasso

Picasso

Algumas personagens da literatura ganham vida própria e acabam por ser mais comentadas do que propriamente lidas – consequentemente, conhecidas por características que nem sempre lhe pertencem tal e qual sua fama. Caso exemplar é Carmen. Assim que a cena se abre, pergunta-se: “Já ouviu falar de Carmencita?”. A bela cigana boêmia, de olhos oblíquos, personagem esquiva e movediça do texto do francês Prosper Mérimée, é mais famosa pela adaptação que o compositor Georges Bizet fez da novela para o libreto de sua mais conhecida ópera – e que deu origem, por sua vez, desde argumentos filosóficos, a adaptações para o cinema, por Chaplin, Godard, Carlos Saura, entre outros.

Esta edição de Carmen, lançada agora no Brasil pela editora 34, sob cuidadosa tradução de Samuel Titan Jr., traz, além, da obra prima de Mérimée, o conto “Mateo Falcone”. O volume também conta com um posfácio do tradutor, um ensaio criativo e inteligente. Continue lendo

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lançamentos

Aquários recortados

3 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Virginia Woolf e seu pai, sir Leslie Stephen.

Virginia Woolf e seu pai, sir Leslie Stephen.

Os ensaios de Virginia Woolf tem ultimamente recebido especial atenção editorial brasileira. O sol e o peixe, publicado agora pela editora Autêntica, reúne nove de suas prosas poéticas.

São ensaios sobre temas diversos: em um deles, Virginia contrapõe o fenômeno de um eclipse solar à observação de peixes em um aquário; um ensaio tece uma análise sobre o pai da autora; em outro, escreve sobre Montaigne; em um ensaio dedica-se a pensar sobre a paixão pela leitura; em outro, reflete sobre a então recente arte cinematográfica, explorando relações que ela estabelece entre literatura e pintura.  Continue lendo

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Literatura

O grotesco como revelação

2 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A literatura de Flannery O’Connor (1925 – 1964), ao longo de seus Contos completos, publicados pela Cosac Naify em 2008, são marcados por uma arguta inteligência, por um estilo direto e por caracterizações, de personagens, situações e ambientes, imageticamente complexas, de uma realidade profunda, significativamente ampla. Seus temas giram em torno, sobretudo, do fundamentalismo protestante do sul dos Estados Unidos e da esterilidade espiritual que marca o mundo moderno. Suas narrativas colocam em questão as noções de bem e mal, através de personagens grotescas, muitas vezes colocadas em situações violentas, em que falta-lhes piedade, ou mesmo diálogo. São contos perpessados pelo ódio racial, pela violência, por vezes velada, outras brutalidade sem subterfúgios, pela religiosidade decadente e dogmática. Seu nome é associado na literatura norte-americana ao gótico sulista de William Faulkner, Carson McCullers e Tennessee Williams.

Flannery  O’Connor é considerada uma das maiores escritoras norte-americanas do século XX. Continue lendo

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Literatura

Existência sem existir

27 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Fala-se em máquinas de guerra, mas nenhuma máquina é pacífica, Walser”.

schnapp

Schnapp

A máquina de Joseph Walser, do talentoso escritor português Gonçalo M. Tavares integra a tetralogia “O reino”, dedicada a pensar o período de guerras e pós-guerras, colocando em questão o mal e a violência, através da rara capacidade literária do autor para combinar ficção e investigação filosófica.

Joseph Walser é um funcionário pacato, metódico, cuja vida é padronizada pela repetição dos movimentos da máquina industrial que ele opera. Nada interfere em sua estabilidade cotidiana, verdadeira personagem-máquina em um mundo de máquinas: nem mesmo a proximidade da guerra, sequer a invasão o distraem de sua jornada, pontuada pela dedicação à sua coleção de peças únicas.

A relação paradoxal e estreita entre homem e máquina estende-se à relação entre sociedade e modernidade e à própria condição humana, maquinizada. Continue lendo

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