Ensaios

Histórias de fantasma – uma leitura sobre a ciência sem nome de Aby Warburg

12 junho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Ex libris feito por Warburg para seu amigo Franz Boll, cuja contribuição inestimável foi a publicação da “Sphaera barbarica”, fonte fundamental para a pesquisa do caminho feito pelas concepções astrais helenísticas, da Antiguidade ao Renascimento.

Propomos uma análise panorâmica a respeito de uma das figuras mais enigmáticas da história da arte. Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma família de prósperos banqueiros – o banco Warburg foi fundado no século XVIII e, quando Aby Warburg nasceu, era o maior da Alemanha. Aby era o primogênito e herdaria a responsabilidade pelos bem-sucedidos negócios da família, porém jovem ainda, abriu mão de sua primogenia em favor de seu irmão mais novo, com a condição que este lhe fornecesse, ao longo de toda sua vida, todos os livros que desejasse. Assim nasceu a então maior biblioteca privada da Europa, hoje abrigada pelo Instituto Warburg, em Londres. Na entrada da biblioteca, Warburg gravou o nome “Mnemosyne” e esta antiga deidade pagã, a musa da memória, permeia de maneira peculiar o núcleo de toda sua obra – desenvolvida até seu falecimento, em 1929. Porque a grande questão, para Warburg, diz respeito à influência da Antiguidade na cultura europeia na época do Renascimento: haveria um mito do “Reanscimento”?; o que “renasceu” da Antiguidade no Renascimento?; será que “renasceu”, ou há uma memória freática que pode ser percebida na arte? É o que pretendemos mostrar doravante. Continue lendo

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matraca

“Os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”

8 maio, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Protesto por demarcação de terras indígenas, em Brasília (Foto: REUTERS/Gregg Newton)

Davi Kopenawa, líder dos Yanomami, no seu livro A queda do céu diz: “os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos”.

Essa frase, para Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, contém em si uma imagem do pensamento, uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do próprio projeto civilizatório. Para os Yanomami, o pensar é, essencialmente, sonhar: sonhar com o que não é humano, sair da humanidade.

Em Há um mundo por vir?, Viveiros de Castro e Danowski compreendem, da fala de Davi Kopenawa, que nosso pensamento – ocidental e etnocêntrico – está concentrado no “mundo da mercadoria” e, por isso, só vemos a nós mesmos: os brancos só sonham consigo mesmos, não saem de si mesmos, não saem da humanidade.

Uma questão em voga sobre determinação de civilizações, comunidades e territórios indígenas, ilustra um pouco da dimensão filosófica e política da discussão. Em entrevista – “Exceto quem não é” – de 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA), Eduardo Viveiros de Castro, discutindo a noção de definição indígena, diz: “essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo”. Para o antropólogo, a “Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional”. Continue lendo

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história

Pode um cristão ser comerciante e senhor de escravos?

2 maio, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“[…] chegados aos nossos portos os navios de Guiné, devem ser examinados a respeito dos escravos que trouxerem, e os que se achar serem tomados, como o deviam ser, isto é, com averiguação e certeza de serem legitimamente cativados, devem ficar, como tais, no domínio de seus donos; e pelo contrário, os que se achar serem tomados como não o deviam ser, isto é, sem certeza e averiguação de que fossem legitimamente cativos, devem, como ingênuos, ser havidos por livres.”
– Manoel Ribeiro Rocha.

litografia de J.-B. Debret, “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”

A Editora Unesp acaba de republicar a obra Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, do padre jesuíta Manoel Ribeiro Rocha, originalmente publicada em 1758. Manoel Ribeiro Rocha, lusitano radicado em Salvador, procura uma “maneira cristã de tratar os escravos”, desde sua compra até sua libertação. Tentava, com a obra, encontrar um caminho conciliatório entre prática ignominiosa da escravidão, sustentáculo da economia colonial, e a pacificação da consciência daqueles que comercializavam e mantinham os cativos.

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lançamentos

Um brinde à dialética

28 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de 23 de fevereiro de 1962, cena de “Flüchtlingsgespräche” [Conversas de refugiados]; Hermann Motsch como “Kalle”, Jürgen Arndt como “Ziffel”

Conversas de refugiados, de Bertolt Brecht (1898-1956), acaba de ser publicada no Brasil pela Editora 34, com tradução de Tercio Redondo, professor de literatura alemã na Universidade de São Paulo. A peça foi escrita entre 1940 e 41, como um diálogo entre dois refugiados, o físico social-democrata Ziffel e o operário comunista Kalle. Através da conversa, Brecht revisita assuntos que marcaram toda a obra – cujas contradições, intrínsecas e necessárias a seu caráter dialético, ganham, sob a condição do refugiado, uma luz bastante especial.

“A melhor escola de dialética é a emigração. Os dialéticos mais argutos são os refugiados. Refugiaram-se por causa das transformações, e não estudam nada além das transformações”.

Os dois exilados alemães bebem cerveja na estação ferroviária de Helsinque, durante a Segunda Guerra Mundial, e falam sobre as circunstâncias adversas em que vivem, “tomando sempre o cuidado de olhar para os lados” – eis a situação básica da peça. Por entre as cervejas, um diálogo filosófico instaura-se; com humor negro, falam sobre as circunstâncias políticas e a condição de exílio, que reduz o homem a um passaporte, “a parte mais nobre de um homem”, ironiza. O próprio Brecht era um exilado na Finlândia, perseguido pelo nazismo, quando começou a trabalhar nesse texto inconcluso, que veio a público somente em 1961. Continue lendo

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lançamentos

Um não lugar em tempo algum

20 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

A Utopia de Thomas More completou 500 anos de publicação no ano passado. Em comemoração, a editora Autêntica acaba de publicar uma edição bilíngue da obra, a primeira tradução brasileira da obra diretamente do latim, realizada por Márcio Meirelles Gouvêa Júnior e revisada por Guilherme Gontijo Flores.

O tradutor, na apresentação do livro, fala sobre como a compreensão da personagem principal da trama de Thomas More é chave importante para a tradução de seu latim humanista: “O navegante de pele atrigueirada pelo sol, barba comprida e roupas de marinharia foi, de modo expresso, anunciado por aquele que o apresentava ao narrador não como um Palinuro, mas como um Ulisses, ou antes, mesmo como um Platão. Desse modo, ao recusar-lhe a semelhança com o piloto do navio de Eneias, e aproximá-lo de Ulisses ou de Platão, o autor não caracterizou seu protagonista como um marinheiro profissional, mas precisamente como um explorador de novas regiões da Terra, em um mundo que expandia suas fronteiras geográficas na esteira das grandes navegações”.

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lançamentos

Os fuzis e as flechas

17 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Abertura da Transamazônica em 1970

Os fuzis e as flechas, do jornalista Rubens Valente, é uma investigação jornalística acerca de centenas de mortes de indígenas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Para compor os dados e histórias apresentados, o autor entrevistou oitenta pessoas, entre índios, sertanistas, missionários e indigenistas, percorreu 14 mil quilômetros de carro, esteve em dez estados e dez aldeias indígenas do Amazonas, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais; também recorreu a milhares de páginas coletadas em arquivos de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Como resultado da vasta pesquisa, que durou dez anos, o livro, que acaba se ser publicado pela Companhia das Letras, traz à tona registros inéditos de erros e omissões que levaram a tragédias e extermínio de tribos inteiras.

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lançamentos

Em busca do real perdido

15 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Desenho de Salvador DalÍ, 1935

O que é o real? – é a questão que propõe o filósofo francês Alain Badiou no livro Em busca do real perdido, recentemente lançado no Brasil pela editora Autêntica, com tradução de Fernando Scheibe.

De acordo com Gilson Iannini: Hoje em dia, o real aparece sempre como aquilo que intimida. Não temos como escapar do real, ele está aí, impõe-se a nós como uma lei inexorável. Por uma ironia da história, quem pretende deter os segredos do real no mundo contemporâneo são os economistas, que o apresentam para nós através de planilhas, gráficos e números pretensamente objetivos, que diriam a última palavra sobre o real. As projeções econômicas apresentam-se, em geral, como catástrofe: caso seus modelos não sejam implementados, tudo pode ruir. Apesar da sua total incapacidade não apenas de prever, mas ainda de compreender os desastres que ela mesma produz, a economia sobrevive à sua própria impotência, porque todos, ou quase, parecem continuar acreditando na peça representada em escala planetária pelo capitalismo”. Continue lendo

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matraca

Gênero, patriarcado, violência

8 março, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“O patriarcado refere-se a milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina. […] o conceito de gênero carrega uma dose apreciável de ideologia. E qual é esta ideologia? Exatamente a patriarcal, forjada especialmente para dar cobertura a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da convivência humana. É a esta estrutura de poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de patriarcado diz respeito” – Heleieth Saffioti.

Heleieth Saffioti (1934-2010) foi uma socióloga marxista, professora, estudiosa da violência de gênero e militante feminista brasileira.

Seu livro Gênero, patriarcado, violência questiona de maneira densa o papel da mulher na sociedade atual. Saffioti aborda o tema em sua perspectiva histórica e, portanto, analisa o papel da mulher na sociedade de classes, capitalista. Para a socióloga, a questão da opressão às mulheres é parte constituinte de um sistema baseado na exploração do ser humano pelo ser humano.

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Askhmata

Retórica interior

20 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

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Askhmata

Esquemas de percurso, exercícios: ancoragens marcadas em uma carta náutica literária, imaginária. Alheias às exigências profissionais de decoro, desenham memórias de leituras.

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SHAFTESBURY, Askhmata

[Editora Unesp, tradução e organização de Pedro Paulo Pimenta]

 

Desenho de Rafael [Homem jovem carregando homem velho nas costas]

 

Shaftesbury – Anthony Ashley Cooper, III Conde de Shaftesbury – é um daqueles filósofos cujas ideias tornaram-se freáticas; pouco comentado atualmente, desenvolveu reflexões que foram base para o desenvolvimento da filosofia moderna.

Estes exercícios investigativos são o testemunho vivo da formação de um filósofo.

Os escritos são permeados por pequenos diálogos, arguições com um interlocutor, que ajudam o autor a testar e fortalecer suas teses.

São exercícios de uma reflexão de cunho estoico, que contêm em germe noções e conceitos que Shaftesbury desenvolveria com mais profundidade na obra Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times e, porteriormente, em Second characters; or, The language of forms.

Os exercícios buscam a compreensão e disciplina das paixões para a formação do caráter. Continue lendo

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Guia de Leitura

Estado de Exceção

13 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Atualmente, muito tem se comentado a ideia de que o Estado de Exceção não é a exceção, mas a regra. Mas ainda precisamos compreender: como é desencadeado o real estado de exceção?

Goya, gravura da série “Desastres de la guerra”

Comentando a relevância e a atualidade da discussão sobre o tema sugerida pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, Èlida Gomes de Oliveira pontua: “O título desta obra [Estado de exceção] origina-se do latim excipio, que significa tomar, apanhar de seu lugar de origem, perder algo que se é próprio”. Frente à “constatação de ocorrências nos últimos governos ao tomarem decisões de enviar tropas do Exército nos casos de conflito que estariam colocando em risco tanto a segurança pública quanto a segurança Nacional”, – tais como a conclamação, pela população atordoada e apavorada, da presença das Forças Armadas – pode-se constatar múltiplos exemplos da tese de que o Estado de Exceção não é, senão, a regra: “Ironicamente, para se preservar a liberdade, segundo a lógica do governo, é preciso assegurar a soberania, mesmo que para isso se tenha que lançar mão da repressão para defender o sistema com situações de ditadura (experiência tão conhecida por nós, posta em prática durante a ditadura militar com a alegação de deter uma possível conspiração comunista através dos Atos Institucionais, a exemplo do AI 5 de 1968). O emprego do conceito de exceção do filósofo italiano se aplica ao entendimento do pensamento de Karl Schmitt, intelectual alemão de orientação conservadora, adepto do nazismo. De acordo com a doutrina schmittiana, o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, definido por ela, garantindo sua ancoragem na lei e na normalidade da exceção”.

 

 

Walter Benjamin, “O anjo da história”

Foi Walter Benjamin quem teorizou o “estado de exceção” como regra. O tema aparece já como questão central em Origem do drama barroco alemão, de 1925, e nos textos escritos no contexto do livro Passagens, sobretudo em “Sobre o conceito da história”, de 1940. É na oitava destas teses sobre o conceito de história, que a noção de estado de exceção aparece em todo o seu significado:

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de Exceção’, no qual nós vivemos, é a regra. Precisamos atingir um conceito de história que corresponda a isto. Então teremos diante de nós como nossa tarefa provocar o efetivo Estado de Exceção; e deste modo melhorará a nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste depende não em última instância, que seus opositores lutem contra ele em nome do progresso como uma norma histórica. – A admiração de que as coisas que nós vivenciamos ‘ainda’ são possíveis no século XX, não é filosófica. Ela não está no início de um conhecimento, a não ser de que a idéia de história, de onde ela provém, não pode mais ser sustentada”.

Para Benjamin, “A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas relações com o direito [Recht] e a justiça [Gerechtigkeit]. Pois, qualquer que seja o efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da palavra, quando interfere em relações éticas”. Segundo o filósofo, do ponto de vista do direito natural, não haveria “problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos”. Porém, ele opõe a este o problema da legitimidade dos meios, colocado através da tese do direito positivo, ou positivado, que não justifica os meios pelos fins, mas julga o direito pelos meios: “Se a justiça é o critério dos fins, a legitimidade é o critério dos meios”.

Um soberano pode fugir à legitimação do direito estabelecido, para repor ou refazer um estado de direito. O estado de exceção é um dispositivo através do qual se produz uma situação de anomia, um vazio jurídico criado pelos poderes soberanos em nome da manutenção do poder em situações extraordinárias. Continue lendo

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Literatura

A vista particular

10 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“A montagem do morro foi mais tranquila. Arariba tinha deixado à disposição uma série de materiais, já com as instruções do lugar de tudo. Não era preciso. Com a experiência, os moradores sabiam perfeitamente erguer os barracos, lembravam-se dos lugares onde deveriam ficar a vendinha, a boca de fumo, a igreja evangélica e a biblioteca comunitária. De qualquer forma, não é preciso deixar tudo igual. A arte contemporânea tomou para si, com grande criatividade, o aspecto efêmero das coisas humanas. Haverá alguma pulsão de morte na obra de Zé Arariba?, um crítico se pergunta em um longo artigo de jornal. Esse, por razões que não vêm ao caso, nosso artista leu e ficou abalado. Afinal de contas, estou sempre despedaçando alguma coisa. Às vezes fico pensando se vale mesmo a pena”.

Cantagalo/ Pavão-Pavãozinho

O romance A vista particular, de Ricardo Lísias, mostra a espetacularização da miséria e a estetização da violência de maneira ácida e satírica. O protagonista, José de Arariboia, é um artista bem-sucedido, conhecido por uma série de quadros que pintou sobre o Rio de Janeiro, está prestes a montar sua primeira exposição individual. Ele é, porém, flagrado subindo a favela do Pavão-Pavãozinho. Ninguém sabe o que acontece por lá. E na volta, uma inesperada “performance” leva as pessoas ao delírio: Arariboia desce da Rua Sá Ferreira até a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, completamente nu e ainda com um passo de gingado especial, digno de ser desfilado em um sambódromo. Curiosos filmam a “performance” e os vídeos tornam-se sucessos no YouTube. O que poderia ter sido uma catástrofe e a ruína de sua reputação, transforma-se, assim, em sensação. Arariboia torna-se uma estrela na internet, conhece o chefe do tráfico no morro Pavão-Pavãozinho e, com ele, inicia uma parceria e um trabalho que, crê, é sua obra-prima: uma intervenção na comunidade, a princípio uma espécie de metonímia, que acaba tomando a dimensão de uma sátira feroz de crítica social aos silenciados absurdos cotidianos. Segundo Schneider Carpeggiani, em resenha publicada pelo Suplemento Pernambuco, “o romance dilata o vaivém ‘voyeurístico’ entre favela e classe média, entre o que entendemos por centro/por margem e como esse movimento pode ser kamikaze para ambas (e objetificadas) partes”. Continue lendo

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Literatura

Memórias de Adriano

8 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Mausoléu de Adriano, em Roma [atualmente, Castel Sant’Angelo]

Memórias de Adriano, da escritora belga Marguerite Youcenar (1903 — 1987), é uma autobiografia imaginária do imperador romano. Adriano de fato escreveu uma autobiografia que não sobreviveu até nosso conhecimento. Publicada originalmente em 1951, foi a obra de Youcenar que a tornou internacionalmente conhecida.

O romance é escrito em primeira pessoa, em forma de uma carta testamento, escrita por Adriano e endereçada a seu neto adotivo, o futuro imperador Marco Aurélio. Na carta, o imperador produz confissões, à maneira de uma anamnese, e assim faz um balanço de seu próprio tempo e existência, de modo que amalgamam-se suas memórias pessoais às memórias históricas. Através da voz de Adriano, falam inúmeras outras, e o retrato memorialístico de sua personalidade, humana por excelência, é também o retrato de uma época, em rigorosa reconstituição histórica. Sua narrativa associa filosoficamente dimensões sociológica e psicológica.

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matraca

Sobre a estupidez

6 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“O domínio violento e vergonhoso que a estupidez exerce sobre nós é revelado por muitas pessoas ao demonstrarem-se surpresas de maneira amável e conspiratória quando alguém, a quem confiam, pretende evocar esse monstro pelo nome”.

M. C. Escher

Mesmo enquanto grande romancista, o nome de Robert Musil vincula-se à escrita ensaística. Sobre a estupidez, considerado um de seus grandes ensaios, foi publicado no ano passado no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Simone Pereira Gonçalves. O ensaio nasceu de uma conferência, proferida em 1937, a convite da Federação Austríaca do Trabalho. Trata-se de uma penetrante, arguta e irônica conferência sobre o sempre relevante tema da estupidez humana.

Musil sugere uma reflexão filosófica, que pondera ainda ser preliminar, porém relevante. Para ele, era comum à maioria dos filósofos e intelectuais de seu tempo a preferência pela definição a sabedoria em detrimento da compreensão da estupidez – que, adverte, não é necessariamente antônimo de sabedoria. Há, para o autor, dois tipos básicos de estupidez. Uma é a estupidez honesta – falta de inteligência talvez honrada, associada a limitações intrínsecas de um indivíduo: “Pobre em representações e em vocabulário, não sabe muito bem como se servir dele. Prefere o banal, cuja frequência torna a assimilação mais fácil; e quando assimila qualquer coisa, não tem muita predisposição para consentir que lha retirem logo em seguida, nem para permitir que a analisem, ou para jogos de ambiguidade em relação a ela” [citação da edição portuguesa, ed. Relógio D’Água, 2012, tradução de Manuel Alberto]. Outra, a estupidez inteligente – errática, pretensiosa é resultado da abdicação voluntária do pensamento crítico. Esta, é uma fraqueza da inteligência em relação a um objeto particular, é uma doença da cultura, é algo que nunca produz uma ideia significativa e válida. Continue lendo

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história

Dos destinos das utopias

3 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Viva!, do escritor francês Patrick Deville, é o mais recente lançamento da sua série de “romances sem ficção”, que investigam o destino das utopias e esperanças modernas nas mais diversas partes do mundo. A série foi inaugurada com Pura vida: Vie & mort de William Walker (2004) e seguiu através dos títulos La Tentation des armes à feu (2006), Équatoria (2009), Kampuchéa (2011), Peste & Choléra (2012). Viva!, publicado na França em 2014, é a primeira obra do autor traduzida no Brasil. O volume acaba de ser lançado pela editora 34, com tradução de Marília Scalzo, e conta com texto de apresentação de Alberto Manguel.

O romance sem ficção inicia-se em Tampico, em janeiro de 1937, momento em que Léon Trótski desembarca no México, banido da URSS, e sabe que não está a salvo. Patrick Deville faz a crônica dos três anos que restam ao revolucionário russo. Desfila um cortejo de figuras que a presença de Trótski imanta e radicaliza: Diego Rivera e Frida Kahlo, Victor Serge e André Breton, David Alfaro Siqueiros e Ramón Mercader, B. Traven – o enigmático autor de O tesouro de Sierra Madre – e Malcolm Lowry – jovem escritor que chega ao México no mesmo ano, sonhando em revolucionar a prosa poética e que reservará a Trótski um papel decisivo nos momentos finais de À sombra do vulcão.

Através dos cruzamentos entre os percursos dessas vidas paralelas e os labirintos da história e da geografia, à sombra da guerra mundial que se aproxima e que levará a uma negra apoteose, Deville cria uma narrativa vertiginosa. No curso de suas vidas meteóricas, no entanto, os personagens de Viva! lançam uma importante luz inconformista sobre este mundo. Continue lendo

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Literatura

Os passos em volta

1 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite” – Herberto Helder, “Lugar lugares”.

Evandro Carlos Jardim

Os passos em volta é a primeira obra em prosa de Herberto Helder, um dos maiores poetas portugueses. O livro, lançado originalmente em 1963, ganhou reedição pela Tinta-da-china Brasil em maio do ano passado.

De acordo com Eucanaã Ferraz, “Não são contos. Têm a qualidade dos poemas e o desenho retilíneo da prosa. Materialização de uma singularidade irredutível, são o que são: um estilo”. Para o poeta brasileiro, o livro “espanta-nos pela sua violência, mas também porque nele perdição e terror irrompem no plano de uma escrita ordenada e muitíssimo construída. […] este livro nos apanha e desde suas primeiras palavras começamos a dar passos em volta, já não podemos sair de seu mundo, onde tudo é solidão e deslumbramento”.

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