Arquivos da categoria: Literatura

Literatura

O mundo é como o homem

15 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“A cada febre benigna, cada náusea, cada acesso de tosse, eles o velavam como a um moribundo, acolhendo cada cura como um milagre que não haveria de se repetir, pois nada se esgota mais rápido que a improvável misericórdia de Deus.”

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O sermão sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari, vencedor do Prêmio Goncourt 2012, é um romance cuja prosa, através de uma linguagem torturada – profundamente trabalhada –, desenvolve-se sobre reflexões filosóficas. Permeada pelos Sermões de Santo Agostinho (354-430), a obra é também histórica, criando um contraponto entre as catástrofes do século XX à decadência do Império Romano.

A narrativa tematiza a ausência e a decadência, através da história das escolhas e questionamentos pessoais de dois amigos, Continue lendo

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Literatura

Em determinadas profundezas da alma

9 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“O momento supremo da crise se consumava numa flutuação agradável e dolorosa, que não era deste mundo. Ao menor ruído de passos, o quarto rapidamente voltava ao seu aspecto inicial. Ocorria então entre as suas paredes uma redução instantânea, uma diminuição extremamente pequena de sua exaltação, quase imperceptível; isso me convencia de que uma finíssima crosta separava a certeza em que eu vivia do mundo das incertezas” – Max Blecher.

fotografia de Joseph Sudek

fotografia de Joseph Sudek

Acontecimentos na irrealidade imediata, do romeno Max Blecher, é uma ficção autobiográfica experimental. Narrado na primeira pessoa, o romance perpassa uma história de amadurecimento, do agravamento das “crises de irrealidade” juvenis, exacerbados pela subjetividade de um narrador hipersensível e que sofre de uma grave enfermidade. O protagonista é um alter ego de Blecher, que morreu em 1938, antes de completar 29 anos, após ter passado dez anos internado, em sanatórios e em sua casa, para o tratamento do mal de Plott, uma doença degenerativa, espécie de tuberculose que afeta a coluna vertebral.

O livro é profundo, denso, inquieto, agudo, assombroso.  Continue lendo

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Literatura

De fatos e cálculos

7 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”.

pintura de José de Ribera

pintura de José de Ribera

Tempos difíceis, de Charles Dickens, escrito em 1854, é um clássico cuja atualidade permanece vívida. O romance tece uma crítica profunda à sociedade inglesa da Revolução Industrial através da narrativa da vida dos habitantes da cinzenta cidade de Coketown. A miserável condição de vida dos trabalhadores ingleses no final do século XIX, em contraste drástico à riqueza em que vivia a classe mais rica da Inglaterra vitoriana, é, pelo romance, mostrado através de um olhar arguto e irônico. O desenrolar de sua prosa constrói uma crítica aguda à garantia que a educação infantil proporciona à manutenção do quadro de dominação e desigualdade social, por moldar desde cedo a inteligência à obediência, à submissão e subserviência, incontestabilidade e irrecuperável massificação de corpo e espírito.  Continue lendo

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Literatura

P.

6 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Paulo Emílio Sales Gomes

Paulo Emílio Sales Gomes

Três mulheres de três PPPês foi publicado originalmente em 1977, ano da morte de seu autor. Paulo Emílio Sales Gomes, até então conhecido pelo profundo trabalho como crítico de cinema, cria, nas três novelas que compõem este volume, uma prosa original e despretensiosa, satírica e bem-humorada, imaginativa e imediatamente familiar.

“Duas vezes com Helena”, “Ermengarda com H” e “Duas vezes Ela” são todas narradas Polydoro, uma figura abastada da elite paulistana que detesta seu nome e que exige de suas parceiras a omissão, abreviação ou variação na pronúncia. Cada novela acompanha o narrador em uma fase da vida, cada qual envolvida por uma das mulheres que lhe dá título.

O livro tem uma dimensão sociológica e tece uma crítica pontiaguda à burguesia paulista.  Continue lendo

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Literatura

Um passeio

30 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

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Avenida Niévski, do russo Nikolai Gógol, é um dos contos mais representativos de sua série de histórias petesburguesas, escritas entre 1832 e 1842. No Brasil, o conto ganhou em 2012 edição cuidadosa individualizada, com tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify. Trata-se de uma publicação primorosa.

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Literatura

Dentro dos gritos

27 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

[…] O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. […] É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. É muitas vezes o repouso de um escritor, e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do cinema, o contrário do teatro, e de outros espetáculos. É o contrário de todas as leituras. É o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança nas direções que se supõem exploradas, que avança para o seu próprio destino e do seu autor, agora aniquilado pela sua publicação: a separação entre os dois, o livro sonhado, como a criança recém-nascida, sempre a mais amada. Um livro aberto é também a noite. Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar. Escrever apesar do desespero. Não: com desespero” – Marguerite Duras.

cena de "Hiroshima mon amour"

cena de “Hiroshima mon amour”

Os Cadernos de guerra de Marguerite Duras são uma espécie de campo arqueológico literário. Continue lendo

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Literatura

Sons de água

23 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“São eles próprios mundo, realidade, destinados a segregar, em cada um de seus atos, mais mundo, mais realidade, são, mais ainda, o próprio presente, que à medida que se desloca vai criando mais presente, e ao mesmo tempo, sem perceber, afundando-nos no passado”.

Evandro Carlos Jardim

Evandro Carlos Jardim

Quando faleceu, em junho de 2005, vítima de um câncer de pulmão, o argentino Juan José Saer terminava de escrever os últimos capítulos de sua novela mais extensa, O grande. Nem por isso o romance é considerado inacabado. Composta por sete capítulos, cada qual correspondente a um dia da semana, a narrativa começa numa terça-feira e acaba na segunda-feira posterior à esperada grande reunião de domingo. O último capítulo, interrompido pela morte do autor, é um arremate para os encadeamentos de indagações de longo fôlego do encontro de seu dia anterior: a frase que o inicia e o conclui, retumba significados de um tema recorrente neste grande escritor – a poesia do tempo que passa, que dá o ritmo próprio à sua literatura: “Com a chuva chegou o outono e, com o outono, o tempo do vinho”.

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Guia de Leitura

Livros que usam passagens ou personagens da Odisseia como argumento  

19 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada [i].

 

adorno e horkheimer

Adorno e Horkheimer, “Dialética do esclarecimento”

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer tomam a Odisseia como paradigma das buscas e errâncias humanas, uma vez que, grosso modo, a  figura de Ulisses é compreendida como prototípica do movimento mito-esclarecimento-mito, cuja problematização articula a crítica desenvolvida pelos dois filósofos ao longo do livro: eles descobrem, na história de Ulisses e de seu retorno a Ítaca, a primeira alegoria da constituição do sujeito. Assim, a Odisseia é interpretada, por um lado, como história da razão desencantada dos artifícios míticos; por outro lado, mostra como a emancipação do mito que leva à idade da razão é resultado de uma gênese violenta. Continue lendo

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Artes Plásticas

Um livro que dança

18 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“[…] A vontade domina. Seu traço nunca está suficientemente perto do que ele quer. Não alcança nem a eloquência, nem a poesia da pintura; busca apenas a verdade no estilo e o estilo na verdade. Sua arte se compara à dos moralistas: uma prosa das mais límpidas que encerra ou articula com intensidade uma observação nova e verdadeira” – Paul Valéry, sobre Degas.

Degas dança desenho. Paul Valéry não enumerou com vírgulas as três palavras que dão título ao pequeno livro que dedicou ao caro amigo e pintor, Edgar Degas. Não o fez, para não distinguí-las em hierarquias categoriais sequenciadas em termos de relevância: o desenho dança em Degas, a dança desenha-se na maneira como ele vê as formas e as capta, ligeiramente fora de proporção, Degas dança o desenho; e no desenho Valéry encontra um conceito amplo, que abarca uma visão de época, uma visão de mundo e uma mediação entre o artista e essas duas visões. Mediação feita à maneira de uma tradução, de matriz hermenêutica: o desenho, livre enquanto dança, estruturador enquanto arte, é a própria arquitetura da imagem enquanto retórica da imaginação em relação à razão: através dele, a noção torna-se substância.

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Ensaios

Incerta memória

11 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens” – Borges.

Odilon Redon

Odilon Redon

Se questionássemos a história da literatura entendida como linha temporal dialógica de confrontos dos movimentos literários com movimentos antecedentes, veríamos que talvez o que esteja por trás desta concepção seja uma ideia de história linear. A ela poderíamos então sobrepor outra possibilidade, a ideia de história circular. Para precisar, um circular espiralado, com eixo móvel, em que a repetição[1] torna-se um conceito ontológico maior: a concepção de uma ontologia da própria literatura[2], considerando-a sujeito de si, encarnada no artista literário, no escritor. O artista percebe a mobilidade do eixo histórico, vive o paradoxo da repetição. Nas palavras de Deleuze, “não se pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mudança que ela introduz no espírito que contempla”, ou seja, “a não ser por uma diferença que o espírito extrai da repetição” (Deleuze, Diferença e repetição, p. 111): o eixo histórico é móvel, pois o presente constantemente imiscui-se ao passado e dele retorna, um espelho que reflete a diferença; o artista faz esse movimento, cria a si mesmo através da criação da forma a partir da contemplação daquilo que o precede, enquanto sujeito total ou parcial, de si ou da história: “Extrair da repetição algo novo, extrair-lhe a diferença, este é o papel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos ou fragmentados” (idem, p. 118). Para o artista o presente é simbólico, qualquer perturbação ocasionada ao real, carrega-a consigo. Provocando a forma literária, ele preenche a si mesmo, materializando a contemplação dos liames da representação da realidade em pontos complexos, confrontando e efetuando a originalidade de um presente a outro, do real ao mais profundo do próprio ser literário. Sempre em primeiro plano[3].

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Literatura

Retrato da moral burguesa

11 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Flávio de Carvalho

Flávio de Carvalho

A comédia humana, de Balzac, é monumental: composta por 89 volumes de romances, contos e novelas. Otto Maria Carpeaux já o dizia: dentre uma produção tão volumosa, parte foi feita “às pressas para ganhar dinheiro”. É o caso, segundo o crítico austro-brasileiro, de um dos romances balzaquianos mais famosos, A mulher de trinta anos. A crítica não é unânime, e o livro de Balzac, tão comentado, vale a pena ser lido, como comédia de costumes da burguesia francesa, como representante do realismo então recente na literatura.

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Literatura

O que cabe no breve espaço de um conto

9 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Ulysses Boscolo

Segundo Antonio Tabucchi, Nove estórias de J. D. Salinger é “o livro de contos mais belo do século XX”. De fato, os contos, escritos originalmente para as revistas The New Yorker e Harper´s, mostram a versatilidade, irreverência e magistral cadência da prosa do autor de O apanhador no campo de centeio.

“Ele era um mestre dos contos de ficção, um excelente contador de histórias. […] Seu trabalho é atemporal. Geração após geração encontra novos significados em seus livros”, resume Will Hochman, professor doutor da Universidade Estadual do Sul de Connecticut.

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lançamentos

Já ouviu falar de Carmencita?

4 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Picasso

Picasso

Algumas personagens da literatura ganham vida própria e acabam por ser mais comentadas do que propriamente lidas – consequentemente, conhecidas por características que nem sempre lhe pertencem tal e qual sua fama. Caso exemplar é Carmen. Assim que a cena se abre, pergunta-se: “Já ouviu falar de Carmencita?”. A bela cigana boêmia, de olhos oblíquos, personagem esquiva e movediça do texto do francês Prosper Mérimée, é mais famosa pela adaptação que o compositor Georges Bizet fez da novela para o libreto de sua mais conhecida ópera – e que deu origem, por sua vez, desde argumentos filosóficos, a adaptações para o cinema, por Chaplin, Godard, Carlos Saura, entre outros.

Esta edição de Carmen, lançada agora no Brasil pela editora 34, sob cuidadosa tradução de Samuel Titan Jr., traz, além, da obra prima de Mérimée, o conto “Mateo Falcone”. O volume também conta com um posfácio do tradutor, um ensaio criativo e inteligente. Continue lendo

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Literatura

O grotesco como revelação

2 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A literatura de Flannery O’Connor (1925 – 1964), ao longo de seus Contos completos, publicados pela Cosac Naify em 2008, são marcados por uma arguta inteligência, por um estilo direto e por caracterizações, de personagens, situações e ambientes, imageticamente complexas, de uma realidade profunda, significativamente ampla. Seus temas giram em torno, sobretudo, do fundamentalismo protestante do sul dos Estados Unidos e da esterilidade espiritual que marca o mundo moderno. Suas narrativas colocam em questão as noções de bem e mal, através de personagens grotescas, muitas vezes colocadas em situações violentas, em que falta-lhes piedade, ou mesmo diálogo. São contos perpessados pelo ódio racial, pela violência, por vezes velada, outras brutalidade sem subterfúgios, pela religiosidade decadente e dogmática. Seu nome é associado na literatura norte-americana ao gótico sulista de William Faulkner, Carson McCullers e Tennessee Williams.

Flannery  O’Connor é considerada uma das maiores escritoras norte-americanas do século XX. Continue lendo

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Literatura

Existência sem existir

27 fevereiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Fala-se em máquinas de guerra, mas nenhuma máquina é pacífica, Walser”.

schnapp

Schnapp

A máquina de Joseph Walser, do talentoso escritor português Gonçalo M. Tavares integra a tetralogia “O reino”, dedicada a pensar o período de guerras e pós-guerras, colocando em questão o mal e a violência, através da rara capacidade literária do autor para combinar ficção e investigação filosófica.

Joseph Walser é um funcionário pacato, metódico, cuja vida é padronizada pela repetição dos movimentos da máquina industrial que ele opera. Nada interfere em sua estabilidade cotidiana, verdadeira personagem-máquina em um mundo de máquinas: nem mesmo a proximidade da guerra, sequer a invasão o distraem de sua jornada, pontuada pela dedicação à sua coleção de peças únicas.

A relação paradoxal e estreita entre homem e máquina estende-se à relação entre sociedade e modernidade e à própria condição humana, maquinizada. Continue lendo

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