Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

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Branco vivo

25 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Nunca fui Miguilim. Embora pertença (orgulhosamente) a duas linhagens de capiaus e caipiras, que migraram da roça e vieram se entrelaçar (pelo encontro entre minha mãe e meu pai) na cidade grande, destoando dos meus antepassados, nasci, cresci e sigo forjando minha visão de mundo a partir de São Paulo. Além do mais, entre outros privilégios, disponho dos meus próprios óculos. O que resolve o problema do astigmatismo (um grau em cada olho), mas não serve para o principal: alargar meu ponto de vista urbanoide, letrado, calçado. Nesse caso, é preciso sair do lugar cativo. É preciso buscar a paisagem alheia. É preciso ir até o Mutúm — viajar, afinal, é ver com a pele”.

Araquém Alcântara ["Mais médicos"]

Araquém Alcântara [“Mais médicos”]

Branco vivo é um ponto de vista inusitado e instigante sobre o Brasil. Uma confluência fecunda entre os trabalhos do fotógrafo Araquém Alcântara e do escritor Antonio Lino sobre o Programa Mais Médicos, que, juntos, compõem um livro forte e sensível.

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Sobre o sofrimento cotidiano

23 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Odilon Redon

O psicanalista Christian Dunker acaba de lançar o livro Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano, pela editora Ubu. Trata-se da reunião de 49 ensaios, que dialogam sobre sofrimento, felicidade, ódio, política, solidão, intimidade; sobre as estratégias cotidianas para lidar com tudo o que nos afeta. Segundo o autor, o livro é “uma investigação sobre as formas de amor, sobre suas interveniências políticas, sobre a possibilidade de ficar junto e separado”. A partir dessa investigação, Dunker desenvolve uma reflexão psicanalítica sobre a experiência de sofrimento, própria da nossa época.

O argumento de Dunker tem como premissa implícita a ideia de que o sofrimento, embora vivido no sujeito, requer e propaga uma política – está submetido a uma dinâmica de poder. O poder é gerado por aqueles que podem reconhecer o sofrimento e por aqueles de quem esperamos legitimidade, dignidade ou atenção, seja o Estado, um médico, um padre ou policial, ou aqueles que amamos. Dessa maneira, as políticas do sofrimento cotidiano sustentam-se em nossas escolhas diante desses agentes de poder, através das maneiras de transformar nosso entorno ou a nós mesmos, das possibilidades de externalizar ou internalizar, construir ou desconstruir afetos, entre outros.

A problemática da rarefação da intimidade e o processo de solidão são intimamente analisados. Ao longo do livro, Dunker ilustra-os com exemplos que nos são corriqueiros, como tendências à hipersocialização, ou impotências para construir situações de real solidão ou intimidade. Continue lendo

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Literatura

Khadji-Murát

22 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Tipos caucasiano,s representados pelo artista I. Mikeshin

Khadji-Murát, de Lev Tolstói (1828-1910), foi relançado no Brasil, pela editora 34, com a primorosa tradução de Boris Schnaiderman. O volume conta ainda com o ensaio “Tolstói: antiarte e rebeldia”, em que Schnaiderman, fundamentado nos diários do autor e em extenso material crítico, contextualiza, na vida e na obra do escritor, a posição peculiar que Khadji-Murát ocupa na sua produção literária e intelectual.

A obra foi editada postumamente em 1912 e a maior parte dos críticos considera que tenha sido composta entre 1896 e 1904. Boris Schnaiderman sugere que a composição tenha sido mais longa, argumentando que “os rascunhos encontrados após a morte de Tolstói somam 2.166 páginas”. A novela e sua própria forma foram objeto de um profundo embate literário do autor. Em 1893, Lev Tolstói anotava em seu diário que: “A forma do romance acabou”; não tratava-se de derrotismo, mas da consciência do início de uma luta intelectual em busca da criação de uma nova forma literária: a concisão da novela, que mantém a abrangência das múltiplas linhas narrativas dos seus grandes romances. O resultado desse embate é Khadji-Murát, obra-prima de atualidade impressionante.

A novela narra a história verídica do líder rebelde caucasiano Khadji-Murát (1796-1852), em sua luta contra a incorporação da Tchetchênia e do Daguestão pelos russos. A região até hoje é foco de instabilidade política. Continue lendo

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Impressões de Foucault

17 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Foucault entre José Carlos Castro e Benedito Nunes, professores de Filosofia da Universidade Federal do Pará – fotografia realizada durante a visita de Foucault a Belém, em Novembro de 1976

Acaba de ser lançado, em primorosa edição, Impressões de Michel Foucault, pela interessante editora n-1.

Roberto Machado, professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, é considerado, tanto no meio acadêmico quanto fora dele, um dos mais brilhantes intérpretes no Brasil das obras de Michel Foucault e Gilles Deleuze, notório sobretudo pela organização de Microfísica do poder. Machado conta que, após ter publicado trabalhos sobre Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Marcel Proust, pretendeu “se reinventar pela escrita”, contando a história de sua longa relação com Michel Foucault, vivida nos cursos do Collège de France e nas vindas do filósofo francês ao Brasil. Trata-se, segundo o autor, da união entre “desejo de reflexão e desejo de ficção”, sem detrimento do rigor conceitual.

Como diz Peter Pál Pelbart, no livro, Roberto Machado “conduz o leitor à atmosfera parisiense que rodeava Foucault, povoada de cineastas, escritores, polêmicas e anedotas. Pelas lentes desse filósofo nascido no Recife e radicado no Rio, apreendemos fragmentos da vida pública e privada de um dos mais importantes pensadores do século XX. O que surge daí não é um monumento, mas uma aventura intelectual e vital, graças à capacidade que Foucault possuía de se deslocar, se desprender de si, mudar, surpreender”. Para o filósofo húngaro, trata-se do “testemunho vivo do encontro entre nossos trópicos nem sempre tristes e a efervescência intelectual de uma geração radical de pensadores franceses que marcou definitivamente nossa própria maneira de viver e de pensar”.

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Calibã e a bruxa

2 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres? O que podemos aprender sobre o desdobramento capitalista, passado e presente, quando examinado em perspectiva feminina?” – Silvia Federici.

Bruxa voando sobre uma cabra, gravura de Albrecht Dürer, 1501, British Museum

Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva, importante livro de Silvia Federici, acaba de ganhar uma cuidadosa edição brasileira, pela tão recente quanto promissora editora Elefante, com tradução realizada pelo Coletivo Sycorax. O livro, publicado originalmente em 2004, é referência incontornável para a análise histórica sobre a integração do corpo feminino e da reprodução biológica na máquina de produção capitalista. A autora detalha como a exploração do corpo feminino é inseparável da lógica capitalista, desde seu surgimento ainda medieval, e mostra como a resistência dos corpos e dos saberes propriamente femininos coexiste necessariamente com sua exploração.

Fundamentada em vasta pesquisa documental, iconográfica e bibliográfica, Federici argumenta que os assassinatos cometidos sob a justificativa da chamada caça às bruxas são um aspecto fundacional do sistema capitalista, uma vez que designou às mulheres o papel de “produtoras de mão de obra”, obrigando-as, pelo terror, a exercer gratuitamente os serviços domésticos necessários para sustentar os maridos e os filhos homens que seriam usados como força de trabalho do sistema nascente.

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Aqueles que queimam livros

14 julho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“No lugar em que agora queimam livros, hão-de queimar homens amanhã” – Heine, citado por George Steiner, em Tigres no espelho.

Trabalho da artista Ekaterina Panikanova

George Steiner é autor de tão extensa quanto diversificada obra, abrangendo sobretudos as áreas de filosofia, crítica literária e literatura. Nascido em 1929, em Paris, Steiner ensinou literatura em universidades de todo o mundo e tornou-se conhecido como um humanista pessimista, interrogando a espantosa contradição entre a exuberância do pensamento ocidental e os assassinatos em massa e genocídios praticados por essa mesma cultura, sobretudo em relação aos judeus pelos nazistas alemães – como o nazismo pôde se desenvolver no próprio seio da alta cultura?, pergunta. “Aqueles que queimam livros, que banem e matam os poetas, sabem o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável”.

Para Steiner, porém, o pessimismo da análise da história da humanidade tem um remédio otimista: os livros são a nossa chave de acesso para nos tornamos melhores do que somos. É o que discute em Aqueles que queimam livros, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Pedro Fonseca.

Segundo o autor, é inquestionável a capacidade da leitura de produzir uma transcendência intelectual, responsável por suscitar discussões, alegorizações e desconstruções sem fim. Tanto, que um livro pode sobreviver em qualquer parte nesta terra, envolvo em um silêncio inquebrantável, e a qualquer momento é possível que seja ressuscitado.

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Resenhas

A invenção de Morel

11 julho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada”
– Fernando Pessoa

gravura de Norman Ackroyd, “Island Connemara”

A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, não é por exagero descrita por Jorge Luis Borges como perfeita. Vertiginoso labirinto metafísico, sua narrativa acompanha o movimento filosófico que a desdobra em representações e reflexões sobre a realidade, distópica e satírica.

Conhecemos-na através do relato em primeira pessoa de um narrador que conta ser um foragido da lei e, por isso, ter-se refugiado em uma ilha, inabitada e desconhecida. O motivo do relato é apresentado logo em suas primeiras linhas, o narrador escreve impulsionado pela necessidade de dar testemunho de um “milagre”: o verão antecipara-se e pessoas repentinamente apareceram naquela ilha, que habitava então há cem dias e onde nunca vira homem algum. Ao avistar os misteriosos visitantes, que vê dançando alegremente em meio ao capinzal cheio de cobras, apavorado, conta ter fugido para os cantos mais recônditos da ilha, de onde então escreve, em meio a pântanos e plantas aquáticas, atazanado por mosquitos, aterrorizado com seu futuro incerto. Anuncia que, caso sobreviva, escreverá uma “Defesa dos sobreviventes” e um “Elogio a Malthus”: “Atacarei, nessas páginas, os exploradores das florestas e dos desertos; provarei que o mundo,  com o aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, do jornalismo, da radiotelefonia, das alfândegas, torna irreparável qualquer erro da justiça, é um inferno unânime para os perseguidos. Até agora não consegui escrever nada além desta folha que ontem não previa. São tantas as tarefas na ilha deserta! É tão insuperável a dureza da madeira! Tão mais vasto o espaço que o pássaro movediço!”

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Caro fanático

5 julho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Goya, “El sueño de la razón produce monstruos”, Águaforte, 1799. Da série “Caprichos”

Mais de uma luz – Fanatismo, fé e convivência no século XXI, poderoso livro de ensaios do romancista Amós Oz, acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo Geiger. Trata-se da reunião de três ensaios: no primeiro, o autor revê e amplia seu artigo, já clássico, “Como curar um fanático”, defendendo a controvérsia e a diferença, pois, aponta, um fanático nunca entra em debate, reduz sua crítica à aniquilação do diverso, que abomina. O segundo ensaio, inspirado no livro Os judeus e as palavras, sugere uma bela reflexão sobre o judaísmo como eterno jogo de interpretação, reinterpretação, contrainterpretação: o judaísmo, para Amós Oz, é justamente a cultura do questionamento. O terceiro ensaio propõe um diálogo com a esquerda pacifista e sugere o abandono do sonho de um estado binacional como solução para os conflitos entre Israel e Palestina, defendendo a existência de dois estados nacionais diferentes.

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história

Triste visionário

30 junho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Lima Barreto, fotografia de 1909

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), grande escritor brasileiro, cuja vida foi perpassada por dificuldades por ser mulato e filho de uma família pobre, será o homenageado da Festa Literária de Paraty neste ano.

Lima Barreto soube justamente retratar criticamente as injustiças sociais do Brasil e o preconceito de cor do qual também foi vítima, nascido em um país que aboliu a escravidão no exato dia em que o ainda futuro escritor completava sete anos, em 13 de maio de 1888 – mesmo ano em que ficou órfão de mãe. Sua literatura não foi reconhecida durante sua vida. Lima Barreto é conhecido por ter tido uma vida boêmia, solitária e entregue à bebida, pelo que foi internado duas vezes na Colônia de Alienados na Praia Vermelha, em razão das alucinações que sofria durante seus estados de embriaguez. Morreu na pobreza, na doença e no esquecimento.

Durante mais de dez anos, Lilia Moritz Schwarcz mergulhou na obra desta interessantíssima figura da literatura brasileira. Seu profundo estudo biográfico, Lima Barreto: triste visionário, que alia seus olhares historiográficos e antropológicos e abrange o corpo, a alma e os livros do escritor, acaba de ser lançado pela Companhia das Letras. Continue lendo

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história

Um viajante escritor no tempo das Cruzadas: o itinerário de Benjamin de Tudela

27 junho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Mapa do século XVI da cidade de Hamadan, desenhado por Matrakçı Nasuh.

O itinerário de Benjamin de Tudela é uma das primeiras obras culturais da Idade Média; as notas deste grande viajante e escritor são o primeiro documento conhecido escrito em hebraico.

Nascido no Reino de Navarra, Benjamin de Tudela [c. 1130-1173], ou rabi Benjamin, empreendeu uma jornada de quase dez anos, durante um dos períodos cruciais da história medieval, entre a Segunda Cruzada – que deu início à reconquista da Península Ibérica – e a Terceira – quando Saladino tomou Jerusalém.

Seu diário de viagem, sobretudo pelo texto objetivo e detalhado, é de grande importância cultural e histórica, pois oferece um relato panorâmico em termos geográficos, religiosos, sociais, políticos e comerciais, a respeito de como viviam os povos asiáticos, africanos e europeus no século XII. Sua viagem antecede a de Marco Polo por cem anos e seu interesse, como comenta J. Guinsburg, “nutriu a imaginação de gerações de leitores judeus e deitou frutos inclusive com uma obra clássica nas letras ídiches, Aventuras de Benjamin III, de Mêndele Mokher Sforim, editada em 1878”; a crônica de Benjamin de Tudela “transpôs desde logo os muros dos guetos, difundindo- se em sucessivas edições hebraicas e traduções latinas”. Trata-se de um importante documento de história cultural hebraica e islâmica, bem como de suas respectivas religiões, suas relações com os cristãos na Idade Média e com a diáspora; sua narrativa difunde-se entre os principais expoentes da Ciência do Judaísmo, como também, desde os humanistas do renascimento, na pesquisa acadêmica sobre o universo medieval.

A editora Perspectiva acaba de publicar a primeira tradução para o português do livro do grande sábio sefardita do século XII. Tanto a tradução, como a organização e as notas são de responsabilidade do erudito J. Guinsburg. Continue lendo

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lançamentos

“tudo é história”

20 junho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Retrato de George Sand, ou Amantine Aurore Lucile Dupin, por Delacroix

O preconceito de gênero reside por entre as linhas de um texto. Cada vez menos, felizmente, ao que parece? Será, um texto escrito por uma mulher, lido de maneira diversa do que se o tivesse sido escrito por um homem? Certamente, no século XIX, assim ainda o era. E não por acaso, uma mulher que utilizou um pseudônimo masculino, justamente para fazer livremente referência os direitos da mulher, especialmente no tocante ao prazer e à igualdade de direitos com relação aos homens, tornou-se um marco na história do romantismo francês:

George Sand foi o pseudônimo escolhido por Amantine Aurore Lucile Dupin, nascida em 1804, em Paris, no seio de uma família aristocrática, e falecida em Nohant, em 1876. Deixou romances e trabalhos memorialísticos que a tornaram um dos maiores expoentes das letras do século XIX, tendo sido a primeira mulher francesa a viver de seus direitos autorais. Ao adotar seu pseudônimo, George Sand havia decidido se tornar uma escritora profissional.

História da minha vida, que acaba de ser lançado pela Editora Unesp, com tradução de Marcio Honorio De Godoy e organização de Magali Oliveira Fernandes, é uma das obras mais importantes da autora. Continue lendo

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Ensaios

Histórias de fantasma – uma leitura sobre a ciência sem nome de Aby Warburg

12 junho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Ex libris feito por Warburg para seu amigo Franz Boll, cuja contribuição inestimável foi a publicação da “Sphaera barbarica”, fonte fundamental para a pesquisa do caminho feito pelas concepções astrais helenísticas, da Antiguidade ao Renascimento.

Propomos uma análise panorâmica a respeito de uma das figuras mais enigmáticas da história da arte. Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma família de prósperos banqueiros – o banco Warburg foi fundado no século XVIII e, quando Aby Warburg nasceu, era o maior da Alemanha. Aby era o primogênito e herdaria a responsabilidade pelos bem-sucedidos negócios da família, porém jovem ainda, abriu mão de sua primogenia em favor de seu irmão mais novo, com a condição que este lhe fornecesse, ao longo de toda sua vida, todos os livros que desejasse. Assim nasceu a então maior biblioteca privada da Europa, hoje abrigada pelo Instituto Warburg, em Londres. Na entrada da biblioteca, Warburg gravou o nome “Mnemosyne” e esta antiga deidade pagã, a musa da memória, permeia de maneira peculiar o núcleo de toda sua obra – desenvolvida até seu falecimento, em 1929. Porque a grande questão, para Warburg, diz respeito à influência da Antiguidade na cultura europeia na época do Renascimento: haveria um mito do “Reanscimento”?; o que “renasceu” da Antiguidade no Renascimento?; será que “renasceu”, ou há uma memória freática que pode ser percebida na arte? É o que pretendemos mostrar doravante. Continue lendo

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matraca

“Os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”

8 maio, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Protesto por demarcação de terras indígenas, em Brasília (Foto: REUTERS/Gregg Newton)

Davi Kopenawa, líder dos Yanomami, no seu livro A queda do céu diz: “os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”.

Essa frase, para Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, contém em si uma imagem do pensamento, uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do próprio projeto civilizatório. Para os Yanomami, o pensar é, essencialmente, sonhar: sonhar com o que não é humano, sair da humanidade.

Em Há um mundo por vir?, Viveiros de Castro e Danowski compreendem, da fala de Davi Kopenawa, que nosso pensamento – ocidental e etnocêntrico – está concentrado no “mundo da mercadoria” e, por isso, só vemos a nós mesmos: os brancos só sonham consigo mesmos, não saem de si mesmos, não saem da humanidade.

Uma questão em voga sobre determinação de civilizações, comunidades e territórios indígenas, ilustra um pouco da dimensão filosófica e política da discussão. Em entrevista – “Exceto quem não é” – de 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA), Eduardo Viveiros de Castro, discutindo a noção de definição indígena, diz: “essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo”. Para o antropólogo, a “Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional”. Continue lendo

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história

Pode um cristão ser comerciante e senhor de escravos?

2 maio, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“[…] chegados aos nossos portos os navios de Guiné, devem ser examinados a respeito dos escravos que trouxerem, e os que se achar serem tomados, como o deviam ser, isto é, com averiguação e certeza de serem legitimamente cativados, devem ficar, como tais, no domínio de seus donos; e pelo contrário, os que se achar serem tomados como não o deviam ser, isto é, sem certeza e averiguação de que fossem legitimamente cativos, devem, como ingênuos, ser havidos por livres.”
– Manoel Ribeiro Rocha.

litografia de J.-B. Debret, “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”

A Editora Unesp acaba de republicar a obra Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, do padre jesuíta Manoel Ribeiro Rocha, originalmente publicada em 1758. Manoel Ribeiro Rocha, lusitano radicado em Salvador, procura uma “maneira cristã de tratar os escravos”, desde sua compra até sua libertação. Tentava, com a obra, encontrar um caminho conciliatório entre prática ignominiosa da escravidão, sustentáculo da economia colonial, e a pacificação da consciência daqueles que comercializavam e mantinham os cativos.

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Um brinde à dialética

28 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de 23 de fevereiro de 1962, cena de “Flüchtlingsgespräche” [Conversas de refugiados]; Hermann Motsch como “Kalle”, Jürgen Arndt como “Ziffel”

Conversas de refugiados, de Bertolt Brecht (1898-1956), acaba de ser publicada no Brasil pela Editora 34, com tradução de Tercio Redondo, professor de literatura alemã na Universidade de São Paulo. A peça foi escrita entre 1940 e 41, como um diálogo entre dois refugiados, o físico social-democrata Ziffel e o operário comunista Kalle. Através da conversa, Brecht revisita assuntos que marcaram toda a obra – cujas contradições, intrínsecas e necessárias a seu caráter dialético, ganham, sob a condição do refugiado, uma luz bastante especial.

“A melhor escola de dialética é a emigração. Os dialéticos mais argutos são os refugiados. Refugiaram-se por causa das transformações, e não estudam nada além das transformações”.

Os dois exilados alemães bebem cerveja na estação ferroviária de Helsinque, durante a Segunda Guerra Mundial, e falam sobre as circunstâncias adversas em que vivem, “tomando sempre o cuidado de olhar para os lados” – eis a situação básica da peça. Por entre as cervejas, um diálogo filosófico instaura-se; com humor negro, falam sobre as circunstâncias políticas e a condição de exílio, que reduz o homem a um passaporte, “a parte mais nobre de um homem”, ironiza. O próprio Brecht era um exilado na Finlândia, perseguido pelo nazismo, quando começou a trabalhar nesse texto inconcluso, que veio a público somente em 1961. Continue lendo

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